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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 25 de março de 2012

Muito além da ego-história

              Vamos pensar em como as ciências sociais podem atingir, tocar e seduzir uma população em que nem quinze por cento alcançam o ensino superior. Os intelectuais brasileiros costumam olhar o Brasil com as formatações arquetípicas do método científico europeu e estadunidense. Se ainda estamos fazendo ciência social em busca da legitimidade que só pode ser aferida pelos métodos das ciências exatas, isto posto quase cem anos depois dos primeiros questionamentos a respeito, é porque avançamos pouco na valorização da diversidade de rumos. Precisamos de mais ousadia e de menos pupilos medievos de professores-padres! Desde a década de 90 do século passado, quando passamos a atribuir os rótulos de "micro-história", "nova história", "culturalismo pós-moderno", dentre outros, àquelas obras e àqueles historiadores que focaram seu olhar sobre as relações cotidianas de cada sociedade em seu tempo e espaço, fugindo do universal, do econômico e das super-estruturas marxistas, ainda patinamos numa dicotomia reducionista da disputa entre este e aquele, sem oportunizar em ambas as tendências um poder de desdobramento em comum que supere a tendência predominante na academia à "ego-história".

              "Ego-história" tem sido um conceito irônico muito utilizado na área de História para definir autores e seguidores que gastam energia e tempo em disputas fratricidas pela hegemonia mercadológica do que defendem ideologicamente para si mesmos e suas respectivas confrarias. Nunca entendi as vantagens estéticas, científicas, culturais e filosóficas de se menosprezar ou sufocar qualquer inovação que se insurja nas ciências sociais, obviamente abrindo um parêntesis à exceção: você pode focar nos aspectos culturais inerentes a um determinado agrupamento humano mas não pode deixar de relevar, citar, observar e/ou corresponder à tese da pauperização existencial conferida pelo capitalismo em, pelo menos, seus últimos trezentos anos de tortura humana em série. Só mesmo o capitalismo, tão reducionista das possibilidades existenciais da humanidade, poderia se dar ao luxo de financiar obras e professores que o isentassem das bárbaras e insensatas marginalizações fabricadas cotidianamente. A expectativa do privilégio que o capitalismo alimenta como ilusão a tantos também infla egos na academia e, muitas vezes, transforma a produção científica nacional num jogo subordinado à politicagem típica das câmaras municipais. A "Ego-história" pode e deve ser superada pela inteligência, bastando, para isso, um pouco de boa vontade, ousadia frente ao poder instituído e união de propósitos em torno do que pode ser um acolhimento da renovação metodológica pelo parâmetro das necessidades contemporâneas do Brasil e da América Latina.

                   Penso que precisamos libertar a História de ser APENAS científica. Pelo menos, científica aos moldes do método importado e reconhecido por imposição gringa como universal. Poderíamos libertar a ciência deste método e atribuir a pomposa e nobre autoridade do "científico" a outros métodos. Poderíamos ir além e aqueles que desejassem construir uma História artística, ou seja, LIVRE para interpretar o passado, correlacioná-lo com o presente, manifestá-lo na linguagem que desejar, teriam este direito reconhecido. Seriam também chamados "historiadores", talvez com algum subtítulo ou referência à respectiva diferenciação, sem culpa ou preconceito sobre o produto de suas narrativas. Ao invés de discriminarmos os jornalistas que escrevem sobre História por mera quimera corporativista, por defender a exclusividade de um método (ou pensamento) único, por tentar reservar um nicho de mercado que nem regulamentado ainda o é (e desejável que não o seja, na minha modesta opinião), por isolacionismo incoerente com o discurso tão difundido e enriquecedor da interdisciplinaridade, poderíamos tentar libertar a História do positivismo e da ego-história ao mesmo tempo.

