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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

"Todo amor que houver nesta vida pra vocês"

      O bar é um santuário para alguns. Para outros, a casa do capeta. No bar, assim como nas igrejas, alguns rezam a oração dos solitários e encontram bênçãos; outros o procuram por desespero e encontram perigos. Há quem se sinta melhor com o álcool, mais à vontade, despossuído dos bloqueios mentais. Há quem se revele e fique melhor do que o habitual! Porém, há quem não possa beber também. Fica chato, agressivo, inconveniente. No bar, os amantes se encontram e os apaixonados brindam. Amigos de bar existem aos montes; amigos no bar nem sempre são encontrados. Muita política já foi feita em bar. E desfeita também! As torcidas de futebol gostam da TV no bar e todo o resto prefere a música. O bar é o templo dos artistas, dos marginalizados pelos moralismos em geral, daqueles que buscam um prazer na vida perturbada. Como todo local de encontro social, é espelho e caixa de ressonância da sociedade em que está situado. Às vezes, é mal aproveitado porque a função social das coisas existentes não se resume ao que aparenta ser.

           Queria falar  de Natal e festas de fim de ano mas as experiências de bebum acabaram martelando a cabeça. Têm razão de ser: nunca estive tão longe dos bares em épocas afins. Sou daqueles com larga vivência no assunto e vejo confraternização como algo que não deve se limitar a efemérides e feriados. Ademais, já encontrei Jesus no bar e o aniversariante, juro pra vocês, é muito menos careta do que rezam as cantilenas religiosas! Costuma habitar na boa intenção e na boa atitude, coisas que não têm lugar designado para acontecer. Passar o Natal num bar pode ser muito mais interessante do que ficar entre parentes que fingem que se amam uma vez por ano. Desde que se conceba a oportunidade humana nos desconhecidos, aproximar-se de um bar sozinho pode render inacreditáveis e maravilhosas experiências. O Natal, por exemplo, que toma corações os mais diversos para certa atmosfera de bondade, é capaz de fazer juntar gentes que não abarcariam tamanha tolerância e receptividade em outros momentos. Recomendo.

          Fiz muito discurso em bar. Fechei compromissos valiosos, alguns cumpridos e outros não. Neste ponto, sou coerente com o que julgo ter valor; amenidades ficam restritas ao bar mesmo. Tenho uma capacidade incrível, talvez magnetismo, de atrair as figuras mais insanas. Durante boa parte da vida, quando não entendia dos fluxos energéticos, quando a dinâmica espiritual ainda me soava engodo, fetiche ou superstição barata, julgava mal este tipo de atraído. Hoje não julgo mal, o que também não significa que tenha paciência sempre. 

        Tento aproveitar a ocasião para fecundar um mundo melhor. Quando não alcanço um êxito mínimo, pelo menos, não fico de vítima das circunstâncias: puxo um assunto, provoco um debate, evito uma briga, levo alguém pra cama, alcanço uma amizade, desenrolo aliados, construo ou desconstruo valores. Lembro com carinho de pessoas que nunca mais vi, que não são meus parentes ou amigos, mas que compuseram um grande enredo em parceria. Alguns enredos não duraram mais que aquele instante; outros construíram grandes obras! Isto é extremamente significativo. Saber dar valor ao ser humano tem mais retorno do que toda a propaganda sistêmica, inclusive a narrada por experiências ruins, ousa assumir ou enxergar.

          Adoro quando flagro um irmão evangélico, cheio de melindres, bebendo escondido. Pedindo para não ser revelado. Vou ao êxtase quando flagro pessoas buscando sexo ou amor nos bares da vida, ainda que o ato lhe seja proibido em função de um compromisso monogâmico ou de um moralismo inútil perante os que espreitam com olhares enviesados. Observo os incoerentes da moda, aqueles que condenam toda a sorte de comportamentos, tomam alguns goles e passam imediatamente a praticá-los. Estes me deixam entristecido mas lembro que a conta não vai ser minha e, desde que não me coloquem no rolo, sigo em frente e distancio-me tentando, pelo menos, não perder o aliado.

            Em Minas, por diversas vezes, utilizei o bar como aparelho revolucionário. Não me aguentava de ver os absurdos do prefeito local, tendo sido, inclusive, vítima de suas arbitrariedades. Discursava e me expunha publicamente na defesa dos direitos mínimos que a douta democracia apregoa. Entre derrotas e vitórias, angariei, numa balança sincera, mais aliados e amigos que desafetos e inimigos. As músicas que gostava de tocar no aparelho de DVD, videokês da vida ou naquelas máquinas com ficha que são odiadas por alguns frequentadores eram cuidadosamente escolhidas dentre aquelas que ilustravam uma preocupação social, uma crítica política ou uma reelaboração afetiva e íntima de valores arraigados pelas tradições. 

