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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 24 de junho de 2012

Identidades de gênero na pós-modernidade: aprimoramento, resistência e colapso



          O direito à experimentação sexual tem sido uma necessidade histórica da humanidade que, nos anos 60, alçou forte insurgência cultural, sendo as décadas seguintes de aprimoramento, resistência e colapso. É o que tento problematizar neste ensaio.


         A concepção cristã sustenta há dois mil anos forte condenação ao prazer sexual. Faz uma opção política pelo enfraquecimento emocional dos indivíduos  que dela assimilam culpa ou erro. É uma boa serviçal dos poderosos na História. Seu objetivo é fragilizar para dominar com êxito. Sabem os que buscam o poder sobre a humanidade que detê-la por força física nem sempre foi tarefa exitosa, o que leva ao complemento ideológico. Convencer-se da necessidade de se reprimir é mais útil e eficaz que reprimir forçosamente a quem não se convence da necessidade de uma ordem. Resta saber a quê ou a quem serve a ordem. Se não à maioria, se não às vítimas de seus caprichos, se não a qualquer um dos indivíduos em sociedade, ela não pode ser continuada. Não continuar é resistir com coragem e sinceridade; é negar-se a elaborações relativistas que só fortalecem a ordem por omissão ou conivência por fraqueza. 


         Assim, vimos parcela da humanidade ocidental - esta de formação cristã e capitalista - insurgir-se contra seus pilares culturais básicos nos anos 60. Contra a ordem do matrimônio até que a morte o separe, vimos a insurgência do amor livre. Contra a ordem heteronormativa, vimos ascender a visibilidade, a tolerância e o respeito às mulheres, aos homossexuais e aos bissexuais. Contra a ideia de família que se estrutura e se preserva unica e exclusivamente por laços consanguíneos, vimos o levante de que todo ser humano pode se associar e se reconhecer enquanto família. Contra o domínio do espaço privado para se satisfazer sexualmente, sempre restritivo e sufocador da realidade, vimos insurgir-se a necessidade do prazer em qualquer lugar, da demanda pela sinceridade do que  afeta. 


       O espaço público ganhou cores e riqueza de possibilidades com as demonstrações públicas de afeto das mulheres solteiras, sendo mães ou não, das divorciadas, daquelas que só se satisfaziam com a variedade de parceiros, ainda que não se prostituíssem como as milenares profissionais. A mulher conquista a liberdade sexual e, com esta, a disposição necessária para subverter a condição de dominada por um homem que tudo podia desde que não fosse em público. Quero dizer, por um homem que, ainda que no comando do sistema, cheio de paranoias e bloqueios mentais. 


          Os passos tomados pelas gerações seguintes aos anos 60 foram no sentido do aprimoramento e da universalização destas conquistas. Afinal, elas ainda eram uma conquista de vanguarda, de uma minoria corajosa e revolucionária, que foi capaz de trazer o tema ao debate e à prática, arriscando sua própria pele e relações interpessoais. Veja que ainda não toquei nas resistências cristãs nem na apropriação capitalista do fenômeno social! A disposição desta minoria de enfrentar o "status quo" sempre foi enorme por conta de um segredo que se revela por trás dos interesses moralistas religiosos em condenar liberdades sexuais: justamente por conhecer da capacidade humana em se superar, em criar e resistir, em se subverter de toda e qualquer dificuldade imposta, que a gente limitada ao poder material busca incessantemente o domínio do espírito do outro. Neste ponto, o conhecimento da História, sobretudo sobre o que experimentamos enquanto espécie antes da  hegemonia do cristianismo e do capitalismo, nos oferece fundamentos libertadores do espírito. 


         Quem se realiza sexualmente, reverbera potencialidades edificantes. Quem não se realiza, reverbera angústias e injustiças. Se conhecermos bem das leis da espiritualidade, presentes em todos os manuais religiosos porém manipulados pelos sacerdotes em busca de seus respectivos interesses materiais, veremos que a condenação às liberdades sexuais serve a certa doutrinação do espírito revolucionário que carregamos dentro de nós. A revolução que significa estar feliz, entendendo felicidade sempre como busca incessante do espírito, concretizada em espaços de tempo e circunstâncias definidas, faz do sujeito um ser indomável por quem objetiva seu controle material. Em outro aspecto diretamente relacionado, faz do mesmo sujeito um ser capaz de realizar o que deseja espiritualmente no plano material. Ao contrário deste, o deprimido, o resignado e o manipulador, céticos da possibilidade de mudança pelo afeto, são seres domáveis por outrem que criam diversas dificuldades à saúde da coexistência humana sem realizarem seus desejos mesquinhos com sucesso. Correm atrás eternamente de uma renovação pelo consumismo da energia alheia, como vampiros, mantendo-se constantemente mal. 


        Uma característica comum aos seres deprimidos, resignados e manipuladores do interesse material é a previsibilidade de seus passos. O intuito do sistema do mal-estar profundo (este que só gosta de Cristo morto na cruz e do dinheiro como único e verdadeiro Deus) é condicionar todos os seres, mapeá-los, vigiá-los e sufocá-los ao máximo. Reduzir a existência espiritual das coisas existentes à condenação simplista dos falsos moralismos ou à condição limitada de significados, que é a condição de mercadoria capitalista, onde tudo só pode ter valor se o valor for o da representação de sucesso financeiro, cria uma atmosfera mórbida de assimilação de fracassos, culpas e ressentimentos que descambam na violência sob as mais diversas manifestações possíveis. O ser consciente de sua matriz energética natural, aquela que pode ser encontrada no alimento, no espaço e nas relações humanas saudáveis, não se permite à manipulação tosca e frágil das mesquinharias materiais ou dos pensamentos destrutivos. Investe sobre o outro a felicidade que pretende para si pois sabe que, no universo de gozos humanos, há uma lei espiritual próxima à lei da Física de Newton, aquela que trata que para cada ação corresponde uma reação. O libertário espiritualista desenvolve um agir imprevisível, embora pautado na consciência de como suas atitudes reverberam no cosmos, de maneira que não se submete aos apegos do domínio material. Por tal é que investe na autonomia existencial e no mundo colaborativo das diferenças, sabendo reconhecer o valor daquilo que não rende ou custa dinheiro e poder ilusório. Sabe que passam pelo sexo prazeroso energias vitais e invisíveis, não restringindo sua consecução em regras inúteis à felicidade por que pautam os moralistas cristãos, nem reduzindo o prazer sexual a uma mercadoria descartável, de significado restritamente financeiro ou espetaculoso, que precisa da falsidade para fazer prevalecer no mundo. 


