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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 24 de setembro de 2011

Ambientalismo na província

Há uns quinze anos, recebi um convite para uma audiência pública que discutiria a construção do emissário submarino de esgotos da Praia de Icaraí, em Niterói. A reunião, como deveria ser, era aberta à comunidade e foi realizada no Colégio MV1 de Icaraí com engenheiros da CEDAE, técnicos e políticos do Governo Estadual e da Prefeitura de Niterói (ou do Jorge Roberto Silveira, já que não sei se esta pertence mais ao povo). Lembrei deste episódio enquanto lia, no jornal “O Globo”, uma reportagem sobre o excesso de lixo que vem sendo encontrado há dois anos, principalmente por pescadores, na Praia de Itaipu, Região Oceânica da cidade. Naquele ocasião [a da audiência pública no MV1], eu integrava o Centro de Referência de Niterói do Movimento de Cidadania Pelas Águas, uma iniciativa que havia sido trazida ao Estado do Rio de Janeiro pelo ex-presidente do CREA-RJ, o Engenheiro José Chacon de Assis, antes mesmo de sua ascensão à presidência da referida autarquia federal e do tempo em que fui trabalhar com ele, na qualidade de seu assessor para escritos e palestras na área. Chacon, ao que parece, anda desaparecido desde a sua saída do CREA-RJ, e pretende se candidatar novamente à presidência do mesmo conselho regional ainda este ano. Quanto a outros ambientalistas históricos da Província Fluminense, facílimo encontrá-los em cargos públicos importantes. Difícil é encontrá-los na luta que alçaram seus nomes ao estrelato político ou, para ser mais claro, na coerência entre discurso e prática.     


A preocupação de vários moradores de Niterói com as causas ambientalistas levou à instalação deste movimento em defesa de nossos recursos hídricos ainda na década de 90. Em 1997, por pressão de grupos organizados em torno da questão da água no Brasil, foi criada a nova Lei Federal de Recursos Hídricos, uma das mais avançadas do mundo. Através desta, foi prevista a gestão democrática dos recursos através de comitês intermunicipais e até interestaduais, baseados no recorte geográfico das bacias hidrográficas, além da criação da Agência Nacional de Águas (ANA). Todos fiscalizariam e permitiriam ou não, mediante consulta prévia e debates, qualquer ingerência da indústria, da construção civil, de indivíduos e empresas ou órgãos públicos, sobre os mananciais dos quais todos nós dependemos a existência física. Sendo a água fonte primordial de vida no planeta; sendo a água doce e potável indispensável à vida humana; sendo a água, em qualquer de suas formas, meio por onde o ser humano pode desenvolver locomoção, trabalho, renda, alimentação, esportes e diversões públicas indispensáveis à qualidade de vida no planeta, não pode o Brasil, sob o engano de que a possui em abundância, deixar-se vítima do trato inconsequente dos resíduos que a espécie humana, por capricho e conveniência consumistas, produz para sua própria destruição. O que qualquer criança de hoje fala e cobra à exaustão virou discursinho bonito sem ação prática e, até entre os menores, é preciso cobrar coerência, sob pena de encontrá-los fazendo o mesmo (falando muito e fazendo nada) em um tempo que depende cada vez mais de novas relações reais para com o meio. Será que subsistirá por muito tempo a espécie humana, tal como a conhecemos? Afogada ou seca, algo dela, acredito que sim. 


Fato é que, tal como ocorre com diversas legislações no país, esta também ficou sem pegar até hoje. O CREA-RJ mudou de gestão e não ofereceu mais aquela prioridade política que Chacon dispensava ao tema, injetando recursos em educação ambiental, envolvendo profissionais especializados na engenharia, na arquitetura e nas áreas correlatas da construção civil, ou até mesmo em comunidades inteiras. Houve um recrudescimento dessa ação do Movimento de Cidadania Pelas Águas, se não no Brasil, pelo menos no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Enquanto assistimos às antigas lideranças ambientalistas estaduais sendo contempladas com cargos públicos na Prefeitura de Niterói ou no governo estadual, assistimos à progressiva ausência de enfrentamento, debate e militância em defesa de um meio ambiente equilibrado.  Não há participação popular expressiva nos comitês de bacias hidrográficas – se é que estes comitês existem - e as privatizações na área de saneamento básico só pioraram a situação. Muitas ONGs estrangeiras vêm assumindo gestões locais com interesses os mais diversos, inclusive os de tomar conta de territórios estratégicos com água num futuro mais ou menos imediato. O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara anda a passos vagarosos há vinte anos, tendo sofrido diversos desvios gravíssimos de recursos públicos. Se assim não fosse, este já teria proporcionado encanamentos e tratamentos adequados dos resíduos domiciliares e industriais, evitando que estes fossem despejados livremente em galerias pluviais e em “rios” com água fétida que cortam as cidades rumo às praias. Sem falar que não é possível que estes grandes e novos empreendimentos imobiliários não se sintam obrigados a cuidar dos recursos e dos resíduos, o que só revela a insanidade da ganância humana diante do caos já instalado.    