     Quando produzimos vídeos sobre a luta dos 50 servidores municipais concursados e expulsos pelo prefeito, fui pessoalmente em diversos bares e casas para assistir coletivamente e debater com as pessoas da cidadezinha do interior o que estava acontecendo. Esta atividade política foi de fundamental importância num lugar que não tinha acesso à internet nem ao celular até o ano passado. No povoado onde eu morava, não há sinal de celular até hoje e o da internet, via rádio, foi uma luta da qual me orgulho também de ter travado e conquistado. Destes debates, obviamente, como em tudo que acontece no cotidiano do interior, vimos uma repercussão estonteante em torno do Estado Democrático de Direito, uma novidade que parecia ainda bem difícil de acontecer a quem não fosse rico entre 2008 e 2011. Em um ambiente de coronelismo da República Velha, onde pouco havia espaço para a diferença, confrontei com costumes e práticas arriscadas, não muito distantes daquelas também vivenciadas nos centros urbanos brasileiros da contemporaneidade. O que diferencia a atuação no grande centro para uma cidade pequena é que, no grande centro, há a possibilidade de você encontrar sua própria tribo, dar repercussão ao caso e continuar tocando a vida particular mais ou menos em certo grau de liberdade.  Fazer este tipo de formação política no interior do Brasil não é desafio simples para quem se propõe a fazê-lo sem anteparos institucionais, como partidos políticos, imprensa, Ministério Público ou sindicatos. Lá, nada disso existe e a lei maior é, de fato, feita por quem manda porque "quem manda" compra a polícia, a justiça e qualquer outro que se ponha no caminho. E se não quiser se vender, morre. A lei é simples. 

           O bar foi ambiente não apenas deste movimento de servidores públicos mas também onde prestei consultoria jurídica, conselhos espirituais, reforços escolares e aulas sobre qualquer assunto. Não raro, alguém se aproximava de mim e iniciava assim a conversa: "como ocê é um cara estudado, que sabe das coisa, eu quero te fazê uma pregunta..." Daí poderia vir de assuntos complexos sobre política e direito trabalhista até questões afetivas íntimas, fazendo-me lembrar sempre do personagem principal da grande obra de Malba Tahan, "O homem que calculava". 

          Nesta obra clássica, o homem que calculava era um sujeito que aparecia nas mais remotas comunidades árabes diante das mais diversas intrigas e querelas humanas, fazia uma proposta de acordo ou esclarecimento às partes em litígio ou que careciam de informações, e conseguia alcançar um consenso. Deste consenso, o homem que calculava, célebre por saber fazer contas complexas e argumentos convincentes, ainda retirava uma parte para si como forma de pagamento pelo serviço kaosístico. E assim ia vivendo. Seu conhecimento e sua lábia eram sua profissão. 

         Diferente, porém, de querer tirar proveito dos outros, minha atuação em Minas contou com ajudas do tipo, mediante esclarecimentos e apoios tácitos. Muito contribuiu para isto o fato de que as pessoas da região  não confiavam nos advogados - o que é bastante razoável. Queriam ouvir sempre a opinião de alguém que, se apresentando mais estudado e honesto, pudesse orientar a respeito. Também pudera! Quantos casos em que advogados tomaram terras de pequenos proprietários pela simples manipulação de procurações e documentos diante da falta de instrução do povo! Pude testemunhar relatos bárbaros de trabalhadores rurais que diziam ter ficado sem nada após um litígio qualquer. Fui assessor de advogado, um de meus malabarismos de sobrevivência, e tive acesso a casos escabrosos sobre a questão fundiária em Minas Gerais.

              Outra atuação paralela, também muito feita em bar, era a defesa das liberdades individuais em contraponto ao moralismo católico. Reconheço riscos nesta proposta, menos por sofrer retaliações físicas ao meu comportamento de homossexual assumido, e mais por confrontar com uma hipocrisia em que a esfera do público deveria ser totalmente poupada dos acontecimentos em quatro paredes (ou em quatro matos). Não foram poucas as vezes em que os homens fizeram gracinhas públicas, piadas e até insinuações descabidas, provocações... à noite, bêbados, invertiam esta lógica querendo sexo. Nos bares, não raro, mediante o grau etílico, convidavam e faziam aquilo que muito condenavam. Nas minhas participações, não jogava o jogo dos hipócritas de ficarem falando mal de gays, exaltando mulheres entre rodinhas e, depois, ficarem submetidos àquelas paranoias típicas, àqueles avisos ameaçadores, àquele trato doentio para não serem revelados após uma noite de muito sexo. Nada contra os discretos. Tudo contra os que falam mal e fazem. Total apoio aqueles que se assumem. Essa era (e ainda é) a minha política: o ideal é a sinceridade, o menos pior é o silêncio e o erro é o falso moralismo.

