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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Barcas S/A: privatização e destruição de um transporte público

            Em tempos de profundo mal-estar provocado por uma concessionária de serviços públicos no Rio de Janeiro, nenhuma nota da grande imprensa consegue alcançar o nível de realidade e a comparação inevitável entre passado e presente de uma boa matéria a respeito. O serviço de transporte marítimo de passageiros na Baía de Guanabara foi privado, estatizado e privatizado novamente desde sua criação no começo do século passado. Não importando o gestor do momento, sempre quem financiou embarcações e investimentos em geral fomos eu, você e todos os contribuintes através dos impostos. As passagens são apenas parte do sistema de arrecadação que sustenta a máquina da concessionária da vez. Sem o Estado, nenhuma barca foi construída ou reformada, nenhuma estação posta de pé, poucos empregados foram pagos. Justo que a população reivindique o direito de pagar passagens justas e ter um serviço adequado. As barcas sempre encantaram pois, além da necessidade do transporte, há todo um prazer e toda uma contemplação existencial nas travessias, algo difícil de se imaginar em outros transportes coletivos. Mesmo neste quesito, Barcas S/A opera uma má gestão sufocante, destrutiva e simbólica da opressão sistêmica sobre as liberdades individuais e coletivas neste século XXI.

          Conheci as barcas quando eram operadas diretamente pela Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro (CONERJ), estatal, ainda criança. Lembro de suas roletas mecânicas (como as de ônibus) que sempre eram liberadas ao povo gratuitamente quando em jogo de final de campeonato de futebol no Maracanã, quando em dia de Iemanjá para levar oferendas até o meio da baía e quando em dias de protestos e manifestações populares na Cinelândia. Impensável isso hoje em dia, não? Há quem critique fervorosamente por só ver nestas atitudes algo tipicamente perdulário por parte da máquina estatal. Eu vejo de forma diferente. Quando criamos benefícios que respeitam nossas tradições culturais, nosso lazer e nossa liberdade de manifestação, construímos sociedades mais saudáveis. A diminuição dessas oportunidades é proporcional ao crescimento da depressão e da violência no mundo atual, onde tudo só pode existir se der lucro sobre lucro.

                Entrava na barca, ainda criança, com um olhar que só cresceu e aprimorou durante todo o meu desenvolvimento. No começo, a travessia na Baía de Guanabara era um desafio para o infante niteroiense! Nossa, ir ao Rio era uma prazerosa  e instigante aventura. Adorava correr de um lado para o outro e gostava mais ainda da varanda de trás, localizada no segundo andar, onde podia ver a linda vista do pôr-do-sol e o balanço das ondas provocadas pelo motor da embarcação. A brisa era algo que só contemplava quando meus pais ou parentes mandavam eu ficar quieto e sentado diante daquele janelão de madeira que levantava pela metade e fazia um barulho enorme! O janelão tremia, fazia barulho, mas eu, quando criança, ainda podia ver a vista através dele sentado. Hoje em dia, nem pensar! Uma criança tem que ficar quieta numa poltrona macia (a da época era de madeira sem almofada) em que a única vista é a outra poltrona ou o adulto repressor por todos os lados. Isto porque a janela da barca atual é uma janela de ônibus, muito mal colocada para o ambiente em si e para o passageiro sentado. Ela fica alta, é pequena e corre pouco, o que evita a entrada da chuva mas também do vento. 

              Lembro que camelôs e pregadores de todos os tipos, mercadorias e ideias se apresentavam nas barcas sem repressão. Era possível presenciar pastor evangélico pregando, palhaço fazendo palhaçadas, socialistas e anarquistas chamando para protestos, grupos teatrais surpreendendo, músicos e artistas em geral abrilhantando a efervescência dos anos 80 por democracia. Eu era criança, não entendia como entendo hoje, mas tenho essas memórias na cabeça. Talvez alguns leitores mais velhos sejam testemunhas mais eloquentes do que tento narrar. Tudo isso foi sendo duramente reprimido dos anos 90 para cá até chegarmos ao ponto de ficarmos presos a equipamentos de TV instalados na embarcação que só fazem propaganda de produtos e encerram notícias rápidas e amestradas produzidas pela produtora do jornalista Sérgio Rezende. Quando a população ensaia manifestação pacífica com cartolinas e faixas, seguranças chegam para expulsar. O retrocesso e a opressão sistêmicos são nítidos e produzem seus efeitos. Acho que, no Brasil, os poderosos ainda podem se gabar de que a mentalidade conservadora enraizada ainda é uma vitória deles sobre o povo oprimido... encontram apoio entre aqueles que eram para se sentir ofendidos! Nada que, de 2011 para cá pelo menos, possa perdurar sem confrontos. À medida que se torna mais insustentável, mais protestos acontecem e os investimentos em repressão só denunciam a intenção de matar todos aqueles que contrariarem o óbvio. Ou o que se pensa que é óbvio.