O resultado negativo, agora a olhos vistos, agravará e muito com este crescimento imobiliário descontrolado do município de Niterói nos últimos anos. Em função do crescimento econômico de setores subsidiados no país (construção civil, indústria automobilística, etc.) e de obras que vêm buscando sanear a capital fluminense para os grandes eventos internacionais e próximos, os cidadãos niteroienses vêm sofrendo reflexos inadmissíveis, que vão do aumento vertiginoso da violência urbana e do trânsito de veículos à poluição de suas águas. O que dizer, então, se resíduos da Baía de Guanabara vêm sendo trazidos para a costa oceânica da cidade? Fato que me lembra uma curiosa “lei natural” apresentada por engenheiros da CEDAE na célebre audiência pública para construção do emissário submarino de esgotos da Praia de Icaraí. Diante de projeto muito bem desenhado em PowerPoint, difícil de encontrar no Brasil dos anos 90, os engenheiros da CEDAE naquela época tentavam convencer o público, sob intensos protestos e reações, que um emissário de tratamento primário de esgotos (o mesmo que limpa apenas de 10 a 20% dos resíduos originais) seria perfeito ao transferi-los da praia à entrada da Baía de Guanabara. Segundo um dos doutores engenheiros – que fazia questão de repetir suas titulações de formação como peso suficiente para convencer a todos de que estava certo -, “haveria um encontro de correntes marítimas, a que sai da baía e a que entra, anulando (sic) assim a movimentação do esgoto para dentro ou para fora da baía”. Já que o esgoto ficaria parado na entrada (seria este o resultado da “anulação” das correntes, segundo sua defesa inquestionável), as praias não correriam o risco de continuarem poluídas. Pelo contrário, ficariam em pouco tempo próprias para o banho. Hoje, passados quase quinze anos dessas discussões, emissário e estação de tratamento de esgotos de Icaraí construídos e em funcionamento há pelo menos dez, a praia ainda conta com o canal da Ari Parreiras e uma galeria pluvial na altura da Miguel de Frias contribuindo para a perpetuação da poluição que ostenta enquanto praia da Baía de Guanabara. Afora inovações breves de uma corrente ou de outra, que ao contrário do que afirmara o douto engenheiro, continuaram indo para lá e para cá, nada de muito adequado ou próprio para o banho, como prometido pelas excelências, aconteceu.


A Companhia Águas de Niterói assumiu o lugar da CEDAE após a privatização, pelo município, do sistema de abastecimento e tratamento de águas e esgotos a nível local. Em seu período de funcionamento, construiu algumas estações de tratamento de esgotos na cidade, como aquela do Centro que explodiu recentemente e encheu de cocô o Mercado de Peixe e suas imediações. Pergunte à concessionária em qual destas estações recentes o tratamento dos resíduos domiciliares é terciário, ou seja, daquele nível que recupera 90% do grau de poluição das águas para reaproveitamento e/ou descarte na Baía de Guanabara. Ou mesmo secundário, com capacidade de recuperação entre 50 e 70%. Certamente, o mais curioso dos mortais não terá muita surpresa. Ela responderá: "e o seu hidrômetro, vai bem?" 

É lamentável observar a extensa lista de “valões” ou canais urbanos que se originaram em antigos rios exaustivamente degradados, resultando em canalizações de águas da chuva (galerias pluviais) que se misturam a redes clandestinas de esgotos, e têm, por fim último, a mesma praia do emissário que prometia jogar o esgoto a uma distância em que ele permaneceria parado em pleno mar. São muitos os canais e valões nas cidades do entorno da baía que continuam poluindo.


A notícia de que resíduos da dragagem da região da Baía de Guanabara onde se localiza o Porto do Rio de Janeiro estariam sendo jogados na costa oceânica de Niterói, levando ao crescimento da poluição na Praia de Itaipu, mostra que não estamos satisfeitos com a degradação de parte considerável de nossa orla, pois repetimos erros banais e ainda queremos destruir o que resta, agora com lixo. Triste saber que o Secretário Estadual de Meio Ambiente Carlos Minc (PT), ambientalista histórico do Estado, esteja “monitorando”, na verdade, concordando com um despejo absurdo desses em nome de um governo que já é um absurdo fascista há muito tempo, o de Sérgio Cabral (PMDB). A desculpa é exatamente a mesma daquela dada a respeito do emissário de esgotos da Praia de Icaraí há quinze anos: “não há perigo de poluir a praia porque as correntes marítimas e os despejos estão sendo monitorados”. É claro que não estão! É claro que o lixo não vai ficar parado ou se direcionará apenas para o oceano! Chega a ser tosco de tão irresponsável! Quem mora, se diverte ou trabalha na Praia de Itaipu vem denunciando o absurdo já não é de hoje.    


E o Secretário Municipal de Niterói, o Sr. Fernando Guida (PV), outro ambientalista histórico do município, recentemente cooptado (de novo) pelo eterno prefeito Jorge Roberto Silveira (mais de 20 anos no poder, PDT), que nada fala ou reage diante de tamanho absurdo? Enquanto isso, pescadores e banhistas de Itaipu sofrem. Terão que vender, comer ou carregar sobre o corpo o lixo que vem do Porto do Rio direto para a Região Oceânica da cidade, quando este poderia ter destino mais útil, sendo reaproveitado ou descartado de maneira responsável.


O município de Niterói tem este nome de origem tupi, que significa “águas escondidas”. E bota escondido nisso! Além de esconder lixo e esgoto in natura, estas águas também andam escondendo os ambientalistas da província, quietinhos como nunca mas ganhando o de sempre da parasitada. E antes que digam que devemos preservar também os parasitas, pois estes também seriam fundamentais ao equilíbrio ecossistêmico, lembro aos desavisados que excesso também desequilibra a cadeia improdutiva e que eu continuo atrás da minha fração sem êxito. Entendo, não é pra menos. Como querer água limpa e fração do lixo ao mesmo tempo? Eu sei como é difícil fazer ambientalismo na província! Só sobrou aquele ambientalismo dos anti-tabagistas chatos! Deus, que tempos! Minha fumacinha ficou mais nociva que os navios de lixo do Porto do Rio, que o excesso de carros nas ruas, que rodovias desnecessárias em ambientes ainda privilegiados pela natureza, que emissários de cocô para logo ali das praias ou no Mercado de Peixe... 

