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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 9 de abril de 2011

SIFO! - Sociedade dos Súditos Independentes, Fudidos e Oprimidos pelo Império Educacional da LapiZeira

Colégio Santa Terezinha / Grafite São Gonçalo, 1997. Terceiro ano do Ensino Médio. 17 anos. Depois da transformação sugerida no post "A Droga da Obediência", da fase nerd para a fase kaosística-revolucionária, adotei o seguinte visual: cabeludo, vestido permanentemente de preto. Rock´n roll. Troquei os óculos pesados por lentes de contato. No começo, lentes comuns e olhos pretos. Depois, olhos cinza. Os cabelos viviam sempre presos, sendo soltos apenas na UFF. Adorava provocar os professores mais conservadores, respaldando minhas atitudes nas melhores notas possíveis.


Lembro-me do Prof. Edson Campos, de Português (porra, sempre os professores de português, não?), que também era diretor da escola. Saudoso professor! Era um excelente professor de português mas carregava consigo um conservadorismo xarope. Sua diferença: era conservador mas era bem-intencionado. Queria qualidade na educação e tinha uma proposta ideológica coerente com princípios nobres, aqueles que nos elevam o caráter e não rebaixam, por pura insegurança íntima, os sonhos alheios.
 
Eu nunca tive problema com as diferenças que me contrapõem aos conservadores bem-intencionados porque mesmo que pensemos diferentes, sabemos reconhecer, nós, os libertários, que conservadores bem-intencionados reconhecem suas limitações e nos respeitam nos momentos cruciais da vida.  Julgam-nos sonhadores mas, no fundo, curtem ao seu modo a nossa louca existência.  

Tenho dificuldades com conservadores mal-intencionados,  aqueles que objetivam o poder pelo poder, tendendo ao autoritarismo e à sabotagem cínica dos sonhos alheios por puro capricho. São vaidosos e inseguros, portanto, precisam destruir os outros. 


Este professor é o caso da primeira classificação. Por isso, honro seu nome e me orgulho de ter sido seu aluno. Provocava-o por puro exercício de construção identitária, algo inerente à juventude dos meus tempos, sem desrespeitá-lo ao ponto de querer destrui-lo. Sabia que o mesmo era o que ele me desejava. 

Certo dia, o professor pôs-se a vigiar a entrada da escola porque desconfiava da competência do porteiro na fiscalização dos uniformes. Aquela história de aluno de São Gonçalo, no auge do calor que atormenta aquela terra, vir de casaco ou camisa de malha comprida e preta, não estava pegando bem aos seus olhos e às regras da escola. Certamente estavam burlando uma regra fundamental ao aprendizado escolar: a uniformização dos diferentes.

Era o meu caso, óbvio. Minhas questões eram: 
1 - por que fazer propaganda gratuita de uma escola particular que meus pais pagam para que eu estude?
2 - por que eu não posso vestir preto se eu sou roqueiro e esta é a imagem que me interessa?

Abordado pelo Prof. Edson, coloquei estas questões em pauta. Estava com o uniforme debaixo da camisa de malha longa e preta. Ele exigia que eu, então, tirasse a roupa de cima. Eu o rebatia: se o problema é fazer propaganda da escola, eu corto minha camisa de cima na parte onde se encontra o logotipo da escola na camisa de baixo. Ele ficava furioso, sua cara rubra e possessa. Certamente, eu era um adolescente irritante. Mas era um bom aluno porque estava interpretando, argumentando, defendendo um ponto-de-vista e refutando interesses econômicos subentendidos, ou seja, não estava simplesmente mandando ele tomar no cu. Não estava arrumando pretexto para não estudar ou para não comparecer à escola. 

