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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fundamentos Anarco-Espiritualistas


         Algumas pessoas me pediram pra comentar sobre o “anarco-espiritualismo”, ideologia citada em alguns de meus posts, ou sobre algumas citações que fazem referência a um relacionamento com espíritos nunca esclarecido no corpo dos artigos. Pois bem, decidi fundamentar minhas convicções transcendentais neste e como estas descobertas mudaram minha vida, oferecendo ao leitor a oportunidade de entender o que algumas religiões espiritualistas abordam à luz de uma conexão que percebi com os princípios libertários, e, portanto, ao contrário do medo e das limitações desenvolvidas historicamente em torno da disputa de poder insana dos sacerdotes e do desconhecido.

         Em primeiro lugar, quero deixar claro que fui ateu até os meus 21 anos de idade. Não acreditava em Deus nem em santos, espíritos ou religiões, zombando de tudo e todos, julgando racionalmente o homem conforme sua capacidade criativa de criá-los e a eles se submeter por desespero, carência ou limitação a todos imposta culturalmente. De família católica, fui submetido a três tentativas de catecismo, todas frustradas por extrema discordância com a Igreja Católica, essencialmente por ter conhecido seus métodos e interesses políticos, esclarecidos através do estudo da História e da observação crítica de seus falsos moralismos. Logo, mesmo tendo sido batizado nela, não fiz primeira comunhão, nem crisma, nem constituí matrimônio, por razões óbvias que vão da diferença filosófica à repressão de minha sexualidade, ostentada erroneamente por esta igreja ao longo dos séculos, que tanto fundamenta preconceitos, crimes de ódio e infelicidades extremas de boa parcela da humanidade.

         Por mais que eu estudasse, entretanto, sentia a diferença fundamental da figura de Jesus Cristo de todos os que pregam em seu nome. Ora, para mim, antes de mais nada, tratava-se de um homem. Um homem especial, sem dúvida, mas não porque exercia superpoderes conferidos por Deus. Um homem especial porque REVOLUCIONÁRIO em sua época! Daí personagem histórico. Se não, que outro adjetivo posso atribuir a quem não aceitou sujeitar a si mesmo e a seu povo ao Império Romano, que então escravizava a Judeia, o povo judeu, submetendo a este como a tantos outros, pesados tributos, ordenamento político e jurídico, perseguições políticas e extrema desigualdade social, ainda que, amparado em acordos políticos tácitos, permitisse a liberdade religiosa local a cargo de sacerdotes poderosos?

         Os seguidores esquecem que Jesus nasceu pobre, que saiu pregando e ajudando os mais pobres, que foi simples e solidário e, por tal, poderoso. Sua concepção de poder não se restringia ao plano material mas buscava as regras do plano transcendental - o “além”, o desconhecido, os céus, ou qual nome quisermos dar para simbolizá-lo. Isto é significativo quando extrapola a pura retórica e se torna verdade constante. O que católicos e evangélicos em geral fazem nas missas, nos cultos e nas ruas, é o contrário: busca-se excessivamente a limpeza e a salvação do espírito pela repetição exaustiva da retórica, pela cobrança moralista da atitude alheia, enquanto as suas próprias práticas sociais, aquelas resultantes das intenções e dos pensamentos, são viciadas pelas disputas materiais. Dissolvem com facilidade os ensinamentos de Jesus e falam em nome dele, condenando e expurgando aqueles que julgam “tomados por Satanás”, a quem de fato oferecem um valor inigualável.

         A percepção diferenciada que atribuía à figura histórica de Jesus Cristo associava-se, na minha jovem cabeça, aos princípios de esquerda, do socialismo e do anarquismo. Como seus seguidores poderiam se tornar capitalistas? Como justificarem a desigualdade social falando em nome de Jesus? Há passagens bíblicas que explicitam referências socialistas e anarquistas de Jesus: “vendilhões do templo”, como referiu-se, certa feita, a vendedores de objetos sacros (os evangélicos de hoje se apegam a esta passagem para condenar o culto aos santos católicos mas vendem outras materializações do sacro!); “atire a primeira pedra quem nunca pecou na vida”, em defesa de Maria Madalena, prostituta que seria facilmente condenada pelos cristãos de hoje, uma vez que alimentam a chaga dos preconceitos moralistas para obscurecerem os diversos desvios de caráter e conduta, a corrupção endêmica, o individualismo e a ganância de seus líderes e seguidores. Que tal a recusa de acordo político com Pôncio Pilatos, governador imposto por Roma à Judeia, para que negasse o que dizia e fosse livrado da condenação à cruz?