E pensar que, um dia, estive ao lado de uma comunidade em peso que quebrava, em protesto, as placas da prefeitura anunciando a construção de uma garagem subterrânea no Campo de São Bento. Esta garagem seria parecida com a que existe na frente do DCE da UFF, administrada pela privada Nitpark, e arrancaria árvores históricas da área de lazer. Não foi à frente por revolta intensa da população de Niterói, que fez o prefeito mudar de ideia e deixar o campo como está, numa das maiores vitórias do movimento ambientalista da cidade. Aliás, se pensarmos um pouquinho, não faltam bom motivos para um grande protesto em Niterói contra a sua administração municipal. Difícil será encontrar o prefeito...        

domingo, 18 de setembro de 2011

O Anjo da Orla


A gente se olhava e tinha a sensação que nunca ficaria junto. Mas a gente se quis desde aquele momento. Carinha de safado. Vi Cazuza em você e você viu em mim, foi instantâneo. Nunca passamos desapercebidos desde então. Seu primeiro comentário, em meio ao discurso que eu fazia para um grupo de amigos em comum: “contador de histórias... sei... rsrs!” Eu falava sério de uma trajetória de vida incomum. Aquele seu jeitinho de quem ri debochado das maiores seriedades alheias sempre me irritou nos outros. Em você, não. Após diversos encontros dispersos no tempo, nunca no espaço, ficamos. Beijei você como poucos na vida. Naquele instante, encontrei quem precisava encontrar. Você é o próprio amor livre, eu a liberdade de amar o desconhecido. Tenho certeza que nos encontraremos de novo, mesmo que não tenhamos a menor obrigação. Sem celulares, sem facebooks, sem mais nada que iluda o real no virtual. Só a própria intuição. Se sonho, você aparece. Seu cheiro em meu nariz, sua presença logo em seguida. Pensamentos fixos, uma música em comum e o seu beijo. Assim como se sentia potencialmente a esperança fugaz de antigamente, de onde, na menor das possibilidades, mudávamos o rumo de uma coletividade inteira.

Apresentei-me como seu anjo de início. Tentado às fantasias mundanas, sou também espírito de luz de verdade. Não domino o que me impulsiona, apenas conheço um pouco mais a cada dia. Você não parecia compreender ou não queria. Não acredita no sobrenatural mas, de alguma forma, já o reconhece. Enquanto a ciência o distancia, as experiências de vida trabalham para que conheça o imortal entre nós. Por isso, insisti na história do anjo. De fato, sou o seu anjo. Um anjo hedonista? Não chego a tanto porque considero o hedonismo uma prática de sensações superficiais. Nosso caso envolve o além. Trepamos discutindo isso naquele dia. Sinceramente, não vejo Jesus imune a sexo desse jeito. Até então, só admitíamos o cupido que junta pessoas mas não participa da sacanagem. O anjo que participa parece novo. Mas não é. Chico Xavier haveria de libertar a humanidade da paranoia do pecado cinquenta anos antes. Revelou, ainda nos anos 60, que “não tem razão para a humanidade temer o sexo consentido e desejado como pecado. Sexo é troca vital de energias poderosas entre os espíritos.” É muito mais que um gozo material quando assim é praticado, sentido, curtido e reverenciado. E não precisa ser voltado exclusivamente à procriação ou à eternidade exclusiva de dois seres, o que nos legitima. Quando reprimido, traz consequências indesejáveis e imprevisíveis. Disso, tratam os psicólogos. 

Assim como as mulheres mais velhas (as quais não posso retribuir mais que um afeto), psicólogo é outra sina minha... psicólogo e artista. Observa o mundo e o retrata em busca da liberdade suprema que não encontra em si. São os maiores projetores da espécie humana, depois dos professores que se entregam à causa de corpo, alma e sem dinheiro. Não se curam nem param de projetar por decreto nenhum.  

Naquela praia à noite, ficamos nus. Desejávamos sentir cada cheiro de cada corpo. Seu beijo é bom demais. O perigo de fazer em público, excitante. Confesso que ando curtindo mais entre quatro paredes pelo tempo que nos é ofertado sem maiores retaliações. Em público, hoje, parece-me um bom começo. Às vezes, impossível de ser contido porque nem devem ser contidas. Não acredito que tenhamos sido filmados naquele dia (outra paranoia de nosso tempo!) porque sinto que, simplesmente, desaparecemos aos olhos dos normais. Pelo menos, boa parte do tempo. A melhor parte.

O seu anjo queria te levar para outro lugar. Mas não consegue. A limitação existencial só nos acessa naquele ambiente. Já lhe reconheci em outros mas não daquela forma peculiar que tanto me agrada. Foi o que lhe disse a respeito de me encontrar em outro ambiente que não aquele ali: poderia até ser eu, mas eu em outro. Cheguei a comentar a respeito enquanto sentia o maravilhoso sabor de seu peito. É, o seu peito, a superfície do coração.  Só na superfície, imagine, e... você queria saber onde poderia me encontrar além daquele dia! Para figuras como você, querer continuar é uma diferença. Eu já continuei, já experimentei a sensação de estar casado, de ser fiel e de amar exclusivamente alguém de verdade por três anos. Namorei por tempos mais curtos. Foi o meu limite. Você ainda não experimentou isso, duvido, é “rueiro” como se definiu. Nem tem cara de ser capaz de amar alguém mais que todos os outros. Poderia ser mais uma lábia perigosa... Mas falou sinceramente comigo, outro traço difícil de se encontrar por aí, e “mentiras sinceras me interessam”! Sempre que me encontrou, tirando o tom debochado, meu espelho, tratou-me muito bem. Dei valor. As pessoas se criticam com facilidade, evitam “no seu rosto lindo, o lado bom” dos seres. Dá-lhe Cazuza!

