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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O método científico como forma de controle das ciências sociais

                              "Os gênios são aqueles os quais   
                     nenhum professor conseguiu estragar."   
                                                                 (MOZART)




        Amo conhecer a História da Humanidade. Amo muito mais fazê-la acontecer em minha época, muito mais do que apenas passar por ela como estatística de boiada ou ficar esperando inevitavelmente o mundo acabar. Este amor foi construído por grandes professores que tive quando cursei os ensinos fundamental e médio, entre as décadas de 80 e 90 do século passado. Meu pai também tem sua parcela de contribuição, uma vez que me passou uma formação política substantiva, sempre associada a boas leituras do mundo. Eles me seduziram (no caso do meu pai, sem querer) para um curso superior que, infelizmente, não é (ou não é mais) o que eu achava que era. Pensava que estaria entre revolucionários anticapitalistas mas esta foi uma tendência que assisti a decadência: reduziu-se a partir do fim da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, há exatos 20 anos neste dezembro de 2011. Como os meus professores haviam se formado debaixo da porrada da ditadura militar ou do período de "redemocratização" nos anos 80, em que convergiam a euforia democrática local e os resquícios da Guerra Fria, tal reflexo se fez na minha formação e de boa galera que gira em torno atualmente dos trinta anos de idade. Não sei se ainda é assim mas tenho algo a dizer sobre o que o fim da ex-URSS trouxe de novo à produção historiográfica e ao ensino de História no Brasil. 

        Sim, nossos professores de História, aquelas figuras bem esquisitas e malucas (tirados como "sujos, cabeludos, mal-vestidos e inconvenientes"), de comportamento inquietante e politicamente engajado, cheias das críticas e das mobilizações coletivas por causas nobres, tornaram-se, em boa parte dos casos, pessoas de crítica ainda afinada mas com um novo limite, na prática, bem claro (além de mais arrumadinhos...): tudo está restrito a um discurso tão  prepotente o quanto raso da supremacia relativista que interessa no momento. Isto está se fazendo notar entre os alunos, entre a sociedade e é motivo de chacota das ciências exatas e dos donos do poder. Alguns dos novos professores, não todos é claro, foram formados depois da ascensão do culturalismo pós-moderno, tendência da produção científica em História que trouxe novas perspectivas em relação ao marxismo.          

          Enquanto a Guerra Fria estava fluindo no mundo e a perspectiva de concretização de um projeto socialista ainda era uma realidade em disputa eufórica, espécie de bússola para quem se opunha ao capitalismo nos países de seu domínio, muita gente boa acreditava na possibilidade de reverter este câncer social - ou, pelo menos, contê-lo nas desgraças que provoca - através da organização coletiva e da disputa do Estado ao lado da  "esquerda" contra a turma da "direita". Em dezembro de 1991, a União Soviética ruiu justamente por um erro básico e persistente de muitas tendências socialistas até hoje, sempre apontado pelos anarquistas: o apego ao poder e às disputas ególatras de lideranças e seguidores. O que o capitalismo sempre fez foi utilizar-se destas paixões, das tradições envoltas nelas, muito anteriores ao estabelecimento de sua existência concreta, para continuar se perpetuando na expectativa ideológica que alimenta no ganancioso, no vaidoso e no individualista a esperança de se dar bem materialmente. Ele nasce ideologia que ressignifica a tradição sobre o real, alimenta paixões difíceis de desapegar (embora muitos humanos tenham conseguido, o que demonstra que esta dependência das paixões não é "natural" do homem, mas "cultural", passível de reformulação) e potencializa, com elas ao auge, a injustiça e a desigualdade com as quais favorece poucos em detrimento de muitos. Em verdade, no capitalismo, o humano é sugado ao extremo, destruindo a si próprio na cegueira de quem destrói às pessoas em redor e o mundo em que vive, acreditando que se dará bem sozinho e sem eles. O socialismo é mais difícil de acontecer porque depende deste desapego fundamental da humanidade para superar o capitalismo. Tentou-se, por guerras, implantar ditaduras do proletariado que impusessem um domínio do Estado sobre as classes então existentes, além de uma lei forte e igualitária, onde o privilégio da burocracia estatal persistiu e a vaidade da corrida armamentista terminou por definhar os recursos. Estes métodos, que foram a tônica da experiência soviética, como sabemos, não deram certo. A consequência, um desastroso impacto ideológico sobre opositores do capitalismo no mundo, abalou a década de 90 em diante, fazendo-se crer que o capitalismo havia triunfado sobre qualquer alternativa. Mas não é assim que a banda toca... o sistema capitalista é sugador, genocida, suicida e inconsequente com a vida. Um  sistema assim não pode persistir de forma saudável, ainda que sua superação demande esforços culturais maiores que os militares, os eleitorais e os vanguardistas juntos. 