         E os exercícios de fé também me chamavam a atenção nas passagens bíblicas. A fé, de fato, é poderosíssima quando real e a realidade da fé é que materializa o impossível. Não o contrário. A exigência de prova material que a ciência cartesiana impôs para que seus feitos fossem valorizados como “reais” criou também a figura do intermediário, seja ele qual tipo de autoridade for, se sacerdote, político ou cientista, quem vai definir o que deve ser digno da chancela do real. Interesses políticos, egóicos e materialistas, rechaçam muita gente boa e muita obra significativa por aí em nome deste prestígio social da legitimidade. Nietzsche questionou isso. Jesus fura esta pretensão das autoridades e propõe que é possível a todos furar, oferece-se como caminho (exemplo) mas sua declaração de ser “o único caminho, a verdade e a vida” foi infeliz. Na época, por serem consagrados os grandes retóricos de acordo com a firmeza de seus discursos, talvez tenha sido necessário. Dá-se um desconto. O mesmo não podemos falar dos rumos que os moralismos tomaram na história do cristianismo.

         Neste momento de profundas transformações em meu Ser (2001), deparei-me com a existência de vozes ocultas, atrapalhadas, como se numa feira estivesse. Brincava muito com a existência dos espíritos, contava histórias, adorava filmes de terror e zombava do medo e da crendice das pessoas. Até que eles foram aparecendo de verdade. Testavam-me e eu os testava. De começo, afora a admiração à figura revolucionária de Jesus, nada me parecia real. Mas as vozes vinham e anunciavam pretensões, feitos que se confirmavam no mundo material, no meu dia-a-dia, no comportamento das pessoas que me cercavam, nos sonos que se prolongavam por dias, na estranha manifestação de conversas com pessoas após situações que se repetiam e fugiam ao meu controle. O que qualquer pessoa julga fácil ser fruto de consumo de entorpecentes ou enlouquecimento, esquizofrenia e doenças mentais do gênero, não o era. Era na sobriedade do trabalho, na tranquilidade do lar, no caminhar das ruas e no encontro com pessoas desconhecidas que mais se manifestavam. Como negar? Tornou-se difícil após o episódio que vou relatar pra vocês logo em seguida. A sucessão de acontecimentos levou-me naturalmente a buscar ajuda e a estudar com afinco o universo dos espíritos.

         Quando decidimos montar uma rádio comunitária, eu e amigos do bairro, com grandes dificuldades financeiras para tal empreendimento, procuramos apoio entre comerciantes e donos de imóveis comerciais que pudessem colaborar com um aluguel barato ou uma permuta para ser a sede da rádio. Encontramos um comerciante, dono de uma loja de autopeças, cujo sobrado, na parte de cima, estava ocioso. Tratava-se de uma construção histórica, desfigurada na fachada original por um chapisco absurdo, mas que, em seu interior, mantinha um chão de madeira Gonçalves Ledo com cerca de cem anos, um teto alto e uma escadaria pomposa e antiga de acesso. O dono propôs uma permuta: “paguem-me o aluguel em reformas do espaço”. Para nós, simplesmente fantástico! Eu fui um dos maiores entusiastas, já que a localização era ótima e o fato de ser estudante de História animava-me ainda mais com o que encontrei.

         Tivemos de tirar vários objetos e quinquilharias amontoadas. Madeiras, móveis, um telefone a manivela, um banquinho preto, um tridente, pedaços de ferros, de alumínio e restos mortais de objetos outros foram despachados num caminhão de mudança. Tiramos fotos com estes objetos típicos de um terreiro mas só mantivemos o telefone a manivela e o banquinho, que foram devidamente restaurados e expostos na sede, após intensa obra que modificou toda a instalação elétrica, a pintura e a divisão espacial. Para quem tiver dúvidas sobre o que digo aqui, basta procurar os fundadores da rádio comunitária NB FM que eles atestarão o que vou lhes contar aqui.