           Acredito que o amor ao próximo é possível, que é preciso ceder e se afirmar para construir relações humanas mais saudáveis. Não concebo o bar em si como uma mera propriedade privada, feita para produzir lucro aos seus donos ou diversão superficial àqueles que perpassam suas instalações. Este é um reducionismo existencial exemplificado de que tanto tratamos acerca da dinâmica capitalista. Ao reduzir o que se passa no mundo, as criações, sentimentos e necessidades humanas ao valor supremo de mercadoria, o capitalismo promove um desserviço à humanidade. Pior ainda quando, além de reduzir o sentido existencial de tudo que pode, não satisfeito, faz das coisas mercadorias inacessíveis à maioria. A pior parte de um bar não está no encontro e no desencontro que promove, ou nas consequências do álcool na vida de muitos, mas justamente no fato de que o sistema capitalista restringe as experiências do sujeito sem dinheiro. Retira-se boa dose de prazer e liberdade necessários ao convívio com os próprios problemas e com a humanidade. Esta experiência sufocante inspira mágoas e rancores muito piores, que serão descontados adiante, não se sabe em quê nem em quem. Um sistema que causa mal-estar profundo na humanidade tem que dar conta de válvulas de escape, como são os bares e os acessos às drogas em geral, ainda que seja complicado comparar o prazer de estar num bar do outro acesso, que é estar numa boca de fumo. A proibição do comércio da boca leva à militarização das relações, a um jogo que envolve armas de fogo, e ainda piora o que só seria um mal-estar do excesso ou da falta de dinheiro. 

       É preciso pensar em novas relações. O povo mineiro de onde eu morava até que lida bem com isso, uma vez que ninguém que não tenha dinheiro fica sem beber. É mais fácil o sujeito beber do que ter outra felicidade. O sistema de fiado, muito interessante, também era um grande adianto na vida dos clientes confiáveis. Este é um outro segmento. A camaradagem entre bebuns, às vezes, conseguia ser maior do que entre fumantes. Eu espero que o ano novo mude isso: temos de pensar na felicidade global e parar com essa besteira moralista de que o sujeito pobre tem que ter só comida. Comida para o corpo, tudo bem, é claro que é fundamental mas... e a comida para o espírito? Fica aonde?

        "Todo amor que houver nesta vida pra vocês!" - diria Cazuza. Todo amor? Sim, amor não pode ter limites de consideração. Amor é entrega, é desejo de alteridade. Que, em 2012, a gente reflita e pratique o amor de Cristo com mais coerências filosóficas e menos dramas de controle. Beijos e até! 
               
                                   

              

            

domingo, 11 de dezembro de 2011

O método científico como forma de controle das ciências sociais

                              "Os gênios são aqueles os quais   
                     nenhum professor conseguiu estragar."   
                                                                 (MOZART)




        Amo conhecer a História da Humanidade. Amo muito mais fazê-la acontecer em minha época, muito mais do que apenas passar por ela como estatística de boiada ou ficar esperando inevitavelmente o mundo acabar. Este amor foi construído por grandes professores que tive quando cursei os ensinos fundamental e médio, entre as décadas de 80 e 90 do século passado. Meu pai também tem sua parcela de contribuição, uma vez que me passou uma formação política substantiva, sempre associada a boas leituras do mundo. Eles me seduziram (no caso do meu pai, sem querer) para um curso superior que, infelizmente, não é (ou não é mais) o que eu achava que era. Pensava que estaria entre revolucionários anticapitalistas mas esta foi uma tendência que assisti a decadência: reduziu-se a partir do fim da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, há exatos 20 anos neste dezembro de 2011. Como os meus professores haviam se formado debaixo da porrada da ditadura militar ou do período de "redemocratização" nos anos 80, em que convergiam a euforia democrática local e os resquícios da Guerra Fria, tal reflexo se fez na minha formação e de boa galera que gira em torno atualmente dos trinta anos de idade. Não sei se ainda é assim mas tenho algo a dizer sobre o que o fim da ex-URSS trouxe de novo à produção historiográfica e ao ensino de História no Brasil. 

        Sim, nossos professores de História, aquelas figuras bem esquisitas e malucas (tirados como "sujos, cabeludos, mal-vestidos e inconvenientes"), de comportamento inquietante e politicamente engajado, cheias das críticas e das mobilizações coletivas por causas nobres, tornaram-se, em boa parte dos casos, pessoas de crítica ainda afinada mas com um novo limite, na prática, bem claro (além de mais arrumadinhos...): tudo está restrito a um discurso tão  prepotente o quanto raso da supremacia relativista que interessa no momento. Isto está se fazendo notar entre os alunos, entre a sociedade e é motivo de chacota das ciências exatas e dos donos do poder. Alguns dos novos professores, não todos é claro, foram formados depois da ascensão do culturalismo pós-moderno, tendência da produção científica em História que trouxe novas perspectivas em relação ao marxismo.          