        O socialismo precisa de mudanças profundas de ordem cultural, no plano das mentalidades, dos interesses e dos vícios; na visão de mundo de quem procura o domínio e o controle do outro, a submissão aos seus caprichos, a concepção de privilegiado e malandro sobre os demais, sempre tirados como incapazes ou otários. Sem mudanças culturais, sem desapegos históricos, não temos socialismo nem anarquismo. Infelizmente, temos muitos socialistas assim. "Quem fala em revolução sem mudar o cotidiano, traz na boca um cadáver". A frase que exponho como subtítulo deste blog é dos muros pichados de Paris em maio de 1968. A contracultura sabia onde queria chegar.  

          O impacto ideológico do fim da União Soviética sobre socialistas e social-democratas do mundo foi profundo, aniquilando partidos "revolucionários", lideranças e fazendo outros assumirem a peleguice que encobriam. Quando predominava o manto da euforia que tomava conta de um grupo expressivo no Brasil, eram parte da "revolução". Quando a euforia foi frustrada,  rapidamente mostraram as garras vacilantes. Quem não lembra da virada brusca de posição do Sr. Roberto Freire (ex-PCB e atual PPS)? Ou mesmo do FHC sociólogo para o FHC presidente? O PT, então, nem se fala... Quando se viu socialistas históricos compondo alianças espúrias com a direita "para ganhar eleição" ou "pela governabilidade", roubando e maltratando todo o povo tal como a direita e os conservadores sempre fizeram, o golpe mais forte contra a perspectiva de esquerda foi dado. Por ela mesma! Como o povo poderia continuar concordando com a disputa partidária se ela, visivelmente, não espelhava mais mudança substantiva alguma no sistema em voga? Se a nível internacional havia fracassado? Se a nível local, o que se viu foi a ascensão dos métodos mais asquerosos de corrupção e privilégios praticados por quem mais os combatia?

          É desta circunstância que emerge o individualismo bárbaro de nossos tempos. A apatia, o desinteresse político, a descrença na mudança coletiva, todos estes elementos que compõem nossa cruel realidade cotidiana, tomaram conta junto com a errônea ideia do triunfo capitalista absoluto, que foi muito vendida e comprada a partir dos 90. Errônea porque as sociedades estão em movimento, a História está em permanente movimento, dependendo sempre das circunstâncias e das provocações dos humanos que atuam em seu tempo e espaço. Nada é imposto sem reação. Maior ou menor a reação dos bilhões de sugados do planeta, mais ou menos intensa aqui ou daqui a pouco, conforme a fé que dispõem e a consciência que ostentam, os meios materiais e as condições ambientais, sabem os capitalistas que é preciso destinar especial investimento em formação apaziguadora e alienante, assim como é necessário cada vez mais polícia e forças armadas para desunir, conter revoltas muito mais sangrentas e decisivas, espalhar o pânico e a fragilidade individual.   

        A produção historiográfica, então, seguiu o caminho de se ancorar nas investigações culturais, no cotidiano das sociedades as quais anteriormente havíamos destinado exaustivas explicações econômicas marxistas. Marx e os marxistas estavam errados? Não, não estavam em suas análises econômicas, políticas e ideológicas do capitalismo. Sim, estavam em seus projetos políticos de sociedade, em seus métodos de organização para implantação do socialismo no mundo. Ainda assim, não podemos condená-los pelo que fizeram pois todas as experiências são preciosas oportunidades de aprendizado. O que podemos condenar é a insistência no erro. Não dá mais pra trocar uma ditadura por outra. Quem é o humano vaidoso que, se dizendo socialista, porá as mãos sobre os meus ombros e dirá que vai me governar porque tem a primazia e a vantagem da consciência correta de liderança a meu respeito ou a respeito do que todos precisamos? Isto não cola mais. Ou cola, quando o intuito não é promover socialismo, mas promover populismo barato e nada revolucionário.  

         A historiografia dos anos 90 seguiu o caminho de se compreender melhor o que nossa cultura, o conjunto de nossos valores, crenças, costumes e rituais, nos dizem respeito, para além do que já sabemos quanto à dinâmica da produção e da distribuição desigual de riquezas materiais. Este foi um reflexo do fim da experiência soviética no mundo que ganhou força e expansão a partir do momento que o triunfo do capitalismo desnacionalizou e desestatizou o poder de regulação econômica dos Estados Nacionais sobre as empresas capitalistas. Quais os interesses e paixões que sustentaram a ideologia capitalista e a ideologia de cada classe dominante antes e depois daquela? Poderia ser um rumo destas pesquisas, como fizeram Thompson e Hill, por exemplo, na História Social Britânica dos anos 60, a respeito das ideologias políticas de resistência da classe trabalhadora depois que estes autores se decepcionaram com Stálin. 