         Na parte de trás do sobrado, localizava-se uma escada que começava no meio da parede até o sótão. O acesso a este sótão dependia da passagem pela casa de uma senhorinha que vivia sozinha, ou melhor, com seus milhares de gatos. Muito solícita e simpática, a senhorinha sempre disponibilizou seu banheiro durante as obras e posteriormente a elas, água e acesso ao sótão. Era fundamental a instalação da antena e do transmissor da rádio do sótão até o telhado do sobrado, condição para a transmissão dos nossos sinais via FM. Ela não atrapalhou nossas pretensões, pelo contrário, e sempre com aquele sorriso suave, de pessoa que transparece uma leveza fora do comum, permitiu-nos o acesso irrestrito, ainda que ficasse ou não em casa. Dizia:

         - Aqui já foi uma escola, meu filho! Trabalhei com um casal que me ajudou muito, mas esta casa ficou abandonada por muito tempo.

         Escola? Pensávamos e ficávamos imaginando em que ano, quando isso aconteceu. Nossas famílias, tradicionais no bairro, nunca haviam narrado a existência de uma escola ali e, pelo espaço restrito, acredito que se tratava de uma escola de poucos alunos. Logo, bem antiga, dos tempos em que pouquíssimos eram os que estudavam naquela outrora vila operária. Pelo que encontramos ali, estava mais para centro espírita que escola.

         Quando subi pela primeira vez no sótão, fiquei surpreso. Uma estante trazia livros bem antigos de Odontologia e um, em particular, tratava-se de um diário manuscrito a pena com algumas partituras. Pelos relatos, em português bem arcaico, era de uma senhora pianista, casada com um dentista do Partido Republicano Fluminense! Fiquei fascinado. Queria porque queria retirar os livros dali, limpá-los, restaurá-los, expô-los e até aproveitá-los numa futura monografia, tese ou obra sobre a história política da Província Fluminense. Comecei o trabalho mas... não sabia onde estava me metendo.

         Começou a acontecer uma série de fatos estranhos no ambiente da rádio e fora dele. CDs e objetos em geral desapareciam, instigavam desconfianças de roubo e brigas. Tinha acabado de conquistar minha primeira turminha de 5ª série em escola particular do outro lado da cidade. Com cerca de três semanas na escola, menor intimidade com os novos colegas de trabalho (que nem sabiam ainda da existência da rádio) e um fato inusitado interrompeu minha aula. O inspetor, pálido, pediu desesperadamente que eu fosse encontrar com a orientadora pedagógica, interrompesse a aula, que ele vigiaria a turma para mim, mas que era urgente. Ainda retruquei, pedi que fosse depois, na hora do recreio, pois precisava terminar o raciocínio da aula. Ele voltou a implorar, disse que o assunto era grave e urgente, que não podia adiar. Tudo bem, então fui ao encontro da professora.

         Quando cheguei em sua sala, deparei-me com a tal professora em estado de espírito completamente diferente. De cara e punhos fechados, aquela figura sempre alegre e tranqüila, parecia estar com muita raiva. “O que aconteceu, professora?” – perguntei. “Quem mandou você roubar minhas coisas?” – ela me devolveu. “Eu!? Mas eu não roubei nada.” – respondi perplexo. “Roubou sim. Você entrou na minha casa sem autorização, colocou lá uma caixa de faladô (sic!), anda levando gente que eu não gosto e ainda pegou meu livro da estante!” – respondeu a pessoa, deixando claro, junto com aquela dormência súbita e inacreditável em meu corpo físico, que não se tratava da professora em si mas da dona do livro e da casa onde estava a rádio, quero dizer, do espírito desencarnado daquela que um dia habitou ali e se recusava a deixar o prédio por apego.

Convencido pelas evidências, pus-me a dialogar com a tal senhora: “mas se foi a senhora dona de tudo aquilo, a senhora já morreu e sabe que meu interesse é social e histórico. Construí ali uma rádio comunitária que vai ajudar muita gente e o seu livro pode servir à história da nossa comunidade. A senhora sabe que eu estudo História e que eu não posso ser impedido de esclarecer a História por causa de...” [interrompeu]. “Não me interessa!!!” – gritou o espírito batendo na mesa da professora. “Você vai colocar tudo no lugar ou então eu vou provar pra você que eu existo! Vou mexer na sua carne três vezes até deixar o lugar! Aquele formosado que você gosta tanto, rá, rá, aquele ali veio de muito longe pra se vingar. Você foi muito ruim pra ele na outra vida!” – ameaçou citando um amigo pelo qual estava me apaixonando. A imagem do amigo me veio na hora à cabeça. Perplexo, eu ainda assisti, pela primeira vez, o fenômeno que consiste na despedida daquele espírito encostado no médium, que desaba em choro e não se lembra do ocorrido parcial ou totalmente. No caso, foi total. A professora não lembrava de absolutamente nada.