          Enquanto a Guerra Fria estava fluindo no mundo e a perspectiva de concretização de um projeto socialista ainda era uma realidade em disputa eufórica, espécie de bússola para quem se opunha ao capitalismo nos países de seu domínio, muita gente boa acreditava na possibilidade de reverter este câncer social - ou, pelo menos, contê-lo nas desgraças que provoca - através da organização coletiva e da disputa do Estado ao lado da  "esquerda" contra a turma da "direita". Em dezembro de 1991, a União Soviética ruiu justamente por um erro básico e persistente de muitas tendências socialistas até hoje, sempre apontado pelos anarquistas: o apego ao poder e às disputas ególatras de lideranças e seguidores. O que o capitalismo sempre fez foi utilizar-se destas paixões, das tradições envoltas nelas, muito anteriores ao estabelecimento de sua existência concreta, para continuar se perpetuando na expectativa ideológica que alimenta no ganancioso, no vaidoso e no individualista a esperança de se dar bem materialmente. Ele nasce ideologia que ressignifica a tradição sobre o real, alimenta paixões difíceis de desapegar (embora muitos humanos tenham conseguido, o que demonstra que esta dependência das paixões não é "natural" do homem, mas "cultural", passível de reformulação) e potencializa, com elas ao auge, a injustiça e a desigualdade com as quais favorece poucos em detrimento de muitos. Em verdade, no capitalismo, o humano é sugado ao extremo, destruindo a si próprio na cegueira de quem destrói às pessoas em redor e o mundo em que vive, acreditando que se dará bem sozinho e sem eles. O socialismo é mais difícil de acontecer porque depende deste desapego fundamental da humanidade para superar o capitalismo. Tentou-se, por guerras, implantar ditaduras do proletariado que impusessem um domínio do Estado sobre as classes então existentes, além de uma lei forte e igualitária, onde o privilégio da burocracia estatal persistiu e a vaidade da corrida armamentista terminou por definhar os recursos. Estes métodos, que foram a tônica da experiência soviética, como sabemos, não deram certo. A consequência, um desastroso impacto ideológico sobre opositores do capitalismo no mundo, abalou a década de 90 em diante, fazendo-se crer que o capitalismo havia triunfado sobre qualquer alternativa. Mas não é assim que a banda toca... o sistema capitalista é sugador, genocida, suicida e inconsequente com a vida. Um  sistema assim não pode persistir de forma saudável, ainda que sua superação demande esforços culturais maiores que os militares, os eleitorais e os vanguardistas juntos. 

        O socialismo precisa de mudanças profundas de ordem cultural, no plano das mentalidades, dos interesses e dos vícios; na visão de mundo de quem procura o domínio e o controle do outro, a submissão aos seus caprichos, a concepção de privilegiado e malandro sobre os demais, sempre tirados como incapazes ou otários. Sem mudanças culturais, sem desapegos históricos, não temos socialismo nem anarquismo. Infelizmente, temos muitos socialistas assim. "Quem fala em revolução sem mudar o cotidiano, traz na boca um cadáver". A frase que exponho como subtítulo deste blog é dos muros pichados de Paris em maio de 1968. A contracultura sabia onde queria chegar.  

          O impacto ideológico do fim da União Soviética sobre socialistas e social-democratas do mundo foi profundo, aniquilando partidos "revolucionários", lideranças e fazendo outros assumirem a peleguice que encobriam. Quando predominava o manto da euforia que tomava conta de um grupo expressivo no Brasil, eram parte da "revolução". Quando a euforia foi frustrada,  rapidamente mostraram as garras vacilantes. Quem não lembra da virada brusca de posição do Sr. Roberto Freire (ex-PCB e atual PPS)? Ou mesmo do FHC sociólogo para o FHC presidente? O PT, então, nem se fala... Quando se viu socialistas históricos compondo alianças espúrias com a direita "para ganhar eleição" ou "pela governabilidade", roubando e maltratando todo o povo tal como a direita e os conservadores sempre fizeram, o golpe mais forte contra a perspectiva de esquerda foi dado. Por ela mesma! Como o povo poderia continuar concordando com a disputa partidária se ela, visivelmente, não espelhava mais mudança substantiva alguma no sistema em voga? Se a nível internacional havia fracassado? Se a nível local, o que se viu foi a ascensão dos métodos mais asquerosos de corrupção e privilégios praticados por quem mais os combatia?

          É desta circunstância que emerge o individualismo bárbaro de nossos tempos. A apatia, o desinteresse político, a descrença na mudança coletiva, todos estes elementos que compõem nossa cruel realidade cotidiana, tomaram conta junto com a errônea ideia do triunfo capitalista absoluto, que foi muito vendida e comprada a partir dos 90. Errônea porque as sociedades estão em movimento, a História está em permanente movimento, dependendo sempre das circunstâncias e das provocações dos humanos que atuam em seu tempo e espaço. Nada é imposto sem reação. Maior ou menor a reação dos bilhões de sugados do planeta, mais ou menos intensa aqui ou daqui a pouco, conforme a fé que dispõem e a consciência que ostentam, os meios materiais e as condições ambientais, sabem os capitalistas que é preciso destinar especial investimento em formação apaziguadora e alienante, assim como é necessário cada vez mais polícia e forças armadas para desunir, conter revoltas muito mais sangrentas e decisivas, espalhar o pânico e a fragilidade individual.   

