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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 29 de abril de 2012

Quem implora por polícia não quer segurança, quer ditadura

       A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi o nome comum de uma série de manifestações públicas organizadas por setores conservadores da sociedade brasileira em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Supostamente, congregou meio milhão de pessoas em repúdio ao presidente João Goulart e ao regime comunista vigente em outros países. Este conjunto de manifestações fora organizado pela Igreja Católica, pela UDN (União Democrática Nacional, partido defensor do liberalismo econômico, considerado de direita) e por mulheres de empresários, as famosas madames que adoravam um assistencialismo barato mas tinham horror em perder seus privilégios calcados na exploração dos mesmos aos quais direcionavam algumas esmolas por caridade hipócrita. A lembrança me veio à tona para falar de um assunto sempre corriqueiro quando a violência urbana bate às portas da assustada e obediente classe média: as manifestações que imploram por paz nas ruas e policiamento. 

            Antes de mais nada, vamos aos fatos que originaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 1964 (portanto, antes do golpe civil-militar que seria apoiado pelos mesmos partícipes) e destrinchar quais os interesses envolvidos. Por que boa parte da Igreja inflamou seus fiéis contra a suposta ameaça comunista de João Goulart? O que eram as "reformas de base", propostas pelo presidente que tão logo assumiu, substituindo como vice o renunciante Jânio Quadros, e já teve seu poder decepado por um parlamentarismo negociado entre o governo estadunidense, o Congresso Nacional e as Forças Armadas? 

           Pois bem, se a Igreja Católica defendesse os princípios cristãos de forma coerente, certamente apoiaria o projeto de Jango. Decerto, uma parte minoritária de seu escopo apoiou e se posicionou sempre ao lado da justiça social. Outra parte considerável, porém, como se perpetuara nestes dois mil anos se aliando às classes dominantes e fazendo o jogo de apoio político explícito ou omisso diante de barbáries e desigualdades, alimentando preconceitos e desunindo o povo em busca de uma conciliação com quem sempre lhe oprimiu, não tarda em refutar qualquer mudança que signifique mais justiça social. Optam pelas bandeiras moralistas e, nestas, camuflam seus reais interesses de manipulação política das massas. 

         As Reformas de Base defendiam pontos avançadíssimos para o país mas não chegavam a torná-lo uma nação comunista. Entre elas, uma reforma da educação pública que a universalizasse com qualidade; uma reforma econômica que tributasse o repasse de lucros das multinacionais instaladas no Brasil para que o país pudesse usufruir um pouco daquilo que sustentava o Estado do Bem-Estar Social europeu, além da estatização do que fosse estratégico para o país; uma reforma urbana, que abrangesse o fim do déficit de moradias populares regularmente construídas e com garantias de urbanização decente do seu entorno; uma reforma agrária que pactuasse a função social da terra em lei, onde grandes latifúndios improdutivos seriam expropriados para fins de distribuição equilibrada entre trabalhadores sem-terra; e, por último, uma reforma administrativa, que pudesse sanar a chaga da corrupção, do apadrinhamento de cargos públicos e desvios em geral da máquina burocrática. Estas reformas não chegaram a ser implantadas mas anunciadas e temidas, justificando as Marchas com Deus pela Liberdade e, mais adiante, o golpe civil-militar de 1964, que deu novo formato a algumas reformas com o objetivo tácito de calar a boca de quem queria, de fato, uma nação mais socialmente justa e equilibrada diante de suas imensas e potenciais riquezas.  

         João Goulart, por mais que tivesse sido embaixador do Brasil na China de tempos socialistas, era de filiação ideológica trabalhista (populista, nacionalista), portanto advogava um modelo de capitalismo mais próximo de seu mentor político, o ex-presidente Getúlio Vargas, sendo de mesmo partido, o PTB. Os trabalhistas são líderes carismáticos, propensos a uma mediação dos conflitos entre capital e trabalho, de maneira que o trabalhador tenha lá suas compensações pela exploração que sofre do patrão, garantidas pelo governo. São patriotas ou nacionalistas, têm em comum a iniciativa de proteger o Estado Nacional de intervenções e ingerências estrangeiras. Servem a um momento cíclico do capitalismo, pois ficam à espreita do caos social causado pelo ciclo liberal, e se arvoram detentores da solução política quando o desespero assola os países capitalistas. Isto é recorrente aos momentos seguintes ao naufrágio coletivo que os liberais proporcionam pelo seu modelo de acirramento de concentração absurda de riquezas.