Intrigado com aquela situação, ainda resisti. Dizia que achava um absurdo que os mortos, ainda que existissem, nos impedissem de concretizar feitos por caprichos egoístas. Continuei meu trabalho normalmente, relatando a poucos amigos o que havia acontecido. Alguns acreditavam, outros não. Mas os fenômenos foram crescendo. Especialmente à noite, quando ficávamos sozinhos, eu e o amigo descrito pela mulher desencarnada, eu comecei a ouvir insistentemente vozes como se estivesse em uma feira livre. Aquilo me perturbava. De todas as vozes, uma se destacava na multidão e me lembrava do que havia dito através da orientadora pedagógica naquele dia. O amigo, de formação evangélica, não acreditava. Até porque me conhecia em plena transição: eu brincava demais com essas coisas e certamente, na visão dele, estava querendo impressioná-lo. Aos poucos, ele foi acreditando. Pedia-me para rezar. Teve um momento em que o chão de madeira quebrou, mantendo uma de suas pernas no alto do teto da loja, que ficava embaixo.

Mas o pior dos mundos aconteceu também: tive uma sucessão de pesadelos e brotaram três furúnculos na minha bunda. Nunca havia tido problemas sanguíneos, muito menos furúnculos. Quando sarava um, surgia outro. Três ao total, exatamente como “ela” havia ameaçado. Mexia na minha carne! E os objetos que sumiam da rádio reapareciam após longos conflitos.

A gota d´água aconteceu quando a rádio resolveu fazer um link promocional direto do estacionamento do supermercado WalMart um dia. Instalada a tenda árabe por lá, eu fiquei sozinho na sede, na função de comandar a programação como locutor e operador. Divulgava no ar que estávamos lá, prontos para receber o ouvinte etc e tal. Inexplicavelmente, o amigo (aquele que fora chamado de formosado pelo espírito desencarnado) apareceu transtornado na sede, deixando a tenda da rádio no supermercado. Gritava comigo - “Você não vai me controlar, porra! Ninguém manda em mim, entendeu? – enquanto quebrava a socos pesados as janelas, os móveis, os objetos e os equipamentos da rádio, tirando, obviamente, nosso sinal do ar. Juro que não tinha cobrado nada a ele, nem pessoal, nem profissionalmente, para que justificasse tal atitude. Estávamos bem. Não havíamos brigado. Aquilo não era o normal dele nem havia sido motivado por nada entre nós. Pelo menos, a princípio.

Em conversa anterior a este fato com a professora-médium, sem a presença dos espíritos, ela já havia confessado que era espírita e médium, mas que achava muito estranho que este fenômeno tivesse acontecendo no ambiente de trabalho, ou seja, na escola, já que havia doutrinado seu corpo para não os receber em qualquer lugar e que se tratava de algo excepcional. Mas me advertiu quanto ao recado dado a respeito do formosado. Esclareceu-me de como funciona a reencarnação. Foi textual quando pontuou que deveria observá-lo, acompanhá-lo e que o perdoasse caso acontecesse algo estranho. Era o sentido reencarnatório do nosso encontro, pois algo não havia sido resolvido entre nós em outra vida. Isso foi antes do acontecido! O espírito da mulher que vivia na casa foi claro ao dizer que o formosado vinha de longe em busca de vingança. Quem diria, justo alguém com quem eu simpatizava completamente!

Ao vê-lo agora, naquela situação de enfrentamento materialmente injustificável, tornei a ficar dormente e consciente do que estava ocorrendo. Com aquelas mãos sangrando sem parar, totalmente ferido pelo acesso de loucura, outro sinal do fenômeno veio logo a aparecer: o choro. Descambou a chorar sem parar. Levei-o até a pia do banheiro da senhorinha que habitava a parte de trás do inóspito sobrado, para que pudesse lavar seus cortes. Com a rádio fora do ar, invariavelmente apareceriam as pessoas querendo saber o que havia acontecido. Éramos quatro diretores, eu incluso. Os outros três, ao verem a situação (um prejuízo formidável!), foram extremamente humanos. Acreditando ou não na parte espiritual da coisa, acreditavam em mim. E, por mim, disseram que o prejuízo era o de menos mas que a permanência do formosado na rádio estava nas minhas mãos. Eu decidiria se ele seria afastado temporariamente, definitivamente, ou se permaneceria independentemente do fato. Pedi um tempo, agradeci a confiança e disse que iria conversar com o formosado em outro lugar. Teria de ter uma longa conversa com ele e, desta conversa, tiraríamos uma decisão.