Afirmei-lhe que poderia me encontrar em qualquer lugar mas não na mesma forma humana. Os anjos são assim, mais fáceis de serem encontrados no pôr-do-sol das praias. Depois, eles ficam por perto, espreitam. Não se dão ao luxo de serem vistos entre os mortais com facilidade. Você riu. Disse que também quer algo além do que sempre viveu com alguém. Que está na hora de sentir mais, é urgente deixar-se sentir. E que, por isso, não trocaríamos telefones ou e-mails. Você chamou o celular de rato eletrônico e eu complementei: “rato eletrônico cancerígeno”. Concordamos. Conheço do ritmo frenético de encontros e desencontros que não passam dos diálogos de dez segundos, cujas raízes estão na cultura criada pela exploração do homem pelo homem através do manuseio intensivo das novas tecnologias. É o domínio do homem pelo homem que os torna máquinas, ou refém de máquinas, e não o contrário. Sob um clique súbito no teclado de computador, um torpedo ou uma conversa distanciada e rápida, não se sabe nada além do superficial. Longe dos olhos nos olhos, apenas temos uma breve noção de quem são e sobre o que afeta de verdade as pessoas. Ficamos loucos atrás daquilo que perdemos rotineiramente. Ansiedade, angústia, pressas que resultam em outros problemas. 

O cheiro, o sabor e a dormência súbita dos corpos em profusão me excitam. Não te esqueço. Ao final da noite, você me perguntou: “mas você não quer mesmo saber o meu nome?” Eu disse: “chamando-se como quiser, para mim, seria indiferente. Você já é inesquecível”. Seus olhos brilharam. Você então falou o seu nome, um nome composto de dois personagens cristãos: um bíblico e outro santo católico. Os sinais são esses. Não preciso ser religioso para senti-los e conhecê-los, uma verdadeira emancipação do meu espírito! Há sinais que deixamos passar porque desconhecemos a fundo o que representam. Tratamos como simples coincidências o que muitas vezes nós próprios alimentamos de fé ou pela força do verbo. O anjo metafórico, de início, conectou-se ao fim em seu nome de verdade. O segredo da revelação consiste em concatenar argumentos e indícios aparentemente soltos por aí, mas que são entrelaçados por nexos invisíveis. É claro: tudo sem paranoia! O indivíduo paranoico transforma deduções inconcebíveis em lógicas estapafúrdias. Comete, em nome destas deduções, erros e abusos graves. Eu prefiro escrever meus sentimentos porque, através deste ato, forço-me à autocrítica necessária ao discernimento. Sigo constatando, provocando, experimentando realidades e, se necessário, corrigindo-as. Torno-me feliz assim.

 As melhores crônicas são aquelas que se frutificam de um simples estar e sentir no mundo, resultando em espelhos ao leitor. Não invento nada do que escrevo, quando muito o cerco de encantamentos. Os anjos que visitam o pôr-do-sol das praias são reais, mas nem por isso qualquer um acredita neles. Advogando a supremacia do materialismo histórico, o homem desejou a sua emancipação da própria natureza. O coração tornou-se uma bússola temida. Se aproveitarmos bem – e sem fanatismos - o que conquistamos das tendências emancipatórias materialistas, voltar-nos-emos à natureza dos sentimentos, alcançando as chaves que nos acessam o portal das felicidades adiadas. Os anjos nada mais são que espíritos de altíssima luz que nos visitam, nos espreitam e nos apoiam. Casam-se com os santos e aí figura a alegoria da presente passagem: santos só existem dessa forma se morrerem. Em vida, por mais corretos que sejam, nunca são reconhecidos assim. Há toda uma noção de pecado construída que glorifica aquele que, na verdade, é temido e se quer longe, como alguém superior e incomum. Aqui, por uma boa causa, caso os anjos e os santos na orla do Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense. A literatura me permite o que a História, enquanto ciência, sempre me ofuscou.

Através dos homens e de todo o projeto material concebido pelos homens para a transformação daquele ambiente – a orla de um campus universitário que é ameaçada de virar rua de trânsito livre para veículos automotores – observamos o impacto indescritível da influência espiritual desejada pelos vivos na preservação daquele espaço. 

Incrível mas é o que está inserido na luta vitoriosa dos estudantes da UFF em ocupação da reitoria recente, a qual me identifiquei de cara, muitas vezes criticada por elencar como bandeira a manutenção da integridade dos campi e da propriedade de pessoas que moram no entorno. Uma vez que a Prefeitura de Niterói resolveu construir vias de trânsito livre que cortam os campi para favorecer especulação imobiliária próxima, outros aspectos salutares que envolvem a relação da universidade com a comunidade foram menosprezados. Como o mundo das ciências ignora ou menospreza argumentos sensoriais e espirituais que participam das ações humanas – e nesta assertiva, excluo a Física - eis que aqui estou tentando dar conta desta outra parte da história.  

