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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

"Todo amor que houver nesta vida pra vocês"

      O bar é um santuário para alguns. Para outros, a casa do capeta. No bar, assim como nas igrejas, alguns rezam a oração dos solitários e encontram bênçãos; outros o procuram por desespero e encontram perigos. Há quem se sinta melhor com o álcool, mais à vontade, despossuído dos bloqueios mentais. Há quem se revele e fique melhor do que o habitual! Porém, há quem não possa beber também. Fica chato, agressivo, inconveniente. No bar, os amantes se encontram e os apaixonados brindam. Amigos de bar existem aos montes; amigos no bar nem sempre são encontrados. Muita política já foi feita em bar. E desfeita também! As torcidas de futebol gostam da TV no bar e todo o resto prefere a música. O bar é o templo dos artistas, dos marginalizados pelos moralismos em geral, daqueles que buscam um prazer na vida perturbada. Como todo local de encontro social, é espelho e caixa de ressonância da sociedade em que está situado. Às vezes, é mal aproveitado porque a função social das coisas existentes não se resume ao que aparenta ser.

           Queria falar  de Natal e festas de fim de ano mas as experiências de bebum acabaram martelando a cabeça. Têm razão de ser: nunca estive tão longe dos bares em épocas afins. Sou daqueles com larga vivência no assunto e vejo confraternização como algo que não deve se limitar a efemérides e feriados. Ademais, já encontrei Jesus no bar e o aniversariante, juro pra vocês, é muito menos careta do que rezam as cantilenas religiosas! Costuma habitar na boa intenção e na boa atitude, coisas que não têm lugar designado para acontecer. Passar o Natal num bar pode ser muito mais interessante do que ficar entre parentes que fingem que se amam uma vez por ano. Desde que se conceba a oportunidade humana nos desconhecidos, aproximar-se de um bar sozinho pode render inacreditáveis e maravilhosas experiências. O Natal, por exemplo, que toma corações os mais diversos para certa atmosfera de bondade, é capaz de fazer juntar gentes que não abarcariam tamanha tolerância e receptividade em outros momentos. Recomendo.

          Fiz muito discurso em bar. Fechei compromissos valiosos, alguns cumpridos e outros não. Neste ponto, sou coerente com o que julgo ter valor; amenidades ficam restritas ao bar mesmo. Tenho uma capacidade incrível, talvez magnetismo, de atrair as figuras mais insanas. Durante boa parte da vida, quando não entendia dos fluxos energéticos, quando a dinâmica espiritual ainda me soava engodo, fetiche ou superstição barata, julgava mal este tipo de atraído. Hoje não julgo mal, o que também não significa que tenha paciência sempre. 

        Tento aproveitar a ocasião para fecundar um mundo melhor. Quando não alcanço um êxito mínimo, pelo menos, não fico de vítima das circunstâncias: puxo um assunto, provoco um debate, evito uma briga, levo alguém pra cama, alcanço uma amizade, desenrolo aliados, construo ou desconstruo valores. Lembro com carinho de pessoas que nunca mais vi, que não são meus parentes ou amigos, mas que compuseram um grande enredo em parceria. Alguns enredos não duraram mais que aquele instante; outros construíram grandes obras! Isto é extremamente significativo. Saber dar valor ao ser humano tem mais retorno do que toda a propaganda sistêmica, inclusive a narrada por experiências ruins, ousa assumir ou enxergar.

          Adoro quando flagro um irmão evangélico, cheio de melindres, bebendo escondido. Pedindo para não ser revelado. Vou ao êxtase quando flagro pessoas buscando sexo ou amor nos bares da vida, ainda que o ato lhe seja proibido em função de um compromisso monogâmico ou de um moralismo inútil perante os que espreitam com olhares enviesados. Observo os incoerentes da moda, aqueles que condenam toda a sorte de comportamentos, tomam alguns goles e passam imediatamente a praticá-los. Estes me deixam entristecido mas lembro que a conta não vai ser minha e, desde que não me coloquem no rolo, sigo em frente e distancio-me tentando, pelo menos, não perder o aliado.

            Em Minas, por diversas vezes, utilizei o bar como aparelho revolucionário. Não me aguentava de ver os absurdos do prefeito local, tendo sido, inclusive, vítima de suas arbitrariedades. Discursava e me expunha publicamente na defesa dos direitos mínimos que a douta democracia apregoa. Entre derrotas e vitórias, angariei, numa balança sincera, mais aliados e amigos que desafetos e inimigos. As músicas que gostava de tocar no aparelho de DVD, videokês da vida ou naquelas máquinas com ficha que são odiadas por alguns frequentadores eram cuidadosamente escolhidas dentre aquelas que ilustravam uma preocupação social, uma crítica política ou uma reelaboração afetiva e íntima de valores arraigados pelas tradições. 