A sensibilidade de dois diretores ainda nos levou para a Praia de Itacoatiara para que pudéssemos relaxar. O mar, sempre presente nos momentos cruciais da minha vida, também se tornou notado a partir do momento em que o estudo do espiritualismo pediu-me que notasse qual elemento da natureza sempre esteve presente na minha vida. Qualquer exercício de revisão de vida que façamos, desde o nosso nascimento até a idade em que estivermos, passando por todos os feitos, erros e acertos, revelará a presença intensa e persistente de uma força da natureza a nos apoiar ou a nos guiar. É desta descoberta que reconhecemos os rituais fundamentais à alimentação de nossa fé, aquela que traçará a confiança necessária na vitória dos rumos os mais absurdos e ilógicos. Surgem as pessoas, as oportunidades e as saídas para qualquer tipo de problema. Veja bem: eu nunca mencionei isto ao amigo diretor que nos levou em seu carro até a praia. Sequer tinha essa noção à época. Voltando no tempo e observando cada marco histórico da minha trajetória, sinto a presença da Mãe Água, seja na forma de mar, de cachoeira ou de chuva, invariavelmente. Poderia ser um animal em particular, uma planta ou o vento. Mas é a água, tenho certeza, o elemento da natureza que mais me fortalece. 

No bar, após esta visita à praia, o formosado confessaria algo que jamais ouvir da boca de alguém aos prantos: “eu sempre tive inveja de você! Você é tão novo quanto eu e é tão inteligente, é diretor de uma rádio, professor... e eu!? Eu sou o quê, Fernando? Eu não sou nada. Agora, eu sou menos ainda! Você vai me colocar fora da rádio, eu sei!”. Perplexo diante daquela confissão, vinda de quem eu admirava o profissionalismo, o talento e começava a amar, consciente de tudo que a espiritualidade estava me apresentando, um dos grandes divisores de águas de todo o meu sentido existencial, disse a ele que o perdoava mas que precisava de um tempo. Afastei-o da rádio temporariamente mas nada seria como antes.

Enquanto providenciávamos, em apenas quatro meses de existência da rádio, a mudança de sede (como permanecer ali?), Formosado contraiu uma doença rara que lhe tiraria a visão para além de um metro de seu campo de visão. Isto o afastou definitivamente da rádio e de nós, levando-o para um rumo diferenciado. Eu resolvi assumir papel que outrora era o seu na nova sede. Fui morar lá, atendendo a tudo e a todos, como ele fazia, além de preencher buracos de programadores ausentes e experimentar o crescimento de um espaço cultural associado ao crescimento da rádio. Durante esta passagem, passei a frequentar centros espíritas, a ler sobre umbanda e kardecismo, e a tentar doutrinar a manifestação de incorporações, audições, visões e sonos incríveis e duradouros, além de atender, ainda sem experiência no assunto, casos e mais casos de pessoas que nos procuravam com problemas espirituais os mais diversos.

Ainda me encontro em processo de aprendizado. Do conhecimento espiritualista ao espírita, observei nexos fundamentais com a existência material dos seres humanos e disso jamais ousei me dissociar novamente. Por mais que desejemos libertar a humanidade de suas opressões objetivas, haveremos sempre de reconhecer nossa limitada condição humana perante o Universo. Em papo com um advogado noutro dia, que me relatava dos procedimentos e equipamentos materiais existentes para se prevenir mortes por chuvas e inundações, indaguei-lhe se, como homem de ciência, acreditava mesmo que era capaz de evitar uma destruição individual, ainda que todo o coletivo estivesse comprometido pela força da natureza. Ele insistiu em sua defesa de que era possível e não deixo de considerar que tem sido o grande desafio humano desde o seu surgimento no planeta, com avanços consideráveis em diversas frentes, mas que o individualismo e o capitalismo enfraquecem essa tendência, ah, disso não tenho dúvidas. Se, de fato, toda a tecnologia alcançada for capaz de prevenir vidas de grandes catástrofes, ainda assim, só o fato de seu acesso ser determinado por quantia financeira relevante e inacessível à maioria, depreende-se que reduzimos nossa fé e nossa vontade de potência como um todo. Logo, a natureza, soberanamente, há de corrigir tamanha pretensão do Deus Capital.