           É sabido que o objetivo único da  mercadoria é agregar mais e mais valores materiais. Assim, ela se difunde em espetáculos de publicidade enganosa e de extrema fluidez de sentidos, em exibição quantitativa, em pressa e em proporcional esvaziamento afetivo. O sexo enquanto mercadoria não é apenas o produto vendido pelas prostitutas mas um sentido de encará-lo até por quem não tira dele seus sustentos materiais. Quando equiparamos todas as ações humanas à lógica de produção das fábricas, da especulação financeira, da apropriação privada do que é produzido pelo suor alheio, estamos transformando e reduzindo os sentidos espirituais que nos motivam a pensar, a sentir, a elaborar e a agir sobre nós mesmos e sobre o mundo. Sexo enquanto mercadoria seria o sexo apressado, afundado na perspectiva da publicidade ostensiva (e, portanto, paranoico quanto ao convencimento do outro sobre a representação desejada), em quantidade semelhante à produção em série das fábricas para consumo, aquele que opta em esvaziar de sentido afetivo e racional por entender como único valor de existência o que se projeta na apropriação material do outro por domínio. Sendo assim, pode alcançar a condição restrita de mercadoria o sexo monogâmico também. Não é uma prerrogativa dos tidos como "promíscuos" a atrofia sexual dos sentidos existenciais. Um sólido matrimônio cristão que seja calcado num ciúme doentio, numa relação de propriedade privada, numa submissão do outro para satisfazer interesses sociais (publicidade enganosa), na violência mútua calcada em falsidades reveladas, numa obrigação posta como de desejo divino que quase sempre resvala na atuação incoerente por debaixo dos panos, faz seu papel de mercadoria também. Afinal de contas, o que menos interessa à mercadoria é a coerência entre o que demonstra ser e o que se é. Seu valor maior continua sendo sua capacidade de agregar representações materiais ilusórias. É daí que podemos compreender o quanto o moralismo cristão pôde ser assimilado e disponibilizado aos interesses capitalistas, atuando em parceria pela manutenção de escravos deprimidos de tão obedientes. Faria muito melhor se seu foco fosse o amor ao próximo de verdade.


        A partir dos anos 90, presenciamos o crescimento da concepção individualista sobre todas as relações existenciais humanas. Aprofundou-se, em verdade, a mercantilização da vida, ou seja, a apropriação de tudo o que é vivo pela lógica restrita dos valores de mercado. Foram esvaziados do direito à existência quem ou o que não se adaptasse de corpo e alma, ou ainda, cinicamente. É propaganda enganosa do mercado sua relação direta com a qualidade do que produz, logo convencer o outro não está associado à coerência prática do que se sustenta em teoria. Sendo assim, o espaço da enganação ganhou reforço à medida que cooptava líderes e referências que outrora associavam-se a uma sociedade melhor, mantendo de suas antigas insurgências sociais apenas o discurso. 


          No âmbito das identidades de gênero, assistimos à profusão de um sem número de possibilidades que passaram a se apresentar como alternativas à sociedade heteronormativa (normatizada pelo padrão heterossexual). Quem lhes faz a defesa atribui ao indivíduo a primazia sobre sua própria identificação, o que possibilitaria ao sujeito se dizer heterossexual mas se comportasse na esfera privada como homossexual, por exemplo. Acredito que continua sendo um direito do indivíduo aceitar ou rejeitar a carapuça que lhe cabe. Problematizo esta defesa a partir do momento que encontro nela a sustentação da resistência moralista cristã escondida no ser híbrido. Na prática, temperada pelo sentido cínico das mercadorias. Vejamos o caso do indivíduo que diz "não ter rótulos", o que pressupõe ser aberto a experimentações sexuais com pessoas do mesmo sexo ou de sexo oposto, na condição versátil, ou ainda, com bichos, plantas e objetos, já que "não ter rótulos" nesta seara fertiliza a imaginação do desavisado. Quase sempre se verifica nestas pessoas o mesmo comportamento dos rotulados, ou pior, a primazia da exposição pública definida pela heteronormatividade. Se praticam outra relação que não a heterossexual, esta outra possibilidade é ainda velada e cheia de paranoias. Se são adeptos do amor livre, ainda desenvolvem ciúmes, subordinação e monogamia, pelo menos exigindo esta do(a) parceiro(a). Onde está a revolução sexual dos anos 60 nestes comportamentos? Houve um aprimoramento, uma resistência a ou um colapso daquela perspectiva? Até que ponto a multiplicidade de identidades de gênero vem servindo à libertação sexual humana e até que ponto esta vem servindo ao tradicional esconderijo por onde permitimos, de forma restrita, velada e hipócrita, as proibições históricas do moralismo cristão?