Os motores da civilização perturbam anjos e espíritos desencarnados, de maneira que, nos centros espíritas, é terminantemente proibido o uso de tecnologias que se utilizam das ondas eletromagnéticas, como o celular ligado, por exemplo. Muito ainda há que fazer, mesmo entre a ciência materialista domesticada pelo dinheiro dos poderosos, no sentido de compreendermos os impactos físico, psicológico e cultural de nossa superexposição cotidiana a essas máquinas viciantes. No ambiente do Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense, como em outros campi espalhados Brasil e mundo afora, a proximidade com espetáculos da natureza em meio ao sacrifício urbano que a todos assola, favorece a reflexão, a paz interior para reflexão e o aprendizado. Trata-se de uma tradição europeia positiva, onde o ambiente universitário sempre foi equilibrado com paisagens naturais que trouxessem certa paz de espírito, na verdade retroalimentação energética para o saber. Se levarmos em conta que as universidades europeias históricas foram sedimentadas sobre bases católicas, ambientes de meditação e reflexão do clero regular, isso não é pouco, não é bobagem. Tem uma razão de ser. Nossa tradição assimilou este aspecto positivo como também assimilou outros negativos, exaustivamente trabalhados em outros artigos ou crônicas. 

Se as obras em curso para expansão da Universidade Federal Fluminense já perturbam o ambiente de estudos, o que dizer do trânsito livre de veículos automotores no lugar da orla do campus, por exemplo, onde muitos estudantes leem, conversam e debatem ao deleite de um pôr-do-sol magnífico sobre a Baía de Guanabara a poucos metros da região central da cidade? Se as obras de expansão são necessárias para suprir uma demanda histórica de vagas pela sociedade, o mesmo não se revela necessário pela intervenção de duas ruas de acesso que cortam a universidade para terminarem logo ali, sem maior impacto no trânsito caótico de Niterói. A cidade precisa mais de transportes menos poluentes, que ocasionem maior impacto no tráfego através da capacidade individual e/ou coletiva de locomoção, como ciclovias e metrô, que de outros paliativos para o caos rodoviário. É uma luta ambientalista também que se confronta com o ideário desenvolvimentista tradicional. Ainda que a nível local, onde, de fato, devemos implementar as revoluções que acreditamos.         

As grandes lutas são levadas a grandes vitórias menos pelo exercício ácido das críticas destrutivas e mais pela dedicação existencial dos seus partícipes em acrescentar algo relevante dialeticamente. É preciso combinar fluidos, arranjar-se pelo que nos une e parar de sobrepor nossas diferenças menores, uma prática que mais se assemelha ao projeto capitalista de individualismo e opressão, ou às ditaduras em geral, inclusive as socialistas, que relegaram na história os benefícios da condição humana a um grupo seleto de privilegiados. A contribuição de cada um, seja dos partidos políticos de esquerda envolvidos, seja dos anarquistas, seja dos social-democratas, seja dos malucos, seja dos anjos e até dos cachorros do campus, resulta em mudança efetiva e positiva para todos. O resto é disputa de domínio entre grupos ou indivíduos.  

         No dia em que trepei bonito na orla, enquanto anjo, com um ser iluminado, misto de personagem bíblico e santo católico, era um dia de comemoração dos estudantes pela vitória que foi a assinatura de um termo de compromisso pelo reitor. Com ele, a ocupação da reitoria foi encerrada com êxito. No termo de compromisso, veio a suspensão das obras viárias (sobretudo da Via Orla) e a previsão de realização de um plebiscito na comunidade acadêmica a respeito. Selamos no astral nossa postura – a minha e a do amigo fortemente inspirado – contra o projeto. E ai de quem vier com argumentos mesquinhos, como a defesa de que estamos querendo libertinagens e drogadições no ambiente universitário. Para tanto, há diversos espaços e os donos das chaves conhecem muito bem as repartições públicas ou privadas em que exercem seus poderes republicanos. Queremos a orla preservada para exercermos nossas mediunidades em comunhão, o que pressupõe leituras e experimentações variadas em contato direto com a mesma natureza que inspirou tanto os gregos no ócio. Falamos das heranças do conhecimento grego, assim como de tantos outros grandes autores no mundo, que tiveram tempo livre para pensar, criar e transformar. 
 
      Diferente da pressa e da política de resultados quantitativos inócuos, que impõem a disputa irracional e a alienação de diversos saberes, queremos, sem dúvida alguma, razões significativas para o avanço da qualidade de ensino em nosso país. Entre elas, certa dose de existencialismo nos cai muito bem.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Resultados

Cresci aprendendo que os melhores resultados são aqueles que podem ser medidos em números. Horrível, claro! As estatísticas podem ser forjadas, as contas podem se fechar por cálculos difíceis de explicar e as metas, ah, divinas metas são aquelas que explicitam uma tendência numérica crescente. Crescente, progressiva, superada pela antecessora: adjetivos que são associados à evolução que representa o que se pretende defender. Na maior parte das vezes, sabemos que os resultados numéricos, desejados ou alcançados, são inócuos perante a realidade. Não importa. Vivemos uma limitação mental que reduz a existência das coisas à sua própria representação. O preço, por exemplo, é uma representação cruel de valor que sufoca a poesia da vida. Mesmo assim, insistem os capitalistas, são incontestáveis: os números, os preços do mercado e os critérios quantitativos para medir produtividade, eficiência, desempenho e a razão de ser de cada empreendimento humano. Eu chamo de incompetência o que eles chamam de eficiência.