A lógica maior da Espiritualidade Superior se posiciona a favor da cooperação e do entrelaçamento entre os seres e suas respectivas capacidades e necessidades vitais. Não há capacidade individualista extraordinária se o conjunto da espécie humana (e mesmo o conjunto maior dos seres vivos) se enfraquece espiritualmente com a lógica do capital-acesso para poucos. Trata-se de um engodo ideológico vendido como solução que vem sendo comprado pela maioria à custa de profundo e crescente mal-estar. Para mim, é nítido que a violência é originada do instinto animal de sobrevivência mas é superpotencializada pelo errôneo cultivo da competição ególatra, que relega ao perdedor a condição subumana de existência enquanto ao vencedor do direito de comer ao de ostentar todos os luxos e desperdícios. Guerras, misérias, autoritarismo, barbáries, invejas e ciúmes só atrasam nossa evolução, de maneira que a prática do cultivo às disputas mesquinhas tornam-nos mais próximos da autodestruição, que nunca é individual, pois afeta a todos que nos cercam, não apenas as famílias e amigos, mas o imaginário coletivo e as forças da natureza também.

O anarco-espiritualismo, como ideologia libertária, não contempla a necessidade de comandantes poderosos a conduzir a Verdade e a Essência do mundo de forma egoísta. Não adianta ser de esquerda ou de direita, do partido A ou do partido B, se as práticas se reduzem a disputas por vagas no comando do aparelho estatal do capital e do acesso da minoria às benesses do privilégio. Temos que pressionar o Estado para destituí-lo de seu sentido originário de promoção da amenização ou do acirramento de desigualdades sociais provocados pela propriedade privada. Nenhum governante pode ganhar mais que um professor, que um médico, que um bombeiro, que um lixeiro. A corrupção tem que ter pena de morte. Ah, você vai dizer: “mas matar, pode?”. Eu digo: “pra fazer justiça social, pode ser possível que sim. Por que milhões devem ser obrigados a obedecer e a sustentar um com tanto que não terá vida suficiente para gozar do tanto?”. Nenhum banco ou especulador pode existir, quiçá acumular para si, 51% de tudo que é arrecadado em impostos federais. Não pode. O Estado, tal como está, tem que ser redimensionado sistematicamente até a plena capacidade de organização local das atividades produtivas, que deverão servir obrigatoriamente ao sustento de todos no que for precípuo à vida (comida, moradia, vestimenta, saúde, educação e lazer). Tudo que hoje vive de competições individualistas deve ser aniquilado a pó, sendo sua atividade precípua redirecionada ao bem-estar social. Todo o sentido de felicidade individual será permitido, sendo o homem contido apenas no seu acúmulo material e na sua pretensão de domínio. Temos que conhecer melhor como funciona a Lei de Causa e Efeito da Espiritualidade Superior (ou o “colhe-se o que se planta”) e parar de apenas falar por falar de Jesus Cristo, passando a exercitar seus ensinamentos, e assim conseguirmos nos livrar da fome, da depressão, do desespero, do complexo de inferioridade, da insegurança íntima e da violência em todas as suas formas de expressão, o que vem proporcionando catástrofes mais do que suficientes. Simplesmente insuportáveis.

Hoje, usam-se drogas em busca do refúgio temporário em um mundo mais contemplativo, harmônico, encorajador. Um mundo menos cheio de dores constantes. Imagine quando forem as drogas absolutamente desnecessárias porque não conviveremos mais com as dores das concessões indesejáveis e cotidianas, exigidas em tonelada?  Aguardo e planto a felicidade destes novos e utópicos tempos, não os limitando apenas à beleza da retórica, mas à felicidade da ação cotidiana. É o mundo competitivo e, por tal, autodestrutivo, que nos impôs a insatisfação existencial expressiva da contemporaneidade e, por consequência, a necessidade de sublimá-lo com estupefacientes de todos os tipos e para todos os gostos, liberados ou proibidos pela lei. A insatisfação humana é, de fato, permanente e pertinente a todos os sistemas e épocas, mas o que vemos hoje é gritante e assustador, caracterizado, sem exagero, como mal-estar coletivo e individual profundo. O consumo de drogas, como está colocado hoje, com todas as suas nuances, reflete este fenômeno social consumista pouco ou nada reflexivo. Pouquíssimos profissionais de saúde ou de segurança pública são capazes de apontar o dedo na verdadeira ferida, optando por paliativos de tratamento ou de repressão individual.  

Convido o leitor a aprimorar nossa trajetória mundana.                            

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