               O positivismo impregna nossa percepção e limita as possibilidades de instruir a ciência histórica, tornando-a uma espécie esquizofrênica. Falamos desde Marc Bloch da importância de se respeitar e de se considerar o olhar do historiador sobre seu objeto de estudo para, logo em seguida, encharcá-lo da obtusa noção de anacronismo e assim desmerecer o próprio olhar ou reduzi-lo até a reprodução simples do que outros autores, em seu tempo, estabeleceram. Estes autores só ganham tal prestígio e reconhecimento nas citações que substituem o olhar do pesquisador contemporâneo se, e somente se, seus professores-padres, aos moldes das universidades católicas medievais, reconhecerem e autorizarem o que também reproduziram do determinado pelas universidades europeias e estadunidenses. Desta forma, censurado fica quem quer se expressar por percepções próprias das leituras que fez, pouca ou nenhuma novidade é autorizada e reconhecida, restringindo a academia à produção de uma quantidade expressiva de nada a mais sobre coisa alguma que já não tenha sido dita ou escrita na história da humanidade.

                A quem serve este método científico das citações obrigatórias sobre autores gringos privilegiados? Como iremos prestigiar o fato de que a oralidade seja um traço histórico profundamente assimilado em nossa cultura se só podemos ouvir o que se fala por aí pelos ouvidos de alguém outro que nem conviveu ou convive com o que é dito? Ora, estamos em uma sociedade de poucos letrados e, mesmos estes, mal formados! O que é transmitido e consolidado pela oralidade não poderá mais ser perdido enquanto fonte histórica com o advento das novas tecnologias. Mais do que a condição de legitimidade da fonte sobre o que está registrado de outrem por sua oralidade, é a própria voz, o próprio ouvido, o próprio olhar do historiador sobre fontes disponíveis e, ainda, sobre o que nem materialmente disponível está mas é necessário fazer referência. Afinal de contas, no campo dos saberes sobre o simbólico muita coisa permeia objetos de estudo que são reduzidos pela determinação positivista em sufocar inovações pelo rigor metodológico. Desta forma, o autor-historiador-artista poderia abrilhantar a produção do conhecimento sem anular quem desejasse seguir pelos resquícios eurocêntricos de longa data. Ambos conviveriam sem disputa pela supremacia de um sobre o outro, tornando-se, acima de tudo, suplementares e legítimos. Enriqueceríamos em demasia a produção do conhecimento e sua divulgação adequada a uma linguagem mais acessível e realista, aproximando academia e leigos ao gosto do debate sobre suas origens, tradições e traços culturais em comum, inclusive sobre os conceitos tratados pela elite do saber e ressignificados pelo senso comum. 

       É impossível mensurar o que perdemos politicamente com as limitações positivistas tradicionais que pesam sobre a ciência histórica. Afastamos alunos criativos, afastamos pessoas de boa vontade e afastamos do conhecimento a maioria da população, que nos consideram, no mínimo, chatos demais! A padronização de conceitos é precedente a qualquer tentativa de se fazer compreender sobre seus reais significados. Valorizo mais a nossa própria capacidade de elaborar e definir nossos próprios conceitos que ficar martelando, impondo, perseguindo, vigiando e desqualificando outrem pelo uso livre e não reproduzido de palavras fixas, como se nossa linguagem fosse absoluta, como se compreender determinada situação e narrá-la fosse um privilégio de papagaios. Luta de classes, um conceito marxista, é plenamente compreendido por qualquer trabalhador que sinta na pele os conflitos inerentes à relação capital X trabalho, mas nada impede dele (trabalhador), ao ter a leitura necessária de Marx, que chame capital de dinheiro, classe de povo, grupo, multidão de pobres, fudidos, descamisados, despossuídos, etc. A arte carrega consigo esta liberdade conceitual por potência, restando aos seus críticos o papel chato de reduzi-las a padronizações conceituais academicistas. Perdemos muito tempo e energia num debate que exige o uso correto ("correto" é a cópia, a repetição!) do conceito do autor, limitando-nos a falar e a só reconhecer o que falam aqueles que aplicam a reprodução literal do que já foi dito. É como se cada historiador carregasse imensas aspas na cabeça, aspas parecidas com uma fantasia de robô teleguiado que se julga superior sendo movido a controle remoto. 