               Já adolescente, as travessias das barcas foram ganhando outras nuances. A CONERJ só viria a ser privatizada em 1998, quando eu completaria 18 anos. Portanto, entre os 12 e os 18, minhas descobertas sobre a travessia das barcas ganharam impulso quando fumar só era um grande problema na frente dos meus pais. Fumávasse livremente em qualquer lugar menos na minha casa. Hoje é mais fácil fumar em casa do que em qualquer outro lugar, uma inversão que só aumentou minha tendência ao vício. Como o adolescente adora transgredir o proibido, já não era suficiente o ambiente interno ou da varanda das barcas. Subir no teto e ficar ali do alto sentado, mesmo que inalando a fumaça preta da chaminé junto, aquela que ninguém repara a poluição, era uma tentação que sempre curtia. Sozinho ou acompanhado. Isso se tornou impossível com as novas embarcações. Sem a varanda que tínhamos, ficamos também sem a escadinha que levava ao teto. Consequentemente, fomos privados da paisagem do teto. 

                Fumávasse e fudia-se muito nas barcas. Os banheiros públicos separados por gênero, objeto de um outro artigo meu aqui neste blog, ganhavam um fetiche particular nas embarcações. Eram os mais democráticos em termos de faixa etária dos frequentadores! Era possível entrar para dar uma simples mijada e sair com a cueca gozada, beijar muito e nunca mais encontrar o(s) parceiro(s) muito antes do advento hedonista de nossos tempos. Dizia-se que todo homossexual niteroiense começava ou vivenciava boa fase de sua vida sexual no banheiro das barcas e disso não duvido não. Preto, branco, pobre, classe média, jovem, adulto, idoso, feio, galã, sarado, gordo, magro demais, todo tipo e para todos os gostos, só saíam de lá mediante a repressão bem esporádica de seguranças que, em alguns momentos, nem queriam reprimir nada, queriam até curtir junto. Era aquele "espalha-brasa" momentâneo e prontamente tudo voltava ao normal. Hoje, com a localização dos banheiros não mais na parte de trás das embarcações e sim de frente para um público sempre, haja vista que a nova barca tem frente dupla e assentos correspondentes, o movimento dos banheiros caiu vertiginosamente. Conta para este fato a diminuição dos banheiros também. Ficar dentro deles fingindo que está mijando ou que está lavando o rosto ou o cabelo na pia por muito tempo acabou significando um estresse para quem quer fazer apenas suas necessidades. Fora as câmeras, onipresentes e oniscientes, que nunca sabemos se estão ali devidamente postas a vigiar.

        As barcas da madrugada eram sensacionais. Não apenas pela necessidade do transporte como também pelo fato de que a vigilância, na época bem eventual ou esporádica durante o dia, praticamente não existia nas madrugadas. Logo, fumar e fuder de madrugada nas barcas, subir no teto ou ficar no banheiro durante toda a travessia, era algo muito mais fácil e confortável. Quem voltava da curtição, noitada, ou como chamam atualmente na gíria importada de São Paulo, "balada" dormia tranquilamente e, não raro, fazia diversas viagens de ida e volta do Rio para Niterói e vice-versa. Era simplesmente esquecido ali até que aquela embarcação fosse trocada por outra e viesse um marinheiro para te acordar e avisar do fato. Hoje em dia, não existem mais as barcas da madrugada porque o governador cedeu às Barcas S/A o direito de não mais executar o serviço, considerado um prejuízo para a empresa.