        A produção historiográfica, então, seguiu o caminho de se ancorar nas investigações culturais, no cotidiano das sociedades as quais anteriormente havíamos destinado exaustivas explicações econômicas marxistas. Marx e os marxistas estavam errados? Não, não estavam em suas análises econômicas, políticas e ideológicas do capitalismo. Sim, estavam em seus projetos políticos de sociedade, em seus métodos de organização para implantação do socialismo no mundo. Ainda assim, não podemos condená-los pelo que fizeram pois todas as experiências são preciosas oportunidades de aprendizado. O que podemos condenar é a insistência no erro. Não dá mais pra trocar uma ditadura por outra. Quem é o humano vaidoso que, se dizendo socialista, porá as mãos sobre os meus ombros e dirá que vai me governar porque tem a primazia e a vantagem da consciência correta de liderança a meu respeito ou a respeito do que todos precisamos? Isto não cola mais. Ou cola, quando o intuito não é promover socialismo, mas promover populismo barato e nada revolucionário.  

         A historiografia dos anos 90 seguiu o caminho de se compreender melhor o que nossa cultura, o conjunto de nossos valores, crenças, costumes e rituais, nos dizem respeito, para além do que já sabemos quanto à dinâmica da produção e da distribuição desigual de riquezas materiais. Este foi um reflexo do fim da experiência soviética no mundo que ganhou força e expansão a partir do momento que o triunfo do capitalismo desnacionalizou e desestatizou o poder de regulação econômica dos Estados Nacionais sobre as empresas capitalistas. Quais os interesses e paixões que sustentaram a ideologia capitalista e a ideologia de cada classe dominante antes e depois daquela? Poderia ser um rumo destas pesquisas, como fizeram Thompson e Hill, por exemplo, na História Social Britânica dos anos 60, a respeito das ideologias políticas de resistência da classe trabalhadora depois que estes autores se decepcionaram com Stálin. 

            Parte dos historiadores tomou este rumo. Outra parte, não. Há quem investigue a cultura no sistema, do sistema e contra o sistema econômico em voga, correlacionando o tempo histórico de seu objeto com a sociedade de hoje, suas permanências (ressignificadas) e mudanças. Estes assumem seu papel de historiadores que têm total influência sobre a História que contam (não vivenciada pelo próprio, ambientada no passado) no mundo em que vivem (para compor com a história de seu tempo, a que deve ser feita à luz das experiências narradas sobre o passado) e não se escondem atrás do método científico, do relativismo absoluto às prisões conceituais. Outros tachariam simplesmente a iniciativa de anacrônica e perigosa, talvez simplista. Eu prefiro lembrar da alegoria do pintor, aquele que emoldurou de tal forma a expressão do quadro, até que deste não resistisse mais nem a pintura, nem a parede que suporta o quadro, nada além da citação do autor, pomposa e referenciada sobre um toco que já havia sido feito, reconhecido e estragado pela natureza, ou seja, sobre um nada novo cujo valor de relíquia é inquestionável. 

            Mas também há quem acredite que há valores que não são determinados pelo sistema ou que até interagem com ele mas têm vida própria. Quanto a estes últimos, ou são ingênuos ou se julgam espertos demais. Nem tudo que foi criado no mundo e ainda existe, de fato, é capitalista. Mais difícil ainda é ser obra de um indivíduo apenas... Há criações coletivas anteriores e persistentes, que datam de muito além de trezentos anos. Mais difícil é saber o que o capitalismo, junto com seus parceiros cristãos, não assimilou, ressignificou ou incorporou (eu diria, reduziu a existência real) transformando a beleza extenuante ou o caráter amplo de sua essência numa mercadoria que tem seu valor restrito ao financeiro nos dias de hoje. 

         Acredito que temos uma responsabilidade dupla quando trabalhamos com História: a compreensão das peculiaridades do período histórico que se estuda e a preocupação com o que pretendemos para o tempo em que escrevemos, produzimos ou contamos a História, ou seja, a contemporaneidade do historiador. Não há razão coletiva em se sustentar historiadores no tempo presente que apenas contem coisas do passado sem que sejam capazes de apresentar nexos com o presente, em estilo e opinião próprios, assumindo assim seu posicionamento politico-ideológico na sociedade e na interpretação dos fatos. Não é suficiente ou não é claro ao conjunto da sociedade que aquele fato histórico passado é, por si só, contado e compreendido, avaliado pelos contemporâneos como relevante origem das heranças que temos. Não temos atualmente, pelo conjunto da sociedade brasileira, bagagem que possibilite compreensões elaboradas, restando ao conjunto o desprezo pela importância da História quando esta tem e muito peso sobre sua vida particular e coletiva. 

        Estes historiadores do segundo grupo (aqui definido por "pós-modernos"), em geral, fogem da explicação econômica classista, realçam aspectos particulares que ganham sobrevida e autonomia nos processos históricos coletivos. Também têm o seu valor quando revelam negociações ocultas e subversões ao que esperamos de uma conjuntura de disputas classistas generalizantes. Mas não estão isentos ideologicamente de um posicionamento político, tal qual gostam de transparecer, a exemplo dos liberais. Quando enfatizam aspectos que descaracterizam a luta de classes, querem, de fato, superá-la no relato da condição de existência quando a própria existência capitalista anda viva e ululante a favor do que Marx preconizava.