         O mais comum entre diversos jovens que conheço é dizer que não são gays mas que respeitam esta identidade de gênero. Mesmo entre os que notoriamente o são! Não caem na real, acreditam conseguir ludibriar a inteligência do outro, parecem ter grande medo dos efeitos da insubordinação à disciplina a qual foram acostumados por suas famílias e amigos desde pequenos a obedecer. De tanto ouvirem "viadinho", "bichinha", "boiola" e os próprios palavrões com referências depreciativas às liberdades sexuais, creio que foram severamente doutrinados. Ora, um gay não engana ao outro, sobretudo porque o tempo e as experiências de vida fazem com que passemos a reunir um sistema de códigos próprios, afora a intuição latejante, típicos das resistências necessárias a todo e qualquer oprimido. As liberdades sexuais também vêm assegurando a legitimidade do que se assume gay de manifestar seus desejos sinceramente.  Paralelamente, porém, é corriqueira, mas explanada só em ambientes próprios, em rodas de intimidade ou em ambientes de pouca instrução, sobretudo nas periferias e igrejas cristãs, a defesa do machismo e da homofobia como naturais do homem. A disputa de concepções está posta no campo social, que legitima um discurso politicamente correto por força de lei e de imposição do saber relativista, que cada vez menos afirma convicções mas também rejeita a desqualificação total dos sujeitos pela orientação sexual. Nesta confusão conceitual, racional e afetiva, prevalece a prática paranoica do desejo (quando esta poderia ser libertada à plena potência) e um discurso publicitário do Eu submerso em incoerências vacilantes. 


           Assim, quem pratica o desejo homossexual é um número vinte vezes maior de pessoas do que aqueles que reivindicam  a identidade de gênero homo ou bissexual. Entre estes que praticam, em sua maioria, não podemos distingui-los pelo jeito afeminado (se homens) ou masculinizado (se mulheres), ou pela condição de solteiros eternos, como até então sustentaram os estereótipos da heteronormatividade. São homens e mulheres que estão por aí, mais normais do que parecem, muitas das vezes fazendo discurso machista e homofóbico, pois o curioso é como acreditam se esconder com eficiência reproduzindo sistematicamente o que é projeção típica de desejos profundos renegados. Quem muito fala daquilo que odeia, em verdade revela o que ama. E como toda mentira tem perna curta, a revelação da orientação sexual real é inevitável. Pode ser adiada a um custo que só aumenta no tempo mas é inevitável. Incrível é que, de tão abafada em si e reiteradamente refutada no outro, a orientação sexual verdadeira do Ser, ao se revelar, traz transtornos muito maiores aos que se envolveram com o Ser reprimido no tempo. As vítimas da autorrepressão sexual  passam a ser instrumentos de chantagem de michês, garotas de programa, prostitutas, travestis, amados e amantes ocasionais,  que foram rejeitados em nome da opção publicitária enganosa, e agora passam a ameaçar casamentos, namoros e até expectativas outras (por exemplo, profissionais, como é o caso dos militares, padres e freiras bi ou homossexuais) decorrentes da assimilação de um núcleo familiar heteronormativo de fachada.


           Assusta saber que a opção dos seres humanos ainda seja pela dor e não pelo amor ao próximo como a ti mesmo. O efeito do moralismo cristão sobre a mentalidade coletiva, em relação às liberdades sexuais, não só lhe pertence como lhe foge o controle do alcance. Se foi deliberadamente arquitetado na educação dos mais jovens, em missas e cultos que se propagam há séculos, também o foi racionalizado cientificamente pelo nazismo durante parte do século XX. A violência cresceu na proporção do controle ideológico plantado, pois foi estabelecendo não apenas um auto-controle, um sentimento de culpa individual daquele que destoa de suas padronizações infelizes, como também gerou divisões, segregações, perseguições organizadas por um lado, que estão por aí torturando e matando em tantos e tantos lugares em busca da limpeza étnica que, acreditam, alcançará seus padrões ideais. Basta estudar História para se ter uma ideia do quão fracassadas foram estas necessidades de padronização humana mas eles insistem, é parte da ignorância que representa a competição pelo poder. 


          Por outro lado, estamos também formando guetos de resistência, onde uma cultura sexista tenta denunciar e acabar com a outra para que se implante uma nova, sob a mesma lógica de apenas substituir quem manda na normalidade. 


           Entre estas perspectivas, só posso afirmar minha identidade homossexual sem pretendê-la única nem muito menos dominadora da espécie humana. Ela é a minha identidade porque é como me sinto realizado sexualmente, sem simulações reducionistas, disfarces inúteis ou modismos, fortalecendo meu espírito para tantas e tantas lutas que não têm a ver com o que realizo na cama mas que deste depende para ter pleno êxito espiritual. Sendo assim, minha atuação no mundo é relacionada à naturalização da orientação homossexual, não sendo esta um horror a ser temido nem evitado, muito menos um espetáculo a ser disponibilizado com pressa, culpa, compromisso com a quantidade, a mentira e a angústia. O que tenho de bom em mim eu não vendo, eu divido para multiplicar, no mundo colaborativo, o segredo de uma trajetória que não culminará em depressão ou servilidade.                               


                         


                 
         

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Ascensão social ilusória: o projeto político neopopulista desde o Plano Real

         O PSDB, quando esteve no poder, não tinha a coragem, a circunstância histórica, a base social de construção que o PT tinha para manipular e trair o povo na condução do projeto político neopopulista em curso. Não bate palma para o PT por puro ressentimento quanto à exclusão do comando de poder, o banquete de cargos e verbas que perdeu, já que, quanto à essência do projeto político de manutenção do acúmulo crescente de riquezas nas mãos dos mesmos, ambos têm total e completo acordo. Diferem pontualmente, não estruturalmente. Buscam uma bipolaridade partidária no Brasil semelhante àquela que ocorre nos EUA entre republicanos e democratas. A intenção é servir do mesmo expediente dos estadunidenses: cada um assume a dianteira quando o processo capitalista assim o exigir. 