Assisto com tristeza à privatização da saúde pública em meu estado. Sérgio Cabral (aquele governador com 1001 motivos para estar preso, se vivêssemos em uma democracia de verdade) e os deputados estaduais que se alinham às suas práticas criminosas genocidas aprovaram um projeto de entrega da saúde pública a gestores privados que receberão recursos públicos pelo NÚMERO de atendimentos efetuados. Isto quer dizer: é só forjar o atendimento e receber a verba. Onde está a qualidade, a eficiência, o melhor desempenho para a saúde pública, num projeto que só alimenta desvios? Para tal ganho, além dos recursos públicos que alimentarão as “organizações sociais” de políticos, parentes e empresários amigos, sem a necessidade de licitação para compras e contratações, arruma-se também a progressiva destruição do servidor concursado. Fala-se mal deste, que é inepto e corrupto, faltoso e baderneiro, mas nunca se fala em punir seus chefes políticos, responsáveis diretos por tudo que não funciona no serviço público. As cifras volumosas de desvios na saúde são efetuadas pelos agentes políticos, nomeados ou eleitos, que impregnam os cargos eletivos e/ou comissionados no serviço público e sugam tudo e mais um pouco. O estatutário, muitas vezes, é quem ensina a prática cotidiana dos atendimentos, dos procedimentos e das razões técnicas dos serviços que executam às demais espécies que vêm ocupando seu espaço sem contrapartida eficaz, mas sofre de todas as dificuldades de execução na ponta. Os salários não aumentam, os insumos não existem, os leitos são poucos perante o contingente populacional e tudo isso se deve a prioridades políticas ou a roubo mesmo. Os estatutários podem ser corruptos? Claro que podem, principalmente quando são coagidos por seus superiores políticos a fazê-lo. É o que mais acontece.

Ai de quem não concordar com os sábios rumos dados pelos chefes! Os novos contratados por estas ONGs ficarão sem os direitos trabalhistas habituais, aqueles que reservam um pouco de dignidade à espécie humana, no maior golpe estatal contra servidores públicos depois da Era FHC. Dirão os espertos gestores: “reduziremos custos!” Errado: tirarão do trabalhador que precisaríamos para um atendimento qualificado e concentrarão um monte de recursos nestes mesmos empresários sugadores, que nada mais são do que os próprios políticos ou os seus amigos.

Isto é reduzir custos ou é desviá-los para apropriação do público pelo particular que matará milhões a mais de doentes necessitados? A privatização é declaração do Estado de que vai roubar ainda mais da saúde para piorá-la, efetivando o projeto neoliberal de manutenção de uma pequena casta intocável rodeada de famintos e desesperados. Operação mais próxima de uma monarquia absolutista que de uma república decente. Os exemplos de malversação dos recursos públicos deveriam afastar estes governantes e não os permitir que avancem ainda mais sobre os mesmos recursos. Mas quem pode fiscalizá-los dentro do aparato estatal também está habilmente condicionado pela ideologia das metas quantitativas de desempenho.

O Ministério Público do Estado do RJ não pode fiscalizar direito o governador fascista. Tem que cumprir METAS DE DESEMPENHO impostas pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Estas metas, como defendem os competentes gestores da miséria humana, são quantitativas. Logo, associadas a um NÚMERO de processos encaminhados em TEMPO recorde. O que se descobriu desta competência toda? Promotores estão arquivando o maior número possível de processos que envolvam homicídios sem apuração. Assim, atingem a META QUANTITATIVA, que só enxerga eficiência numa representatividade numérica inócua (?), deixando os homicidas impunes. Recebem o mesmo ou um pouco melhor por isso, demonstrando celeridade e respeito com a coisa pública. Por este critério, o governador Cabral, por exemplo, continua livre, uma vez que cada um dos crimes que pratica não pode resultar em uma denúncia embasada do MP. Seria gastar muito tempo para investigar e julgar, o que emperraria a fila quantitativa. Tem que ser toda arquivada para gerar número de causas julgadas, o que equivale à eficiência e à produtividade da máquina. 

Quanta insanidade! Quanta irresponsabilidade! Quanta maldade! No final, os bandidos – como é o caso do governador e de tantos outros – continuam soltos e o Estado Democrático de Direito não o é de fato. É o quê, então? Fascismo? Ditadura disfarçada? Pode ser. Então vale tudo.

Vejam o caso do Enem. O MEC resistia em liberar as notas das escolas para evitar rankings. Liberou este ano associando as notas à quantidade de alunos que fizeram a prova por escola, isto depois de fortes protestos das escolas particulares. Resultado: estamos melhores porque subimos de 502 para 511 pontos numa escala de 1000 (!?). Percebe-se cotidianamente que a situação da educação brasileira é sofrível e, neste caso, o número ridículo parece concordar. Não sei se uma prova nacional é capaz de avaliar realidades locais com a precisão que acalenta (até porque eu tenho a sensação de que ainda é pior) mas sei que até hoje não significou NADA em termos de melhoria para as escolas. É de uma produtividade inútil se o objetivo for a melhoria da qualidade, já que os números não estão associados a investimentos maiores no que precisamos. 

Qualquer critério quantitativo que generalize a prática pedagógica é igualmente improdutivo: professores receberem gratificações por desempenho diferenciadas só perverte o professor a agradar mais o seu avaliador. E quem será o avaliador? O aluno? Como? Se cada turma reage de um jeito a uma mesma proposta pedagógica, a um mesmo conteúdo, a uma mesma avaliação, importando ao professor, a cada dificuldade, novos meios e tentativas de se fazer compreender? Sabemos que todos os professores merecem respeito e dignidade mínimos, o que não possuem com o que ganham ou da maneira como são tratados pelos governantes, pelos próprios colegas, pelos agentes políticos nomeados para a direção escolar, por alguns de seus alunos, pelas famílias e pela sociedade. Vamos cuidar disso primeiro? Não, temos que ter metas quantitativas. Pois então, o avaliador seria o diretor, que é nomeado pelo político? Então, o objetivo é coagir e restringir direitos, já que esta turma (a dos diretores impostos) não está interessada em qualidade. Está interessada em obedecer e/ou bajular seus chefes, aqueles que lhe deram a boquinha, o que não muda muito se compararmos às relações trabalhistas do setor privado. Onde está o avaliador da meta de desempenho? Aquele que não quer o desempenho? Aquele que tem que justificar exclusões para se perpetuar no pequeno poder passageiro em que se apega tanto?
   