        O que não consigo é aceitar o papel do método científico eurocêntrico que utilizamos para legitimar a História enquanto ciência. Estamos engessando a criatividade, a inovação, o posicionamento político do historiador em relação ao seu objeto, com esta "república das citações" que vigora como único caminho válido para se expressar com reconhecimento. Como minhas opiniões a respeito de qualquer processo histórico não devem ser consideradas se não forem repassadas pelo recurso "copia e cola" de impressões fragmentadas de outros autores? Isto, para mim,  só serve à lógica do direito autoral, da reserva de mercado inerente (do autor e dos professores que se perpetuam no entorno de sua corte) e, portanto, da limitação ao novo, uma vez que devemos repetir o que autores, em geral os das históricas metrópoles, sustentam e orientam. A historiografia marxista nem cogita a hipótese de alterar as bases deste aprisionamento conceitual, prefere a tradição que a sustenta, inclusive, seguidora de alguém para contar sobre tudo. A historiografia pós-moderna aponta para a superação desta necessidade mas ainda se encontra temerária, espera que a França faça isso antes do Brasil para então podermos copiá-la. Em ambos os casos, uma desgraça em comum: não podemos avançar no que Annales se propôs a fazer a respeito da relação do historiador com o seu objeto quando temos uma oportunidade histórica de fazê-lo. 

       Na época, definimos um paradigma novo e necessário, que correspondia aos anseios da categoria, para produzir História sem o condicionamento do nacionalismo e do memorialismo. Ainda que o distanciamento do historiador em relação ao objeto, o conceito de anacronismo e a necessidade de referência às fontes tornassem, a partir daquele momento, consensuais, Marc Bloch e Fevre pensavam adiante: pensavam na autonomia do pensamento e da expressão em plena década de 30 quando se referiram à importância de resguardar a interpretação do sujeito que pesquisa e também pode fazer a História em seu tempo.  Não conseguiram naquela época e levamos todo o século XX aprimorando a submissão a um método científico que nos oprime, em nome de um projeto de sociedade que se propunha libertador das opressões. Hoje, precisamos libertar o historiador  do que se tornou contraditório em seu ofício por respeito ao método científico: há toda uma doutrinação em torno da escrita da História, de sua interpretação, das regras para conceber qualquer inovação. Isto afasta diversas pessoas capacitadas que não conseguem ou não concordam em lidar com regras que reduzem a riqueza semântica de seus textos, a liberdade de se propor novos conceitos sem a referência anterior que oprime e reduz até a aniquilação da tentativa. Não defendo que  se faça do plágio a regra, que se recuse a citar de onde extraiu suas leituras e observações numa bibliografia adequada mas refuto veementemente as diversas limitações do método científico à escrita livre porque, de fato, ele se tornou hipócrita, trabalhoso e impeditivo à renovação. Escrever o que se pensa do assunto é o que define a diferença do autor, não o excesso de citações de outrem, numa apelação que mais parece esforço de um sujeito que sofre de complexo de inferioridade para se legitimar perante os demais. Ou que lembra nossa submissão intelectual aos europeus, ainda que estes tenham construído obras significativas, as quais não recomendaria a falta de leitura. 

         Eu quero ter o direito de não ser marxista, de não ser pós-moderno e, ainda assim, ser um grande historiador, referenciado não em outrem mas naquilo que investigo, observo, escrevo, debato, ensino e aprendo. Do jeito que caminhamos, estamos obtendo um custo alto para sustentar o método científico que, a priori, nos legitimaria ciência. É tão necessário assim à História que esta seja ciência? Que assim sendo, assimile e reproduza apenas a ideia de ciência que os franceses, os alemães e os britânicos determinaram? Por que não libertamos o historiador para seguir quem quer que seja, inclusive a ninguém, para pensar sobre o que já foi pensado e poder propor o que ainda não foi pensado? Ficará a Área de História na América Latina eternamente condicionada e colonizada, lendo o mundo como se fôssemos europeus? Ou aceitaríamos a proposta libertária que vos faço, ciente de que outros já fizeram, de libertar a História do aprisionamento conceitual, fazendo-a tão rica quanto as artes em geral, que se propõem a ler o mundo com liberdade, provocando transformações significativas em nosso tempo? Haverá um dia em que nós poderemos assumir a identidade dos sujeitos historiadores sem que estes se tornem meros copistas, pupilos medievos, de professores padres que se comportam como catequizadores e disciplinadores da reprodução e perpetuação eternas de seus interesses? 