            Parte dos historiadores tomou este rumo. Outra parte, não. Há quem investigue a cultura no sistema, do sistema e contra o sistema econômico em voga, correlacionando o tempo histórico de seu objeto com a sociedade de hoje, suas permanências (ressignificadas) e mudanças. Estes assumem seu papel de historiadores que têm total influência sobre a História que contam (não vivenciada pelo próprio, ambientada no passado) no mundo em que vivem (para compor com a história de seu tempo, a que deve ser feita à luz das experiências narradas sobre o passado) e não se escondem atrás do método científico, do relativismo absoluto às prisões conceituais. Outros tachariam simplesmente a iniciativa de anacrônica e perigosa, talvez simplista. Eu prefiro lembrar da alegoria do pintor, aquele que emoldurou de tal forma a expressão do quadro, até que deste não resistisse mais nem a pintura, nem a parede que suporta o quadro, nada além da citação do autor, pomposa e referenciada sobre um toco que já havia sido feito, reconhecido e estragado pela natureza, ou seja, sobre um nada novo cujo valor de relíquia é inquestionável. 

            Mas também há quem acredite que há valores que não são determinados pelo sistema ou que até interagem com ele mas têm vida própria. Quanto a estes últimos, ou são ingênuos ou se julgam espertos demais. Nem tudo que foi criado no mundo e ainda existe, de fato, é capitalista. Mais difícil ainda é ser obra de um indivíduo apenas... Há criações coletivas anteriores e persistentes, que datam de muito além de trezentos anos. Mais difícil é saber o que o capitalismo, junto com seus parceiros cristãos, não assimilou, ressignificou ou incorporou (eu diria, reduziu a existência real) transformando a beleza extenuante ou o caráter amplo de sua essência numa mercadoria que tem seu valor restrito ao financeiro nos dias de hoje. 

         Acredito que temos uma responsabilidade dupla quando trabalhamos com História: a compreensão das peculiaridades do período histórico que se estuda e a preocupação com o que pretendemos para o tempo em que escrevemos, produzimos ou contamos a História, ou seja, a contemporaneidade do historiador. Não há razão coletiva em se sustentar historiadores no tempo presente que apenas contem coisas do passado sem que sejam capazes de apresentar nexos com o presente, em estilo e opinião próprios, assumindo assim seu posicionamento politico-ideológico na sociedade e na interpretação dos fatos. Não é suficiente ou não é claro ao conjunto da sociedade que aquele fato histórico passado é, por si só, contado e compreendido, avaliado pelos contemporâneos como relevante origem das heranças que temos. Não temos atualmente, pelo conjunto da sociedade brasileira, bagagem que possibilite compreensões elaboradas, restando ao conjunto o desprezo pela importância da História quando esta tem e muito peso sobre sua vida particular e coletiva. 

        Estes historiadores do segundo grupo (aqui definido por "pós-modernos"), em geral, fogem da explicação econômica classista, realçam aspectos particulares que ganham sobrevida e autonomia nos processos históricos coletivos. Também têm o seu valor quando revelam negociações ocultas e subversões ao que esperamos de uma conjuntura de disputas classistas generalizantes. Mas não estão isentos ideologicamente de um posicionamento político, tal qual gostam de transparecer, a exemplo dos liberais. Quando enfatizam aspectos que descaracterizam a luta de classes, querem, de fato, superá-la no relato da condição de existência quando a própria existência capitalista anda viva e ululante a favor do que Marx preconizava.

        O que não consigo é aceitar o papel do método científico eurocêntrico que utilizamos para legitimar a História enquanto ciência. Estamos engessando a criatividade, a inovação, o posicionamento político do historiador em relação ao seu objeto, com esta "república das citações" que vigora como único caminho válido para se expressar com reconhecimento. Como minhas opiniões a respeito de qualquer processo histórico não devem ser consideradas se não forem repassadas pelo recurso "copia e cola" de impressões fragmentadas de outros autores? Isto, para mim,  só serve à lógica do direito autoral, da reserva de mercado inerente (do autor e dos professores que se perpetuam no entorno de sua corte) e, portanto, da limitação ao novo, uma vez que devemos repetir o que autores, em geral os das históricas metrópoles, sustentam e orientam. A historiografia marxista nem cogita a hipótese de alterar as bases deste aprisionamento conceitual, prefere a tradição que a sustenta, inclusive, seguidora de alguém para contar sobre tudo. A historiografia pós-moderna aponta para a superação desta necessidade mas ainda se encontra temerária, espera que a França faça isso antes do Brasil para então podermos copiá-la. Em ambos os casos, uma desgraça em comum: não podemos avançar no que Annales se propôs a fazer a respeito da relação do historiador com o seu objeto quando temos uma oportunidade histórica de fazê-lo. 