         Lembro aos leitores que "populismo" é um modelo de fazer política muito tradicional na América Latina. Também chamado de "trabalhismo", ele encontra terreno fértil nos traços culturais de nosso povo, extremamente crédulo em líderes salvadores (à semelhança da imagem do Cristo) quando deveria acreditar mais na sua própria capacidade de união, organização, luta e superação do que lhe oprime. Ficar esperando que um líder faça isso por todos é depositar confiança e poder demais a quem é corruptível, falho, incapaz de fazer valer as necessidades de cada indivíduo em sua infinita potência. É desta mistificação religiosa que bebe nossa cultura política da decepção eterna com os eleitos, empossados ou impostos, populistas ou não. Os populistas são aqueles políticos que se aproveitam mais disso, do desconhecimento histórico de suas intenções, práticas e resultados. Eles têm em comum o alimento ao ilusionismo temporário da expectativa do privilégio aos mais pobres, estimulando políticas ilusórias de ascensão social  dentro do capitalismo. Apresentam-se como figuras carismáticas,  simpáticas, bem humoradas, tolerantes com as diferenças, mas tudo isso não passa de falsidade. São, em verdade, extremamente autoritários. Quem fecha com eles, perde sua autonomia crítica, é obrigado a aceitar reduções significativas em seus desejos. De preferência, deve permanecer quieto diante das maiores injustiças, abusos de autoridade e insatisfações próprias. Quem não fecha, é perseguido sem dó nem piedade. Só uma pequena parcela, mesmo dentre aqueles que fecham com ele, ganha, de fato, os privilégios prometidos. Há uma repetição da malandragem na  essência para que esta seja adaptada, em sua forma, às necessidades do novo contexto histórico, político, cultural, socioeconômico em que ele se apresenta.   

        Os populistas sempre estão presentes na sociedade, alcançando o poder de acordo com a necessidade dos grandes donos do capital. Sempre que estes se sentem ameaçados com a desigualdade que eles próprios plantaram, recorrem aos seu serviços. Há uma alternância de método dentro do capitalismo para que todo mundo continue gerando riqueza para poucos. Em ciclos de 20 a 30 anos, especialmente no caso brasileiro, permitem a prática dos direitos democráticos para depois restringi-los novamente. São nestes momentos de grave tensão social por culpa das desigualdades, quando é necessária a restrição dos direitos democráticos, que os populistas ganham peso, apoio do capital e são difundidos como grandes salvadores da pátria. Assim, eles ascendem ao poder fazendo demagogia no lugar de resolver o que gera desigualdade, injustiça ou abuso. Aliviar o sofrimento dos mais pobres mantendo-os dependentes de políticas assistencialistas, por exemplo, é uma tática recorrente. Outra opção é estimular o consumo popular de mercadorias através de créditos impagáveis, que mantenham a servidão dos mais pobres por dívida. Populista não gosta de indivíduos críticos e autônomos. Assume riscos políticos ou posições polêmicas se  entender que estes têm algum respaldo significativo na mentalidade mediana de seu povo. Seja qual for sua posição, ela vai variar sempre na defesa do interesse dos mais ricos, nem que, para efetivar este destino comum de seus passos, ele recorra a arroubos fantásticos, atitudes que não vão agradar tanto nossas elites mas que se tornam pontualmente úteis à perspectiva de perpetuação de seu domínio sobre a classe trabalhadora. É como diz o ditado popular: "preferem perder os anéis para não perderem os dedos".

              O neopopulismo (neo = novo) aqui definido reúne uma característica curiosa em comparação às práticas populistas experimentadas por Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, para ficarmos nos exemplos de lideranças populistas de nossa história. Ele mescla aspectos da política liberal (oriunda do liberalismo econômico, um modelo de capitalismo que prega o Estado Mínimo e a máxima privatização das relações econômicas e sociais) quando sustenta privatizações, concessões de serviço público, quebra de direitos trabalhistas históricos (tanto no serviço público quanto na iniciativa privada), o livre mercado apenas e teoricamente regulado pelo Estado, com políticas assistencialistas que podem ser exemplificadas nas bolsas de auxílio aos mais pobres; o aumento de vagas no serviço público que resta após o que foi privatizado; o fortalecimento do aparelho repressivo (polícia e forças armadas) para conter revoltas e criminalizar movimentos sociais, ao mesmo tempo em que "dá conta" do enorme contingente de desempregados e subempregados que se marginalizam. "Dar conta" significa bater, prender, traumatizar e matar; inventar crime para fazê-lo quando não o encontrar. Isto já é política implementada por nossas polícias no cotidiano das comunidades.   

         É a primeira vez que os populistas brasileiros não fazem uma ruptura mais radical com o modelo de Estado Mínimo moldado por seus antecessores no poder, os liberais. Este é um fenômeno que pode ser observado no Brasil, no México e na Colômbia. Pode ser que estejam apenas introduzindo o que ainda pretendem. Nestes países, segue o avanço de um populismo que tenta manter contratos  fixados pelo arranjo macroeconômico dos liberais. É uma inovação que custa um preço. Um exemplo concreto pode ser observado na flexibilização das leis trabalhistas na prática, sem mudanças legislativas aprovadas mas com uma conivência incrível na impunidade, seja por leis que emperram processos e promovem a lentidão do Judiciário, seja por manipulação de sindicalistas pelegos, seja pela corrupção de fiscais, servidores públicos e juízes. Nunca se sonegou tanto FGTS, INSS, 13o salário, 1/3 de férias, para ficar em alguns direitos trabalhistas consagrados em lei a quem tem carteira assinada. Nunca se fugiu tanto da carteira assinada e, quando ela é assinada, ainda assim, não corresponde ao pagamento dos direitos trabalhistas. Nunca se praticou tanto assédio moral no mercado de trabalho, supostamente em busca de eficiência e produtividade, coisas incompatíveis com os maus tratos praticados contra o trabalhador. Nunca se viu tanta dificuldade do patronato em cumprir com o pagamento em dia de salários e isto não se deve a um grande número de falências ou insolvências das empresas. Pelo contrário, é assegurada a capitalização daquilo que é dívida das empresas, seja com o governo, seja com os trabalhadores, no tempo que o Ministério do Trabalho, o Poder Judiciário e os órgãos de fiscalização em geral levam  para exercerem seus papéis. Estas empresas aplicam o dinheiro da sonegação e do calote em fundos que o fazem multiplicar o valor original do devido. Quando condenados a pagar, ganharam muito mais do que deviam, apostando na alta rotatividade do trabalhador cheio de medo de perder seu ganha-pão. Em compensação, àquele que perdeu o emprego e se encontra em situação precaríssima, oferece-se um suporte de assistencialismos do Estado que o mantém comendo, indo e vindo e na expectativa de algum outro privilégio prometido. Não há crise econômica neste modelo: ele é concentrador de riqueza por ganância infinita e as consequências sociais que configuram a suposta crise foram planejadas, estão postas desta forma para manter a desigualdade extrema, tendo na opção política da sociedade a sua conformação e resignação. O grupo que o promove planeja um genocídio daquela parcela da população que julga inútil, incompetente, excessiva para a sustentação do planeta, completamente dispensável a existência.