No começo do Enade (provão do ensino superior), lembro como se fosse hoje: Paulo Renato era Ministro da Educação de FHC e prometia utilizar a prova como parâmetro para financiar as instituições públicas que estivessem precárias, além de fechar as privadas na mesma condição. Passados tantos anos, raríssimo ver instituição privada fechada por baixa qualidade; pelo contrário, muitas são subsidiadas. Quanto às públicas, o resultado nas provas não significou mais ou menos investimentos. Tudo o que se vê de investimento recente em infraestrutura está ligado ao aumento quantitativo de vagas e de cursos. A universidade expande vagas para estudantes mas não o faz na mesma proporção com que contrata professores e servidores técnico-administrativos. Resultado: turmas lotadas, excesso de contratos temporários e/ou de utilização da mão-de-obra barata dos próprios bolsistas de mestrado ou doutorado nas graduações. Os critérios quantitativos estão em direção diametralmente oposta a dos critérios qualitativos mínimos, levando também este serviço público para a ineficiência que justificará sua privatização. Que não resulta em melhor qualidade também e ainda exclui aluno por falta de dinheiro. Uma bosta completa!

 Temos de parar de tentar implementar no serviço público o que é motivo de insatisfação, incompetência e mal-estar na iniciativa privada. Sabemos nós que, de fato, toda essa ladainha por eficiência e produtividade é farsa, pois que não há possibilidade de maior eficiência e de maior produtividade por parte do trabalhador se ele ganha menos, é mais ameaçado de desemprego, vê seus direitos cada vez mais diminuídos, é forçado a um ambiente hostil de competição destrutiva, perde tempo livre para trabalhar mais e mais. O que mais rola como consequência direta é roubo do patrão por empregados, vingança, praga, queda vertiginosa da qualidade dos produtos oferecidos ao cliente, mais ações judiciais e gente puta da vida com a empresa, o órgão, seus chefes e funcionários. Todo mundo em conflito com todo mundo. Desespero e depressão. Violência.

Eu chamo de sinais do modo de produção capitalista chinês contemporâneo, que é comandado por uma ditadura que se diz comunista, em que os agentes políticos do Estado financiam e controlam empresas com o dinheiro de todo mundo, escravizam seus trabalhadores e produzem produtos vagabundos para competir em preço com o resto do mundo. Resultado: domínio de mercados, desastre ambiental com o descarte de resíduos descartáveis, demissão em massa de trabalhadores nos países onde tomam a concorrência da indústria local sem vantagens. Trabalhadores subempregados ou em condições análogas à escravidão como discurso de competência competitiva! Huuummm... que atraso, humanidade! É assim que a China vai dominar o mundo e nós alternarmos de metrópole? Esta é a grande novidade? Na verdade, “um museu de grandes novidades”, como dizia Cazuza.
 
Chegamos ao cúmulo de propagarmos uma cultura da malandragem em todos os graus e níveis de individualismo possíveis, o que é profundamente nocivo a todos. Patrões que procuram ser corretos com os direitos trabalhistas não encontram profissionais minimamente comprometidos no mercado. Profissionais comprometidos não encontram a oportunidade de emprego que merecem, pois este é restrito aos conchavos entre parentes e amigos dos patrões, não necessariamente competentes para a função. Todo o resto é número para inglês ver.

O mais certinho dos trabalhadores já percebeu que tomará voltas significativas na hora de receber. O mesmo acontece com os patrões, na hora de contratar ou de manter alguém no emprego. A relação capital X trabalho funciona assim hoje em dia: por precaução, evitam-se ao máximo a sinceridade e a honestidade para não alcançarmos dificuldades pessoais maiores. Isto vira um inferno se pensarmos que tal postura, muitas vezes, não tem razão de ser naquela relação restrita entre aqueles indivíduos da oportunidade exemplificada (patrão que paga corretamente e respeita os direitos trabalhistas X trabalhador comprometido e qualificado), mas quando se habita na ameaça constante, que é esta instabilidade econômica proposital, cria-se o medo como amante de qualquer indivíduo normal. Há uma sucessão de casos que influenciam a mentalidade coletiva, alimentando o pavor da insolvência, do fracasso, da violência, da perda, que resulta em injustiças e desequilíbrios inacreditáveis.

Os critérios quantitativos (moda e pensamento único ditados pelos números desviantes do foco), presentes em toda configuração social dos nossos tempos, não oferecem respostas qualitativas para o que precisamos evoluir, seja no serviço público, seja em qualquer área. Erram profundamente todos os gestores, políticos e trabalhadores que acreditam neste engodo matemático e ainda competem entre si por ele. A mídia faz ostensiva defesa destes critérios, assim como as faculdades e MBAs da vida que cuidam do controle corporativo contemporâneo.