                Sobre as viagens gratuitas para se ofertar a Iemanjá a devoção do dia 02 de fevereiro, vale ressaltar que foram proibidas por determinação da ex-governadora evangélica Rosinha Garotinho. Jogos no Maracanã não existem desde as reformas infindáveis para a Copa do Mundo e as finais de campeonato de futebol são sufocadas pela polícia em todo o trajeto das torcidas. O único protesto recente em que as barcas tiveram gratuidade assegurada oficialmente foi aquele que interessava ao governador, no caso o da batalha para se manter os royalties do petróleo tal como a legislação sobre o tema desenhava ao Estado do Rio de Janeiro. Neste dia, foram oferecidos bilhetes de graça para a população lotar a manifestação dos bandidos por verbas públicas.


                  Uma das promessas da privatização era construir a estação das barcas de São Gonçalo e, assim, desafogar o trânsito de veículos em Niterói e na Ponte Rio-Niterói. Não construíram e o trânsito só piora. Construíram o terminal de Charitas, uma forma de assegurar o transporte às pessoas mais abastadas, com tarifa caríssima de um transporte "seletivo". Custa R$12,00 para atravessar a baía entre Charitas e a Praça XV. Mesmo assim, sempre lotados, os catamarãs atrasam constantemente e já incomodam até mesmo aqueles que pagam quase quatro vezes a passagem no Centro de Niterói. Com o reajuste previsto para 01 de março de 2012, já autorizado pelo Governo do Estado, as passagens devem subir de R$2,80 para R$4,50 e, mesmo com estes indecentes 61% de reajuste, as barcas continuarão recebendo subsídios estatais. Um na passagem de quem usar o bilhete único (30% do valor serão subsidiados pelo Estado) e outro na construção de embarcações novas, já que a empresa, sempre alegando prejuízos em 14 anos de operação, nunca deixa de ganhar mais e mais.           
                  
                Este pensamento único de que tudo deve servir apenas para dar lucro, sabendo-se que o lucro é apenas para poucos, cria mal-estar generalizado. Não apenas pelo fator econômico da acumulação injusta de recursos nas mãos de poucos, algo cada vez maior à custa de trabalhadores cada vez mais escravizados, motivo que já seria suficiente para protestos diários aqui como vemos na Grécia. Mas também porque quando o capitalismo oferecia acessos livres ou vistas grossas, ainda que restritos a momentos especiais, mostrava respeitar outras formas e possibilidades de felicidade que o ser humano desenvolveu para além de sua lógica restrita. Como libertário, minha defesa é a de que o acesso livre seja permanente e irrestrito, uma idealização que norteia minhas intervenções no mundo com o qual tenho que lidar. Sei que se trata de algo a construir na sociedade antes de exigi-lo de forma limitada a um transporte público apenas. Mas o fato é que as barcas já foram muito mais baratas, eficientes e prazerosas durante o período de administração direta estatal.

               Se havia um cabide de empregos pesado, quem o determinava eram os mesmos políticos impunes que hoje transferem recursos públicos à iniciativa privada. Se o custo econômico, social, cultural e afetivo da iniciativa privada é gigantesco e insuportável, não vejo razões maiores para mantê-la administrando aquilo que de forma enganosa julga ser sinônimo de eficiência. Sabemos que boa parte desses recursos públicos destinados a ela, enriquecem seus empresários, os próprios políticos, não representam melhoria salarial dos funcionários, de manutenção ou de infraestrutura do serviço. Para quê continuar defendendo algo que se tornou uma dor crescente, que começa no íntimo de cada um que se utiliza do transporte, perpassa o custo de vida de famílias e empresas com o valor das passagens e tributos ali embutidos, e chegará, se assim permanecer, à morte de milhares de pessoas por negligência e economia dos custos de manutenção das embarcações?

               É por essas e outras que todos os protestos, ainda que contem com confrontos diretos, são necessários e justos. Em algum momento de nossas vidas, passamos a ceder vida demais a uma lógica que nos sufoca sobremaneira. Parar com essa máquina de homicídios cotidianos é uma determinação que simbolicamente está representada na luta pela cassação da concessão das Barcas S/A e a consequente constituição de uma sociedade de trabalhadores do setor com passageiros e usuários do sistema em torno de uma gestão que não seja simplesmente estatal, na mão dos políticos, nem simplesmente privada, na mão de empresários gananciosos, enganadores e incompetentes. Uma gestão coletiva e socializada, cujo parâmetro seja a qualidade do serviço, o baixo custo e a garantia das liberdades individuais e coletivas devidamente acordadas para o espaço público, num resgate necessário e urgente da dignidade da pessoa humana.