         Para se ter uma ideia do que estou falando, quando tratamos da História da República no Brasil, apenas a título de recorte histórico, entre 1889 e 1930 temos um ciclo liberal. Era a República Velha, período em que os interesses expansionistas do capital estrangeiro deitavam e rolavam no país. A partir de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, temos um ciclo trabalhista/populista que perdurará até 1945. Com ele, a industrialização do país e a consagração de direitos trabalhistas tão reivindicados pela classe trabalhadora durante o ciclo liberal anterior. Entre 1946 e 1950, temos outro ciclo liberal, interrompido pela eleição de Getúlio Vargas, agora no poder por deliberação democrática. Os liberais tentam assumir de novo o controle com JK, em 1956, e sentem perdê-lo com a aventura de Jânio Quadros que culminou na renúncia. João Goulart, seu vice, de filiação trabalhista, chega ao poder em 1961. Cortejando trabalhadores e comunistas sem deixar de ser trabalhista, seu problema foi alcançar o poder em meio à Guerra Fria, sendo o Brasil um país estratégico para o domínio estadunidense na América Latina. Assim sendo, interrompeu o ciclo liberal no mundo capitalista, pelo menos a nível local, e aventando a possibilidade de liberdade aos comunistas quando a fase era de disputa política dos blocos hegemônicos capitaneados por EUA e ex-URSS, foi deposto do poder por um golpe de Estado que foi ardilosamente preparado  pela classe dominante brasileira e setores conservadores com apoio estrangeiro para que pudéssemos continuar servindo-lhes dos recursos necessários ao seu próprio domínio sobre nós.

         Ofereço uma ponte para reflexão no tempo e no espaço:  esse preparo ardiloso da classe dominante brasileira, com financiamento gringo, que precedeu ao golpe de estado de 1964 e o título deste artigo "Quem implora por polícia não quer segurança, quer ditadura", uma referência ao caso contemporâneo de apelo das classes médias em marchas por paz e mais polícia, servem aos mesmos propósitos ou não? Não tratamos, em espécie alguma, de igualar o cenário internacional ou o contexto histórico que levaram aqueles atores sociais, em seu tempo, a recorrer a um golpe de estado. O cerne da questão gira em torno do interesse econômico implícito em manter tudo que gera a violência urbana "em paz" ontem e hoje, ou seja, sem profundas e necessárias mudanças na estrutura desigual e injusta da sociedade brasileira. 

           Vejam o quanto é grave a pregnância histórica do mesmo interesse de classe nas duas situações. O que foi pretexto para a  instabilidade de ontem, que culminou no golpe civil-militar, ou seja, a ameaça comunista, é comparável ao pretexto da violência urbana de hoje para instalar algo parecido como solução. Queremos que uma ação enérgica coercitiva do Estado dê conta de micro-proteções locais travestidas de solução para um flagelo nacional, quiçá internacional, que não se resume a indivíduos delinquentes mas é responsável por uma produção em série, verdadeira fábrica  incessante de delinquência, onde a polícia chega, mata um e vê surgirem cinco.  Estas marchas da classe média que pedem paz e mais polícia, assim como as antigas marchas com Deus e pela liberdade, servem apenas à proteção de interesses políticos e econômicos da minoria privilegiada, corroboram com uma repressão de alcance duvidoso quanto à eficácia, à autoria e à natureza dos delitos praticados de alguma forma. Por último, cria uma atmosfera de superpoderes nas mãos de militares e policiais que, uma vez criados nos ambientes institucionais mais corruptos, não virão a estabelecer sequer a ordem desejada mas um terrorismo de Estado, uma perigosa ilusão de proteção e segurança pública, onde os fins justificam qualquer meio. Inclusive a sujeição completa da democracia através da criminalização de inocentes, de opositores políticos, de movimentos sociais e de todos aqueles que reivindicarem para si e para o mundo uma diferença existencial aos padrões moralistas que estiverem vigorando.

         O regime civil-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1988 trouxe muita tortura, perseguição, exílio e morte de opositores, do pensamento crítico e reflexivo, expurgando por longos anos deste país a sua chance de solucionar conflitos sociais históricos. Se fez o bolo crescer, como dizia a coisa do Delfim Netto, não fez a divisão do bolo e esta, sempre adiada, só cumpre o papel de fabricar marginalidade e violência. A corrupção extrema era abafada por um silêncio impositivo, dando a sensação de que o período democrático que o sucedeu foi o único responsável pela bagunça institucional que vivenciamos. Não foi, há heranças gritantes do período, inclusive dívidas monstruosas e formações culturais desviantes e nocivas. Como querer estancar a sangria desatada com mais porrada? Ao inflar o ego da parceria moralista entre cristãos conservadores e policiais e/ou militares sequiosos por sangue e poder, aqueles que vêm recorrendo a parcerias ou métodos destes setores sem olhar para a História e perceber o que já produziram de desgraça no mundo, não sabem o que estão plantando.

           Vale lembrar que Carlos Lacerda, liderança udenista da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, foi logo traído pela promessa de uma intervenção militar cirúrgica e provisória que depusesse João Goulart, estancasse a ameaça comunista e restabelecesse prontamente a democracia no país. Apegados ao poder, financiados pelos EUA, sustentados ideologicamente pelas classes médias temerosas de perderem o pouco que haviam conquistado, associadas à classe dominante na empreitada da defesa tosca do capitalismo selvagem, religiosos e militares ortodoxos compuseram não um cenário de ordem e de proteção às ameaças terroristas tão difundidas. Pelo contrário, uma forte reação às suas imbecilidades autoritárias foi promovida por ninguém mais, ninguém menos, que os filhos dessa própria classe média reacionária, que queria proteção à propriedade privada a qualquer custo mas não conseguiu fazer a cabeça de uma geração de jovens que percebera a contradição econômica do sistema, a ineficácia daquela vida regrada por padrões moralistas como critério de felicidade e, ainda que sem nenhuma ou pouca informação real sobre abusos de autoridade permitida de circular livremente, começou a perceber que quem estava sumindo não era bandido mas o próprio professor, o colega estudante, o jornalista e uma série de opositores que até hoje são objeto de debates em nossa sociedade quanto ao paradeiro, a autoria da operação, a causa ou crime cometido.