        Outros países latino-americanos, como a Venezuela, o Equador, a Bolívia e a Argentina, cada qual em seu ritmo e especificidade, avançam mais no que seria a aplicação do histórico populismo do século XX. Estes vêm estatizando o que havia sido privatizado, modificando e tornando mais rígidas leis e proteções ao trabalhador nas relações trabalhistas, além de avançarem no controle estatal de sindicatos, empresas privadas, movimentos sociais e indivíduos. Vale ressaltar que o nacionalismo é uma das fortes marcas dos populistas. Logo, a invasão do capital estrangeiro é mais contida no período em que hegemonizam a política em favor de grupos capitalistas nacionais, devidamente capitalizados pelo Estado, via bancos oficiais ou créditos específicos. Porém, a cada benefício concedido à classe trabalhadora, corresponde uma diminuição real de sua liberdade e autonomia, uma asfixia de seu tempo livre, de seu lazer, de seus protestos e resistências. O mesmo procedimento ocorre ao conjunto da sociedade de algum modo mas o seu objetivo-fim é a sustentação e a reorganização das forças produtivas para que estas possam seguir adiante após o esgotamento de um ciclo que lhes permitiu lucrar sem a intervenção estatal. Permitiu lucrar tanto que asfixiou a classe trabalhadora, gerando intensos conflitos sociais, e assim fazendo com que todos novamente passem a implorar por mais intervenções estatais na economia e, portanto, pelo retorno dos populistas. 
    
         Claro, a sugação fica tão grande que ninguém consegue mais pagar nada. É a hora que chegam os "salvadores", mexem na estrutura, pisam em quem tiver na frente e contra mudanças, levam na lábia e na base de migalhas as multidões de necessitados, negociam com os donos do poder as compensações por eventuais perdas, refinanciam ou anistiam dívidas. É claro que as vantagens concedidas pelo Estado aos empresários, com o objetivo de recuperarem-se, é infinitamente superior às vantagens concedidas à combalida classe trabalhadora. É esta diferença que o trabalhador comum, por pouco conhecimento ou alienação intensa do próprio universo e produto do seu trabalho, geralmente não reconhece, sendo facilmente convencido por caridades desproporcionais aos ganhos que poderia estar assimilando. 

       Um modelo de sugação da humanidade pelo capitalismo estava centrado na hiperinflação. No Brasil, até o Plano Real, instituído em 1994, este modelo corroía os ganhos de quem vivia da produção na sucessão desenfreada de reajustes de preços e tarifas públicas. O Plano Real foi uma mudança deste paradigma de sugação em busca da manutenção da mesma. Ele se estabeleceu numa combinação do governo com o setor privado para deslumbrar o povo com uma ilusão de ascensão social por capacidade de consumo. Chamo de ilusão porque seu objetivo foi apenas uma mudança de método de exploração, um rearranjo das forças produtivas para que nossa classe dominante continuasse lucrando e mandando. Trocamos o reajuste desenfreado de preços e tarifas por uma estabilização destes ao custo de juros altíssimos aplicados às prestações de consumo, financiamentos e refinanciamentos de dívidas. Isto quer dizer que, às vésperas das eleições de 1994, quando o Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso era o preferido das elites para presidente da república, estas se utilizaram de um artifício populista que iludiria o pobre naquela expectativa de ascensão social meteórica que é parte de nossa cultura. Com isso, asseguraria o apoio popular necessário à sua eleição e também à implementação do projeto neoliberal no Brasil. 

          Repare que os capitalistas podem até se filiar ideologicamente ao modelo liberal, ao modelo populista ou ao modelo social-democrata (este é o que defende um "equilíbrio democrático" aos interesses dos outros dois modelos). Isto, porém, não os impede de se utilizarem de artifícios de um modelo ou de outro, ainda que contraditórios ao que defendem por ideologia, quando se faz necessária a manutenção primordial de seus interesses de domínio e sugação da classe trabalhadora. Assim, quando o contexto histórico exigiu a aplicação dos princípios  liberais e a manutenção de políticos que lhe fossem interessantes, providenciaram um artifício populista - o Plano Real- que pudesse dar conta do apoio popular necessário. Em seguida, levaram os princípios liberais à risca, privatizando, destruindo direitos consagrados, diminuindo a presença do Estado na economia e na rede de serviços essenciais. Com o tempo, assimilaram - ainda que timidamente - algumas propostas do PT no sentido de contrabalancear a enorme desigualdade proporcionada. O Bolsa Família teria sido implantado originalmente pelo governo de Cristóvão Buarque (na época, do PT) no Distrito Federal com o nome de Bolsa-Escola. Fernando Henrique o tornou um programa federal, assim como o Vale-Gás. Ao chegar ao poder, o PT apenas reuniu estes benefícios assistenciais e ampliou seu alcance em número de famílias beneficiadas.  Apesar de contrário ideologicamente às bolsas de assistência, o PSDB foi incapaz de assumir o risco político de dizer que acabaria com o programa ou que estabeleceria limites ou restrições durante as campanhas de José Serra à presidência. Hoje seria muito difícil, tanto para o PT quanto para o PSDB, abrirem mão do programa porque ele alcançou resultados satisfatórios na redução da extrema pobreza, além de estabelecer uma rede de subordinação do eleitor ao político do município (responsável pelo cadastramento e pelo acompanhamento dos beneficiados), do Estado e do plano federal, como em cascata, já que, em diversos casos, prefeituras e governos estaduais fazem complementação das bolsas federais com suportes específicos. 