       Na época, definimos um paradigma novo e necessário, que correspondia aos anseios da categoria, para produzir História sem o condicionamento do nacionalismo e do memorialismo. Ainda que o distanciamento do historiador em relação ao objeto, o conceito de anacronismo e a necessidade de referência às fontes tornassem, a partir daquele momento, consensuais, Marc Bloch e Fevre pensavam adiante: pensavam na autonomia do pensamento e da expressão em plena década de 30 quando se referiram à importância de resguardar a interpretação do sujeito que pesquisa e também pode fazer a História em seu tempo.  Não conseguiram naquela época e levamos todo o século XX aprimorando a submissão a um método científico que nos oprime, em nome de um projeto de sociedade que se propunha libertador das opressões. Hoje, precisamos libertar o historiador  do que se tornou contraditório em seu ofício por respeito ao método científico: há toda uma doutrinação em torno da escrita da História, de sua interpretação, das regras para conceber qualquer inovação. Isto afasta diversas pessoas capacitadas que não conseguem ou não concordam em lidar com regras que reduzem a riqueza semântica de seus textos, a liberdade de se propor novos conceitos sem a referência anterior que oprime e reduz até a aniquilação da tentativa. Não defendo que  se faça do plágio a regra, que se recuse a citar de onde extraiu suas leituras e observações numa bibliografia adequada mas refuto veementemente as diversas limitações do método científico à escrita livre porque, de fato, ele se tornou hipócrita, trabalhoso e impeditivo à renovação. Escrever o que se pensa do assunto é o que define a diferença do autor, não o excesso de citações de outrem, numa apelação que mais parece esforço de um sujeito que sofre de complexo de inferioridade para se legitimar perante os demais. Ou que lembra nossa submissão intelectual aos europeus, ainda que estes tenham construído obras significativas, as quais não recomendaria a falta de leitura. 

         Eu quero ter o direito de não ser marxista, de não ser pós-moderno e, ainda assim, ser um grande historiador, referenciado não em outrem mas naquilo que investigo, observo, escrevo, debato, ensino e aprendo. Do jeito que caminhamos, estamos obtendo um custo alto para sustentar o método científico que, a priori, nos legitimaria ciência. É tão necessário assim à História que esta seja ciência? Que assim sendo, assimile e reproduza apenas a ideia de ciência que os franceses, os alemães e os britânicos determinaram? Por que não libertamos o historiador para seguir quem quer que seja, inclusive a ninguém, para pensar sobre o que já foi pensado e poder propor o que ainda não foi pensado? Ficará a Área de História na América Latina eternamente condicionada e colonizada, lendo o mundo como se fôssemos europeus? Ou aceitaríamos a proposta libertária que vos faço, ciente de que outros já fizeram, de libertar a História do aprisionamento conceitual, fazendo-a tão rica quanto as artes em geral, que se propõem a ler o mundo com liberdade, provocando transformações significativas em nosso tempo? Haverá um dia em que nós poderemos assumir a identidade dos sujeitos historiadores sem que estes se tornem meros copistas, pupilos medievos, de professores padres que se comportam como catequizadores e disciplinadores da reprodução e perpetuação eternas de seus interesses? 

        Espero que cheguemos a um consenso mínimo, porém melhor do que temos hoje. O respeito às fontes dar-se-ia pela citação bibliográfica ao final de qualquer obra, acadêmica ou didática, artística ou científica, mas apenas enquanto referência às leituras que o sujeito-historiador teve, não determinando a autonomia de toda a sua obra ou a legitimidade pelas universidades daquilo que foi produzido enquanto História. Torna-se História, a partir de então, toda obra que construa argumentos convincentes sobre o passado e seus reflexos no presente, definindo um papel objetivo e subjetivo entre os novos historiadores: quem escreve sobre a História deve se posicionar claramente quanto ao que faz para a História de seu tempo, seja o quanto há de relevância em cada objeto neste sentido, seja num redimensionamento completo da incrível arte de ensinar e de aprender sob as inúmeras linguagens existentes e possíveis no campo social.     

               

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