                  Desconfio do autoritarismo deste método científico positivista, reveladíssimo quando tenta enquadrar a realidade ampla das relações sociais à visão de mundo de quem os defende. Testando sua eficiência nas explicações que tanto buscamos sobre nossas origens e sentidos coletivos, a micro-história também não foi capaz de superar o mesmo método positivista   no qual se ancoram os marxistas. Abriu o foco econômico universalista de análise sobre objetos para buscar horizontes culturais mais específicos, o que em si acrescenta ao debate aspectos novos mas não substitui os antigos: são, antes de mais nada, complementares. A perspectiva cultural também é encarada por marxistas sem que, para tal, fiquem fingindo acerca do peso que representam ou representaram as contradições econômicas de classe no capitalismo. A tentativa de afirmação ideológica dos que pressupõem as identidades culturais em relação às contradições econômicas, tão perseguida pelos historiadores da micro-história, teria maior eficácia se estes se libertassem devidamente do rigor científico positivista sobre suas próprias obras e práticas e, para além disso, parassem de tentar confrontar os marxistas com nojo e aversão infantis. O mesmo vale para os marxistas na relação recíproca! 

                Como os culturalistas da micro-história são hoje hegemônicos nas academias brasileiras, a eles o apelo é mais incisivo, uma vez que não só controlam a maior parte das cadeiras universitárias da área, recursos, bolsas, bancas de concursos públicos e contratações,  mas também o discurso da diversidade cultural, nada mais justo que façam honrar mudanças comportamentais  e de métodos no trato com a História. Diversidade não combina com o domínio absoluto de uma confraria sobre a produção do conhecimento. Mais do que tentar se impor de forma autoritária, mais do que perseguir e desprestigiar o marxismo ou qualquer insurgência na academia, historiadores que se identificam com inovações de foco sob o viés de um culturalismo pós-moderno deveriam valorizar a convivência e a colaboração das múltiplas possibilidades de método científico, cogitando o reconhecimento da faceta artística da História, a diversidade de propostas em torno da pesquisa, do ensino e da divulgação do que se produz na academia e na sociedade sem hierarquizações de saberes entre uma e outra.

                     Creio que uma maior liberdade aos ousados pode conviver com quem defende as tradições e assim libertar-nos da hipocrisia da ego-história, uma prática que, em última análise, serve mais para isolar a História e fazer desmerecê-la no conjunto das relações sociais contemporâneas. Por incrível que pareça, professores, há alunos que pensam e, justamente por pensarem,  acreditam firmemente que não estão matriculados nas academias medievais nem devem servir a um pensamento único com disfarce relativista. Só por isso não carregam suas pastas até o carro. 

              Antes que assassinem a História, ou toda a humanidade para tal feito, precisamos nos despedir do século XIX quase duzentos anos depois de seu fim. É este ranço que nos impede de vivenciar uma interdisciplinaridade saudável, de atrair ou manter nossos alunos mais audaciosos mediante as contradições que os seduziram na educação básica e as que passaram a vivenciar na universidade. A prática docente de História na educação básica é tão artística, é tão dialética e provocadora dos instintos mais rebeldes da adolescência, que faz muita gente se interessar por nossa área e seguir carreira nesta a contragosto de familiares e amigos, muito mais direcionados a áreas financeiramente prestigiadas. Não raro, entretanto, observa-se a decepção no curso da passagem pelas graduações em História levar à resignação dos papagaios ou à evasão dos ousados. Isto se deve a disputas fratricidas por mesquinharias politiqueiras que desqualificam o ensino, a ciência, o debate sobre o contraditório, a oralidade e a diversidade ideológica. Aspectos culturais de nosso povo são rebaixados para fazerem prevalecer todo o jeito de pensar dos autores europeus e norte-americanos, dos eurocêntricos e dos estadunicêntricos. Para perpetuarem-se num poder de iludido, aquele da expectativa do privilégio na sociedade capitalista, professores venderam a autonomia científica e o direito à liberdade de expressão de seus alunos. Muito além da ego-história, resistem os que leem e pensam sobre que leem, os que lutam por mudanças sociais concretas e cruzam o conhecimento sobre o passado com o que pode ser feito no presente, os que fazem belas peças de teatro e músicas sobre as demandas mais que relevantes da História, belos livros e revistas, maravilhosas participações em projetos sociais e alternativos, que estão na educação básica fazendo o que podem, em linguagem e condições objetivas acessíveis a um povo significativo. Este contingente quer chegar nos 85% dos brasileiros que sequer acessaram qualquer faculdade nem estão dispostos a ficar repetindo ou batendo palma pra chato dançar. É hora de dar valor ao contraditório sem medo de perder o debate.                 



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