     O Plano Real reconfigurou a economia para que os lucros dos patrões se estabelecessem mais sobre os juros que sobre os preços. Com isso, pôde oferecer a capacidade de planejamento para o consumo à prestação (coisa impensável nos tempos de hiperinflação) mas o custo disso foi a alta concentração de riquezas sobre os setores que sempre viveram da sugação de juros: os bancos. As empresas que viviam de produzir mercadorias tiveram de se adaptar ao fato de que a compra e a venda destas não alcançaria mais o grande lucro de outrora. Continuariam a lucrar mas nada comparável ao que lucravam os que adquiriam títulos da dívida pública, por exemplo, cujo valor o governo oferecia para se capitalizar imediatamente sob a promessa de devolver o dinheiro pago pelos particulares sobre os títulos com juros altíssimos. Todas as empresas, de uma maneira ou de outra, passaram a especular, a conviver com a prioridade nas aplicações do mercado financeiro. Seja pela aquisição de títulos públicos, seja pela oferta de seu próprio patrimônio em ações nas bolsas de valores, seja pela sonegação de direitos e impostos para capitalizarem em fundos específicos. 

        Este novo modelo iludiu e levou o nosso povo à miséria e à convulsão social na medida que prometia aumento da capacidade de consumo, por um lado, e, por outro, restringia o pagamento pela força de trabalho em função da nova prioridade de lucro das empresas. Se era possível parcelar uma compra em sessenta vezes ou mais, tornou-se difícil manter-se no emprego, receber o pagamento em dia, saber se receberia direitos trabalhistas a tempo. Para este sistema, trabalhador é custo, já que o lucro maior não vem mais da força produtiva tanto o quanto passou a vir da especulação financeira. Logo, para que a inadimplência generalizada não explodisse com o sistema, além de esmolas governamentais,  vimos um crescente incentivo para que o trabalhador fizesse mais horas extras, acumulasse serviços, diminuísse seu tempo de lazer ou de convívio familiar, para receber o mesmo ou ainda menos do que recebia antigamente por menos horas de trabalho. Para não dizer do crescente trabalho ideológico de convencimento e de perseguição a quem se opusesse a esse ritmo suicida! Assim, o fomento do moralismo sobre desocupados se acirrou, atribuindo culpa individual por seus fracassos. Ora, se houve e haverá sempre aquele que não fez ou faz por onde merecer, o que mais se verificou da implantação do Plano Real até os dias de hoje tem sido a punição daquele que sempre foi trabalhador responsável e honesto com o desemprego, o assédio moral, o subemprego e a culpa individualista por seu fracasso profissional. O sistema não assume que o problema não está no indivíduo incompetente ou irresponsável, mas sim na forma como ele próprio - o sistema - recompensa mais o dinheiro sugado e guardado, inventado pois multiplicado na porcentagem estabelecida por alguém, e cada vez menos o que é fruto da compra e venda de mercadorias produzidas pelo trabalho humano.

          É por isso que é tão difícil manter o jovem concentrado num projeto de conquistas graduais, através do estudo e do trabalho, como se fazia em outros tempos, quando o modelo capitalista assegurava relativa ascensão social a quem se empenhasse por estas vias. Os jovens percebem o quanto é penoso (e não compensatório) estudar, trabalhar honestamente, construir projetos de vida a médio e a longo prazos dentro do atual modelo. Veem o tempo todo o exemplo mais próximo do cara estudado - o professor - mendigando reajustes e respeito mínimo dos governantes, dos pais e de alunos, da sociedade como um todo, que desqualifica o profissional do qual mais dependem o conhecimento qualificado para interagirem no campo social. É proposital o ataque à educação pública, pois seus efeitos são temidos por quem tem na mente a obsessão pelo genocídio da maior parcela humana, aquela que julga dispensável e incômoda a existência. Saber confere poder ao ser humano, um poder muito maior que o do dinheiro, e por saber disso, o sistema faz de tudo para que você não conheça suas artimanhas e crueldades. Seu objetivo maior, num retrocesso histórico incrível,  é administrar escravos voluntários ou matá-los ao se tornarem numerosos para além do necessário à concentração de riquezas.

         A ascensão social esteve e está ainda atrelada no imaginário popular, em função do tempo em que o modelo anterior de capitalismo vigorou, aos diplomas. O PT no poder explora essa cultura arraigada de forma populista, oferecendo facilidades de acesso aos mais pobres nas universidades, mas o faz em detrimento da qualidade do ensino ofertado. Para fazer estatística a exibir ao mundo, entope as universidades de gente cujas famílias nunca puderam alcançar o diploma, o que mais uma vez as ilude na expectativa de que terão a tão sonhada ascensão social da classe média pelo simples fato de ostentarem um diploma universitário. Além das dificuldades extremas para permanecer estudando sem assistência estudantil ou infraestrutura adequada, o sujeito que consegue concluir as faculdades, sai delas com uma enorme frustração pela frente. Não há emprego o suficiente no mercado e quando o há é temporário, incapaz de pagar decentemente, cheio de armadilhas impostas para justificar demissões ou rebaixamentos. A greve atual nas universidades federais tem como pauta estas necessidades. Receber mais alunos não é problema. O problema é fingir que ensina bem sem professor, salas ou com turmas lotadas, à espera da verba para o prédio novo que só virá se inchar antes as salas que já existem. Ou fingir que assegura ascensão social com o rebaixamento da qualidade proporcionado por graduações rápidas, feitas de qualquer jeito, cheias de facilidades para se alcançar o diploma tão sagrado e, cada vez mais, insignificantes para as enormes exigências impostas politicamente por um mercado que, em verdade, não quer mais assumir mão-de-obra e sim lucrar ostensivamente com mecanismos especulativos. As poucas profissões que ainda ostentam certo grau de empregabilidade oscilam de acordo com os interesses de financiamento governamental ao setor privado, sendo que o que é de interesse hoje e atrai tantos à engenharia, por exemplo, não necessariamente perdurará amanhã. Flutua ao sabor das investidas populistas de momento. 