Estas metas de desempenho, de produtividade e de eficiência (chinesas!) que amarram os indivíduos a uma compreensão mecânica, frágil, constrangedora e contraditória, poderiam ser extirpadas de nossas proposições políticas. Não resultam em nada a mais que não seja mais acúmulo material para poucos, mais guerra entre todos e mais doenças no mundo. É isso que queremos? Então estamos no rumo certo. Mas se o que pretendemos é qualidade de verdade, aquela que supere a condição de miséria espiritual em que nos encontramos, não podemos nos limitar no investimento material, no tempo ou nos benefícios que assegurem dignidade aos seres humanos. A inversão de valor que pressupõe a poesia ao seu preço é inegociável àquele que defende uma transformação cultural alternativa à mentalidade reducionista do capitalista. 
 
Lembrei de tratar deste assunto porque estou retornando à UFF após longos meses de definição sobre o meu direito de retornar e garantir a conclusão da minha graduação. No último artigo, invoquei a necessidade de discutirmos formação superior espiralada como alternativa à formação linear tradicional dos cursos de graduação. Enquanto os capitalistas defendem que temos de formar mais pessoas em menos tempo, eu defendo exatamente o contrário: temos de continuar formando (o que não se esgota nas titulações da legislação educacional, mas continua e se aperfeiçoa com a práxis social) permanentemente, até a morte ou a desistência do indivíduo, aquele que quiser continuar seus estudos livremente, sua relação de convívio com o saber científico e com o saber popular. Nossas instituições têm de ser preparadas para receber conhecimentos diversos e aproveitá-los como legítimos ao invés de rechaçá-los ou discriminá-los.

A quem ou ao quê interessa um número fantástico de diplomados em tempo recorde? O que importa é saber e não decorar, foi o que ouvi desde pequeno dos meus pais e dos professores. A pressa é inimiga da perfeição, foi o que ouvi enquanto sabedoria popular. Incrivelmente não é o que o mercado entende como qualidade para servi-lo. Prega a necessidade de formação apenas como desculpa para exclusão e as pessoas em geral correm atrás, como espermatozóides afoitos, para a inclusão de poucos privilegiados ao acesso dos benefícios. Esta é a nossa miserável fecundação social... Ter um diploma o mais rápido possível tornou-se critério maior que obter o antigo e respeitável documento por, de fato, este atestar um saber aprofundado ainda que especializado. E pensar que a perda anterior, dentro do processo de degradação, fora a especialização do conhecimento em função da divisão social do trabalho! Sendo assim, o que vemos é gente pagando por diplomas a prestação, o que equivale a cursar com rapidez e de qualquer jeito, sem leituras ou experimentações variadas e profundas, para alcançar a profissão que deseja exercer. Sabemos nós que as consequências são previsíveis: advogado que não sabe escrever, médico que não sabe medicar, professor que não sabe ensinar, profissionais que fazem de tudo por dinheiro, titulados que se impõem como intermediários entre contratantes de serviços e verdadeiros profissionais, etc., etc., etc.

O modelo de formação espiralada que defendo parte da minha opção de vida por ser professor antes de me formar e, agora, de me formar para continuar sendo. Tudo porque tento conciliar o que idealizo com o mundo real, o que nem sempre dá certo mas que sempre me revelou ser o caminho mais correto e compatível com minha saúde física, psíquica e espiritual. Enquanto professor, permaneço aluno. Há muito o que aprender para além dos títulos e acho que, só agora, compreendo o que mestres da educação tão citados na academia, como Paulo Freire, queriam dizer.

É hora de rebaixar a legitimidade dos números inócuos, aqueles que não refletem melhorias significativas na qualidade dos serviços, dos produtos e das vidas humanas. Vamos nos enganar eternamente, vendendo e comprando gato por lebre como se fosse exemplo de competência e eficiência? Expor o trabalhador a muitas horas de trabalho forçado, diminuir direitos e renda, trará melhoria para alguém que não para a satisfação momentânea do egoísmo de poucos? Momentânea sim, porque facilmente dissolvida pelas consequências. Violência, insônia, depressão, mal-estar, doenças de todo tipo (destaque para o câncer)...

Houve um tempo em que todas as ciências se curvavam à Biologia tentando justificar comportamentos e tendências sociais. Deu no que deu: nazi-fascismo. Estamos num outro momento sem perder de vista aquele: curvamo-nos agora também a uma Matemática Suprema, cuja racionalidade lógica das estatísticas e das porcentagens parece pairar sobre os interesses políticos e a realidade social, determinando-os. Não seria o contrário o mais racional? Interesses políticos e realidade social determinam a necessidade lógica dos cálculos para solucionar seus problemas. Ou eu estou ficando maluco? Como a própria Matemática é formada de representações com princípios acordados entre as partes que as calculam, parece que o grande problema não é matemático, mas de discernimento: não há fórmula aplicada a um caso concreto que não reivindique os interesses que a conduzem. Estes interesses são objeto das ciências sociais, a incômoda e mal paga área que não refuta como óbvio o que não é. Ou que, pelo menos, não deveria refutar, né?

          Isso que dá naturalizar o que é criação cultural humana! Enquanto os liberais chamam de “idealistas” os seus opositores, volto pra eles o próprio idealismo de suas proposições. A diferença que nos nutre é que, no nosso caso, os ideais que empreendemos não são conduzidos pela perversidade da mesquinharia. Logo, se não for pra melhorar pra todos, não serve a ninguém. Desconfiamos de números chineses. Temos motivo pra isso: todo dia, utilizamos serviços públicos concedidos à iniciativa privada. Não melhoraram nada, talvez apenas a maquiagem, a forma de fazer. Roubo por roubo, prefiro os mais baratos: os que valorizam direitos como caminho mais lógico para a eficiência do trabalhador, os que são movidos pelo bem-estar social e os que resgatam a passionalidade latina no meio da frieza racionalista saxônica.