Na hora em que argumentei, ele me repondeu: "é, meu filho, vai, entra logo na escola, que dela vai ser difícil você sair. Com esses argumentos, vai acabar professor de História!" Ele soube reconhecer esta diferença. Posteriormente, arrumaria um problema maior com outros colegas por liberar esta exceção. Mas o interessante é que ele sabia o quanto eu gostava da área de História, ouvia meu papo e identificava uma vocação. Cedia ao argumento contrariado mas, ao mesmo tempo, estimulava meus sonhos que não eram dos piores que se encontram por aí.

O fato é que a gente não se contenta em ganhar uma discussão, a gente quer o mundo inteiro para si.

Pressionado pelos colegas que haviam sido insistentemente reprimidos em suas vestimentas alternativas, o Prof. Edson resolveu retroceder e me proibir de entrar na escola num outro dia. Puto da vida e sem compreender, ainda adolescente, que nossas liberdades individuais, por mais garantidas que sejam, serão sempre condicionadas pelas razões preponderantes no coletivo em que vivemos, convidei amigos para reagir de forma inteligente. Escreveríamos um jornal que seria distribuído de graça na porta do Colégio Grafite com críticas ácidas, deboches e outras provocações impróprias, logicamente sem citações diretas que nos comprometessem muito.

Meu amigo Ramon, hoje fisioterapeuta, bancou a ideia e me apresentou ao seu pai, então pretenso candidato a vereador por São Gonçalo cujo escritório possuía uma máquina de xerox importantíssima para nossas revoluções no cotidiano. Ramon era um cara popular na escola, gente boa com a política na veia que já promovia churrascos com a galera da escola em várias casas da elite gonçalense. Com outro amigo de bairro, eu utilizava o computador que produziria o jornalzinho perigoso, enquanto a distribuição gratuita seria financiada pelo pai do Ramon por muito tempo. 

Assim nasceu e cresceu o "SIFO! - Sociedade dos Súditos Independentes, Fudidos e Oprimidos do Império Educacional da LapiZeira (sic)", que era assim grifado por fazer chacota com o nome do Colégio Grafite. Durante muito tempo, explanávamos frases e comentários do ambiente escolar e apelidávamos nossos professores para que nunca eles pudessem nos processar (tamanha a ousadia, tamanha a paranoia). 

No final das contas, o Prof.Edson - que queria nos matar em diversos momentos - acabou permitindo que a publicação fosse distribuída dentro da escola. A capa do jornal passou a ser afixada no mural principal e, tirando um abuso ou outro que cometemos, como o dia em que fui acusado de racismo por uma colega negra por tecer considerações a um certo odor característico dos negros quando não patrocinam adequadamente a sua própria higiene, o jornal foi de vento em popa e mudou diversas regras de relacionamento na escola. Colocamos questões importantes em debate.

Hoje, agradecido aos professores do Grafite por terem sido profissionais na tolerância e no estímulo a um talento, sei que devo a eles também a opção por História, pela educação de qualidade como projeto de vida, aquilo que só fui rechaçar na própria faculdade. Tornei-me professor de História e lecionei por nove anos mas nunca terminei a faculdade porque nela, infelizmente, esbarrei com conservadores mal-intencionados que me perseguiram cruelmente. 

Devo dizer que estão todos perdoados e que fico feliz em ver as obras por que tanto lutamos, no período em que pela UFF passamos, serem concretizadas. Os maiores estímulos que tive na vida foram saber que, mesmo quando fui perseguido ou detonado injustamente, pude retornar aos mesmos lugares e constatar que as lutas que inflamaram a mim e aos meus amigos tiveram êxito após o nosso afastamento no tempo e no espaço, foram sementes que brotaram e desenvolveram frutos. 

Gostaria muito de contar isso para o Wellington Menezes de Oliveira* e a todos que, de uma forma de outra, alimentaram mágoas e ressentimentos nocivos do ambiente escolar. Com todos os seus defeitos, precisamos zelar por nossas escolas como espaços sagrados. Devo muito a todas elas.


* atirador da escola de Realengo, ex-aluno que voltou para assassinar crianças sem culpa pelos seus traumas.                     

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