           Os laços de dependência que nos prendem ao dinheiro reduzem o sentido existencial de tudo. Quanto mais subordinados e dependentes, menos tempo para nos preocupar com o saber, a reflexão, o lazer, o ócio e as mudanças necessárias para se resgatar a dignidade humana. Sabendo que o indivíduo vai tentar sobreviver de qualquer maneira, o sistema espera dele o motivo para tachá-lo enquanto delinquente, culpá-lo individualmente pelo desvio de conduta, e assim prendê-lo ou matá-lo. Este é o atual papel do Estado no investimento maciço em segurança pública, necessidade muitas das vezes alimentada ideologicamente pelos meios de comunicação que o servem, mas que não quer saber de refletir sobre as verdadeiras causas de tantos desvios,  de tanta violência urbana, que nos assolam como uma verdadeira epidemia. Há uma fábrica de delinquência produzindo indivíduos com graves problemas para existirem, sem orientação adequada ou emprego digno, e o que o Estado oferece é apenas a polícia para ir sufocando o problema sem resolvê-lo. Resolver implicaria na superação do capitalismo, o mais violento dos sistemas econômicos, que se encontra entre nós há apenas trezentos anos numa humanidade que tem pra lá de um milhão de anos. 

          Não podemos deixar nos iludir por promessas de privilégios que são sempre adiadas, não cumpridas, enroladas e renovadas a cada eleição. Este ritual de esquecimento do vacilo anterior é o que o torna vivo e pronto para sacanear mais uma vez. A superação deste monstro está requerendo amor, fim da competição e da reprodução de discurso que culpa individualmente por incompetência a enorme quantidade de gente sem rumo ou perspectiva vagando pelo mundo. 

        Deixar-se iludir por consumismos, pela exibição para  os outros de privilégios materiais, é também uma forma de tirar onda de escravo de alguém, que você não reconhece porque é dominado por um raciocínio que só enxerga esforço individualista nas suas conquistas. Se nós não plantamos o que comemos, alguém o plantou e o produziu. Alguém vendeu o mesmo alimento à indústria que o transformou e o revendeu. Outro alguém fez chegar ao mercado, à mesa de casa, e assim, numa relação que exige o esforço de vários seres humanos para que a nossa existência individual se consagre plena, fomos alienados destes elos que existem entre diversas ações do homem enquanto espécie, levando o dinheiro a significar exclusivamente a razão presente nesses elos. 

         O dinheiro ressignificou as trocas de experiência e de produção da humanidade sobre a mesma natureza que nos referencia, tornando seu simples excesso ou falta o determinante para merecermos a vida. Isto é de uma manipulação inacreditável da vida que nenhuma religião ousa enfrentar, muitas vezes colaborando no domínio da parcela ínfima de  gananciosos realmente contemplados com o excesso. A falta do dinheiro é o que vitima a maior parte da humanidade e isso só pode ser superado com a superação de seu vício enquanto droga a determinar toda e qualquer relação humana. Não é uma tarefa para governo nenhum, nem para empresários ou banqueiros, ou, como vimos, nem para sacerdotes religiosos. É uma tarefa cotidiana de cada um de nós o crescente menosprezo ao valor dado ao dinheiro na determinação da vida de nossa espécie. Nossas relações sociais devem começar a se pautar pela rede de apoio mútuo, pelo mundo colaborativo, pela solidariedade sem interesse direto no retorno daquele que ajudamos. Aquele que ajuda o próximo mas joga na cara dele constantemente o que fez, trabalha sob a lógica capitalista de lucro ou vantagem sobre toda e qualquer atitude e a diminui de sentido. Não é cobrando gratidão que se estabelece o exemplo de emancipação do homem do projeto genocida. É fazendo o necessário, exaustivamente ensinado e repetido em todos os livros sagrados, mas que geralmente é rebaixado de sentido pleno para dar palanque a moralismos inúteis à felicidade humana. A competição é um mal para a humanidade. Nenhum esforço individual assegura a plena existência individual, pois ela também depende do bem-estar do outro, conhecido ou desconhecido, sem o qual não poderemos coexistir de forma saudável, sem depressão ou violência.                                   
                         

domingo, 3 de junho de 2012

RH e paranoias sem fundamento

                     Não é de hoje que me irrito com estes  suplementos de jornal que tratam de empregos e oportunidades no mercado de trabalho. São, em verdade, a produção mais ardilosa e cínica que a turma  de  Recursos Humanos (RH), a serviço de patrões inescrupulosos, pode oferecer ao leitor desesperado por um emprego digno. O suplemento "Boa Chance" do jornal "O Globo" do domingo 03/06/2012, em sua capa, traz um box com os seguintes título e subtítulo: 

        "Redes sociais e blogs não deixam ninguém mentir - reputação na internet é fundamental" 

    Transcrevo a íntegra dos três parágrafos do box para análise do meu leitor mais desafortunado, aquele que anda com seu currículo para cima e para baixo atrás de um vaga de escravo da iniciativa privada, ou ainda o outro tipo, aquele que já resignado pelas rasteiras habituais nos próprios direitos trabalhistas, ainda acredita na capacidade de ascensão social por méritos próprios, a dita "competência individual" nos ambientes de empregabilidade mais personalistas e hereditários possíveis. Vamos à matéria:

  Em tempos de internet e 
redes sociais em profusão, uma quantidade crescente de recrutadores e executivos recorre a essas ferramentas para checar dados e descobrir novas informações sobre os candidatos - desde traços de personalidade até em que empresas realmente trabalharam. Especialistas admitem, então, que o documento de papel já cedeu bastante espaço à web na hora de selecionar um profissional. Como se o currículo tivesse morrido.
- A reputação na internet é fundamental. Por isso, é necessário tomar cuidado com o que se escreve no facebook ou no twitter - diz a coach de executivos Marie-Josette Brauer, ressaltando que as redes sociais e o personal branding mostram uma outra dimensão do profissional. - O Linkedin, por exemplo, revela como a pessoa faz seu networking, o que é bem relevante.
Para o empresário Marcelo Giannini, as redes sociais se tornaram indispensáveis na hora de checar informações sobre um candidato. 

        São muitos os aspectos a serem analisados no discurso do jornal, da coach de executivos (nome sugestivo, não?) e do empresário. O que se nota, antes de mais nada, é que se tenta naturalizar um procedimento absurdo dos profissionais de recursos desumanos do capital (aqui em diante, chamarei pela sigla RDC em substituição a RH, como se auto-define a sordidez do ofício): empresas alertam que vigiam a vida individual dos candidatos a emprego através da internet, ou seja, dispõem da  tecnologia para conferir seus hábitos, crenças, ideologias, privacidades  e sentimentos sem autorização através das redes sociais e blogs. Não bastasse a conferência da veracidade de passados profissionais dispostos em currículos, estabelecem uma paranoia que visa cercear a liberdade de expressão das pessoas. Este é um ponto. Definem que tipo de profissional se deseja formatando padrões humanos ideais ou refutáveis. Associada à vigilância, ao temor e à censura plantados, observamos a discriminação explícita e naturalizada de seres humanos segundo lógicas completamente medíocres e surreais. Como sabemos que este não é o critério preponderante de contratações, promoções ou demissões no mercado de trabalho, muito mais calcado na indicação ou no privilégio personalista, fica apenas um cinismo nocivo, capaz de iludir e fazer proliferar a insegurança íntima sem resultados profissionais garantidos.

         Outro elemento considerável da matéria é este esforço em importar e estabelecer estrangeirismos à nossa língua portuguesa. Sabem os profissionais de RDCs da vida o quanto a ignorância sobre a língua inglesa da maioria torna-a sedutora pois carregada de certo peso simbólico de autoridade sobre as mentes colonizadas e dóceis. O emprego do estrangeirismo tem como função fazer valer um discurso de verdade global, um elitismo desejável a quem busca algum lugar ao sol na selva das oportunidades cada vez mais restritas. Se existe relevância no aprendizado da língua estrangeira, não é esta relevância que está embutida em um texto em português carregado de referências importadas. É a necessidade de se fazer superior, de se vender a ideia do privilégio, de se criar uma atmosfera conceitual acima das práticas de comunicação habituais entre brasileiros, de maneira que este recurso é uma habilidade de dominação  que constrange tanto o quanto ilude o ignorante até justificar seu banimento. Dentre tantas paranoias plantadas, usar a expressão "coach de executivos" no lugar de "treinador de executivos"  tem mais significado e repercussão psicológica do que aparenta. Tudo isso é cuidadosamente elaborado, de maneira que os RDCs da vida adoram se apropriar de novos espetáculos conceituais para justificarem velhas práticas na seleção e na demissão de trabalhadores que passam longe, muito longe mesmo, do discurso que ostentam orgulhosos sobre fórmulas inovadoras de  meritocracia. 

         Em outras palavras, na hora de dar o pé na bunda ou na hora de contratar, continuam pesando mais, mesmo no setor privado, não o conhecimento em inglês ou em qualquer outro saber que agregue potencialidades reais para a atividade a ser desempenhada, mas o parentesco com os chefes, os laços de amizade com os poderosos, o reconhecimento das habilidades apenas como se fossem transmissíveis por genes (que torna o mérito uma questão de sangue, transmitido de pai para filho). 

       Ora, se o empresário condena a ousadia e a liberdade de seu funcionário, cerceando-o e impondo certo terrorismo às suas particularidades "refutáveis",  observa-se no mercado a reprodução de valores e métodos sem maiores inovações. Fica o ambiente de trabalho reduzido ao ambiente de fofoqueiros, puxa-sacos, incompetentes de todas as funções, covardes, dóceis que se tornam , num primeiro momento, mais baratos ao processo automático do sistema porém, de forma contraditória, mais caros porque incapazes de solucionar as demandas mais comezinhas.  Ofusca-se assim todo o discurso da competência individual, aquele que reivindica que são melhores e mais aptos ao emprego os que dinamizam mais suas atuações, os que não se curvam à estagnação sobre novas oportunidades de aprendizado e, por último, os que revelam toda uma diferença positiva em relação à média, fazendo-se dignos dos títulos de liderança e promoções cabíveis. Ao mesmo tempo que os hipócritas que atuam no âmbito de RDCs falam uma coisa aqui sobre o padrão ideal, desmentem-no acolá, fazendo do trabalhador escravizado um idiota cheio de medo de perder o posto que tem, do desempregado um atordoado que vive se culpando pelos seus próprios (e supostos) erros ou vacilos mediante o padrão ideal. 

        O único padrão perceptível é que não há emprego para todos porque a exploração tem que ser máxima, o lucro deve ser máximo, assim como o controle social sobre as desgraças plantadas deve ser constantemente maquiado e embelezado, até que pareça natural e perfeito zelo individual o que é demasiadamente cultural e frágil publicidade enganosa.