          Vale a pena mesmo militarizar o problema da segurança pública de novo? Vale a pena mesmo restringir direitos, deixar que policiais submersos na cultura da corrupção e da tortura, ganhem mais e mais poderes de intervenção nas comunidades, ruas, praças, avenidas, universidades? Eu tenho motivos suficientes para dizer que não. Não resolve o que se propõe a resolver e ainda cria mais problemas, entre abusos e intolerâncias à diferença de opiniões. A intenção deste aporte de investimento na polícia  é solucionar o que gera a violência urbana ou será criar ainda mais violência, já que as guerras só aumentam, ainda que estejamos cada vez mais trancados em casa, cheios de grade, câmeras e sirenes ao redor? Por ter estudado um processo histórico parecido, não semelhante, mas definidor de um novo ciclo do capitalismo, onde à certa altura da democracia, forças conservadoras temeram a capacidade de um governo populista em se aliar a reivindicações trabalhistas, onde a autonomia do país perante os EUA foi temida e recebeu financiamento a título de contra-golpe (aí sim, podemos usar este termo: contra-golpe da dominação estrangeira sobre a tentativa de Jango em implementar as reformas de base e a aproximação com as reivindicações históricas dos trabalhadores).            

          Os atingidos pela ascensão da violência urbana não conseguem perceber (ou não querem aceitar) que a ausência até hoje de mudanças estruturais significativas na desigualdade alarmante (de renda e de tratamento!) são a principal causa de tamanho conflito entre quem tem demais e quem não tem, ficando no meio quem tem alguma coisa e só olha pro próprio umbigo atrás de mais. Se estamos deixando cada qual entregue a uma perspectiva individualista, o que produzimos de efeito colateral se não a barbárie? Ora, sem vínculos que assegurem o ganha-pão do dia-a-dia, sem garantias trabalhistas (trabalhadores são cada vez mais desvalorizados e assistem ao crescimento de poder e renda na mão de bandidos), sem estudo de qualidade e sem assistência adequada dos serviços públicos em geral, não será a polícia o único serviço, aquele que chega para prender, bater, torturar e matar, que estancará o processo de degradação do caráter humano. Logo, os métodos coercitivos que sempre foram implorados pela classe dominante e pela classe média afoita por mais e mais não passam de reivindicações por autoritarismos que nunca resolveram os nossos conflitos históricos. Pelo contrário, só serviram para nos subordinar ainda mais a sádicos nativos que se locupletaram da condição de colônia, a serviço de sua própria ganância e vaidade, além de repassar dividendos aos maiores beneficiados, que são os sádicos das históricas metrópoles.

        É por essas e outras que reivindico o distanciamento da polícia e dos militares do processo de reestruturação necessário, aquele que será capaz de conter a violência urbana aos níveis de barbárie a que chegamos. Será preciso, ao contrário do investimento maciço em segurança pública repressiva, rever nossa legislação sobre drogas, liberando-as dessa máquina de corrupção e guerra. Será preciso mudar leis e punir com pena de morte os corruptos em geral, sendo estes genocidas a prioridade das políticas de segurança pública. É preciso reverter imediatamente o patrimônio roubado para ações efetivas sobre as necessidades de nosso povo. 

        Sem isso, o que ficar na mão dos moralistas cristãos, inclusive dos nazi-fascistas das forças de repressão, só resultará em mais guerra e declínio da qualidade de vida de nosso povo. Precisamos nos livrar de retrocessos. Eles não são soluções para o problema e têm efeitos colaterais bem conhecidos e estudados por nossa História recente. É hora de investir em inteligência, sensibilidade e solução efetiva. Enxugar gelo, torturar, prender e matar só vêm proporcionando mais ações criminosas. Ademais, a polícia não tá com essa moral toda quando sabemos o quanto é corrupta. A mesma classe média que assistiu aos filmes "Tropa de Elite" 1 e 2, que não vivencia mas sabe dos abusos da polícia nas comunidades mais pobres, é aquela que vai às ruas pedir reforço deste tipo de policiamento???? Francamente, quem implora por mais polícia nas ruas, quando sabemos que quem a comanda são os bandidos e corruptos, não quer segurança, quer ditadura.  Os filmes citados acima poderiam ser objeto de reflexão destes movimentos por mais policiamento. Paz e polícia não combinam. Vamos financiar milicianos para quê? Trata-se de uma pseudoproteção que pode custar muito mais caro em pouco tempo a uma sociedade cuja maioria ainda não está armada. E nem deve.