        Espero que cheguemos a um consenso mínimo, porém melhor do que temos hoje. O respeito às fontes dar-se-ia pela citação bibliográfica ao final de qualquer obra, acadêmica ou didática, artística ou científica, mas apenas enquanto referência às leituras que o sujeito-historiador teve, não determinando a autonomia de toda a sua obra ou a legitimidade pelas universidades daquilo que foi produzido enquanto História. Torna-se História, a partir de então, toda obra que construa argumentos convincentes sobre o passado e seus reflexos no presente, definindo um papel objetivo e subjetivo entre os novos historiadores: quem escreve sobre a História deve se posicionar claramente quanto ao que faz para a História de seu tempo, seja o quanto há de relevância em cada objeto neste sentido, seja num redimensionamento completo da incrível arte de ensinar e de aprender sob as inúmeras linguagens existentes e possíveis no campo social.     

               

sábado, 3 de dezembro de 2011

Os assessores do advogado mineiro

         - Pode levar a chave! Se quiser, fique com ela, por favor! Minha mulher é toda sua!
         - Que isso, doutor!? [ajoelhado] Eu sou de menor, juro! Não faça nada comigo, por favor!
         - Levante daí, maluco! Você já não pegava minha mulher? Eu tô dizendo que estou te dando aquela desgraça! Não quero te prender, te matar, nada disso. Espero que você tenha sorte!


        [passam-se os dias... pessoas do povo param Sr.K na rua, impressionadas com o que souberam]


        - É verdade?
        - Sim, é verdade.
        - Mas você também está pegando?
        - Não, eu não. 
        - Vocês da cidade são muito doidos!
        - Nada, a gente costuma ajudar amigos. Se precisarem de uma casa pra cair, por que não? Não é o que Cristo nos ensinou?


        [pausa para reflexão...]


        - É mas... o marido dispensou a mulher no bar, parecia saber do amante, entregou as chaves da casa para ele e ainda deixou o senhor morar com ela? Isso aqui a gente chama de putaria, sem vergonhice, não é coisa de Deus não, uai!
        - Me explica uma coisa: pegar criança de 11, 12 anos, não é putaria não, sem vergonhice? E parente? Tem tanto filho de parentes que se pegam... aliás, noutro dia, dei um mole danado. Perguntei para um senhor se ele era pai de um menino aí e ele ficou brabo comigo, disse que só tem uma filha, de onde que inventei essa história... ora, disse pra ele que achava o moleque a cara dele.
        - Vixe!!! Nunca mais faça isso, carioca esperto!
        - Por que?
        - Porque, se ocê fizer, ocê perde a mulher do advogado na mão dos fiote aê...
        - Mas eu não tenho nada com a mulher do advogado! Ela é apenas minha amiga, já disse isso.
        - Sei.


        Passam-se os dias, os meses, uns três meses. Não aguentava mais. Desde que havia resolvido morar com a mulher do advogado, não pegava mais ninguém. Não queria a mulher do advogado nem o advogado! Eram simplesmente meus amigos. Ninguém acreditava. Pergunto a ela o que estava acontecendo.


        - Esperam você sair escondidos no mato. É você sair que aparecem. Insistem em me pegar, já fiz alguns. Outros parecem mais preocupados em saber se você está na casa, por perto, se volta cedo ou tarde. Dizem que têm medo da sua reação. 
        - Porra, mas eu não tenho nada contigo!!! Essa gente não entende... O engraçado é que insistem em fazer escondido! Comigo, apareceram umas mulheres assanhadas... não quero, porra! Onze maridos vieram com um papo torto pra mim. Disseram que vão me enfiar a porrada se souberem que eu estou com as mulheres deles. Quero os caras e os caras acham que eu virei hetero por sua causa! PQP!
        - Tá foda pra você, né amigo? Mas tem um que eu duvido que não te quer...
        - Não é só um. Mas tem que ser escondido de você, os mineirinhos são assim... fazer o quê? Vamos fazer o seguinte: durante esta semana, quem vai sair para resolver as coisas na rua vai ser você. Eu vou ficar em casa, à espera dos bonitinhos escondidos do mato. Ainda tem aquela peruca de carnaval que parece com o seu cabelo?
         - Sim, tenho. 
         - Ótimo. Eles não usam binóculos. 
         - Fechado, amigo. Vamos tentar.
         - Pois é, não dá mais pra ficar nessa seca aqui...
         - Tudo bem, faço isso pelo amigo.
         - Fechado?
         - Fechado.


         No dia seguinte, conforme combinamos, eu fiquei em casa e ela saiu. Ele apareceu. À distância, o cabelo era o dela, ele teria esta certeza. Mas eu não sabia: ele já a tinha encontrado no mercado. Sabia, portanto, que quem estava na nossa casa era eu.


          - Sr. K? Tudo bem?
          - Tudo. Chega mais!
          - Onde está a senhora?
          - Foi na rua, deve demorar.
          - Sei...
          - É que...
          - Fica à vontade!
          - Posso te pedir uma coisa?
          - Fala!
          - Huumm... [pegando a bunda de Sr. K., roçando o pau...]
          - Sabia que você me queria.
          - Não fala! 
          - Por quê? 
          - Porque eu sou macho. 
          - Entende uma coisa: falou que rola, acabou. Tudo na vida da gente pós-moderna aqui é assim: as grandes novidades são o cinismo e a covardia. A gente sabe qual é a verdade, a gente tem horror de falar dela. Então, a gente desvia. Dá foco na bobagem, levanta que é o que não é, dá uma certa volta pra chegar onde quer. Chora e jura o que quer e o que não quer! É quase assim o trabalho de um advogado, o senhor me entende? Ou a gente inventa o fato ou compra a justiça.
         - Entendo, mas acho uma derrota. Dá muito mais trabalho inventar bobagens desviantes, negar, mentir o tempo todo, lembrar do que mentiu pra cada um... sei lá, curto mais a energia da verdade, do papo reto, do sexo livre de paranoias.
         - Desse jeito, o senhor vai ficar sem ninguém. Agora, posso te pedir uma condição?
         - Sim, fale.
         - Ponha a peruca. Eu quero você mas tem outros no mato... sabe como é, né? Depois os caras me chamam de viado, viram tudo testemunha... 
         - Sei... fechar a janela e a porta não são suficientes?
         - O senhor tá antigo mesmo, hein? Sua casa tem câmera pra todo lado, Sr.K. Ninguém esconde mais nada. Quando você menos imagina, você já está no DVD da casa de um, na internet da casa de outro, e por aí vai. Nunca sentiu os comentários das pessoas? Jogam verdes inacreditáveis, parecem sempre saber o que rolou com você. Até aquilo que você fez sozinho, absolutamente sozinho.
         - Como cagar, por exemplo.
         - Sim, como cagar.
         - Deixa eu ver se entendi: ninguém esconde mais nada, todo mundo vigia todo mundo. Mesmo assim, temos que nos esconder do outro, de nós mesmos, se não falam mal da gente. Se falarem, a gente perde. Perde a moral, perde tudo. Se não falarem, é porque têm rabo-preso. Um joga pro outro o ônus de ser feliz, é isso?
       - É mas... quem dá o ônus é o senhor, né? Eu sou macho!
       - Sei...
       - Mas se o senhor gostar e me der um dinheiro aí, tudo bem. Posso dizer pra todo mundo que foi por dinheiro. "O viado me pagou". Prostituição não é problema, o problema é ser viado. Se as pessoas souberem que eu ganhei uma grana, elas me perdoam. Além disso, é costume: o senhor é mais velho que eu, tem que pagar.
       - Faz o seguinte: some daqui!
       - Por quê? 
       - Este contrato me broxa. 
       - Mas são as leis!
       - Fodam-se as leis!
       - Mas o senhor não é assessor do advogado? 
       - Sim, sou assessor do advogado. Escrevo mentiras para salvar pessoas da cadeia. Para fazê-las ganhar uns trocados de indenização. Adianto a vida. Mas agora estou pensando: tem gente que quer viver na cadeia. Você é uma delas! Portanto, não vai sair daqui tão fácil.
        - Isso é uma ameaça? 
        - Não, não é uma ameaça. É um fetiche sexual. Você está preso!
        - Mas o doutor jurou que eu não iria preso por comer a mulher dele...
        - De fato [já passando as algemas na cama e o braço do rapaz], você não vai preso por ter comido a mulher dele. Você está preso por alimentar o ônus do prazer que tanto curte e tanto condena! 
         - Nossa... e o que faço agora?
         - Chupa! 


         Conta o registro popular que este rapaz ficou preso por três dias, passando por diversos "tratamentos de choque", na casa do Sr.K e da esposa do advogado. Só saiu com o documento assinado, carimbado e fotocopiado. Dizia assim o papel burocrático: 


      "Dei, comi, chupei, beijei e senti todo o carinho dele sem lhe pagar um tostão. Sou viado também. Assino e dou fé." 


      Depois dessa, o rapaz se mudou da cidade. Precisava recomeçar a vida em um lugar em que a sexualidade, o desejo, o prazer, não eram crimes caros, rolos gigantescos ou demandas tão graves. 


        Foi pro Rio de Janeiro achando que iria encontrar a liberdade que não tinha no interior de Minas. Ficou assustado. As pessoas da cidade também estavam cabreiras demais, cheias de melindres... sentiu que a prisão ideológica estava grande. Fazia parte de um ônus cultural da época, espécie de avanço careta sobre o passado recente de conquistas no campo da liberdade do Ser. 


          Observando a realidade, não se fez de rogado: decidiu virar marinheiro. Sentiu que, se era pra ser maltratado, pelo menos deveria ganhar bem do Estado e passar batido em cada porto. Entre um porto e outro, o navio, pelo menos, seria uma festa à parte! Quem seria o louco de dizer que iria acabar com a sua carreira? O rabo- preso que um dia o torturou, de repente, virou sua principal arma contra os inimigos. Sem querer, estes, por cinismo e covardia, lhe deram um poder incomparável. Hoje é agradecido ao assessor do advogado e dizem que relê os contos libertinos do Marquês de Sade como se fossem hinos nacionais.