     Quando produzimos vídeos sobre a luta dos 50 servidores municipais concursados e expulsos pelo prefeito, fui pessoalmente em diversos bares e casas para assistir coletivamente e debater com as pessoas da cidadezinha do interior o que estava acontecendo. Esta atividade política foi de fundamental importância num lugar que não tinha acesso à internet nem ao celular até o ano passado. No povoado onde eu morava, não há sinal de celular até hoje e o da internet, via rádio, foi uma luta da qual me orgulho também de ter travado e conquistado. Destes debates, obviamente, como em tudo que acontece no cotidiano do interior, vimos uma repercussão estonteante em torno do Estado Democrático de Direito, uma novidade que parecia ainda bem difícil de acontecer a quem não fosse rico entre 2008 e 2011. Em um ambiente de coronelismo da República Velha, onde pouco havia espaço para a diferença, confrontei com costumes e práticas arriscadas, não muito distantes daquelas também vivenciadas nos centros urbanos brasileiros da contemporaneidade. O que diferencia a atuação no grande centro para uma cidade pequena é que, no grande centro, há a possibilidade de você encontrar sua própria tribo, dar repercussão ao caso e continuar tocando a vida particular mais ou menos em certo grau de liberdade.  Fazer este tipo de formação política no interior do Brasil não é desafio simples para quem se propõe a fazê-lo sem anteparos institucionais, como partidos políticos, imprensa, Ministério Público ou sindicatos. Lá, nada disso existe e a lei maior é, de fato, feita por quem manda porque "quem manda" compra a polícia, a justiça e qualquer outro que se ponha no caminho. E se não quiser se vender, morre. A lei é simples. 

           O bar foi ambiente não apenas deste movimento de servidores públicos mas também onde prestei consultoria jurídica, conselhos espirituais, reforços escolares e aulas sobre qualquer assunto. Não raro, alguém se aproximava de mim e iniciava assim a conversa: "como ocê é um cara estudado, que sabe das coisa, eu quero te fazê uma pregunta..." Daí poderia vir de assuntos complexos sobre política e direito trabalhista até questões afetivas íntimas, fazendo-me lembrar sempre do personagem principal da grande obra de Malba Tahan, "O homem que calculava". 

          Nesta obra clássica, o homem que calculava era um sujeito que aparecia nas mais remotas comunidades árabes diante das mais diversas intrigas e querelas humanas, fazia uma proposta de acordo ou esclarecimento às partes em litígio ou que careciam de informações, e conseguia alcançar um consenso. Deste consenso, o homem que calculava, célebre por saber fazer contas complexas e argumentos convincentes, ainda retirava uma parte para si como forma de pagamento pelo serviço kaosístico. E assim ia vivendo. Seu conhecimento e sua lábia eram sua profissão. 

         Diferente, porém, de querer tirar proveito dos outros, minha atuação em Minas contou com ajudas do tipo, mediante esclarecimentos e apoios tácitos. Muito contribuiu para isto o fato de que as pessoas da região  não confiavam nos advogados - o que é bastante razoável. Queriam ouvir sempre a opinião de alguém que, se apresentando mais estudado e honesto, pudesse orientar a respeito. Também pudera! Quantos casos em que advogados tomaram terras de pequenos proprietários pela simples manipulação de procurações e documentos diante da falta de instrução do povo! Pude testemunhar relatos bárbaros de trabalhadores rurais que diziam ter ficado sem nada após um litígio qualquer. Fui assessor de advogado, um de meus malabarismos de sobrevivência, e tive acesso a casos escabrosos sobre a questão fundiária em Minas Gerais.

              Outra atuação paralela, também muito feita em bar, era a defesa das liberdades individuais em contraponto ao moralismo católico. Reconheço riscos nesta proposta, menos por sofrer retaliações físicas ao meu comportamento de homossexual assumido, e mais por confrontar com uma hipocrisia em que a esfera do público deveria ser totalmente poupada dos acontecimentos em quatro paredes (ou em quatro matos). Não foram poucas as vezes em que os homens fizeram gracinhas públicas, piadas e até insinuações descabidas, provocações... à noite, bêbados, invertiam esta lógica querendo sexo. Nos bares, não raro, mediante o grau etílico, convidavam e faziam aquilo que muito condenavam. Nas minhas participações, não jogava o jogo dos hipócritas de ficarem falando mal de gays, exaltando mulheres entre rodinhas e, depois, ficarem submetidos àquelas paranoias típicas, àqueles avisos ameaçadores, àquele trato doentio para não serem revelados após uma noite de muito sexo. Nada contra os discretos. Tudo contra os que falam mal e fazem. Total apoio aqueles que se assumem. Essa era (e ainda é) a minha política: o ideal é a sinceridade, o menos pior é o silêncio e o erro é o falso moralismo.

           Acredito que o amor ao próximo é possível, que é preciso ceder e se afirmar para construir relações humanas mais saudáveis. Não concebo o bar em si como uma mera propriedade privada, feita para produzir lucro aos seus donos ou diversão superficial àqueles que perpassam suas instalações. Este é um reducionismo existencial exemplificado de que tanto tratamos acerca da dinâmica capitalista. Ao reduzir o que se passa no mundo, as criações, sentimentos e necessidades humanas ao valor supremo de mercadoria, o capitalismo promove um desserviço à humanidade. Pior ainda quando, além de reduzir o sentido existencial de tudo que pode, não satisfeito, faz das coisas mercadorias inacessíveis à maioria. A pior parte de um bar não está no encontro e no desencontro que promove, ou nas consequências do álcool na vida de muitos, mas justamente no fato de que o sistema capitalista restringe as experiências do sujeito sem dinheiro. Retira-se boa dose de prazer e liberdade necessários ao convívio com os próprios problemas e com a humanidade. Esta experiência sufocante inspira mágoas e rancores muito piores, que serão descontados adiante, não se sabe em quê nem em quem. Um sistema que causa mal-estar profundo na humanidade tem que dar conta de válvulas de escape, como são os bares e os acessos às drogas em geral, ainda que seja complicado comparar o prazer de estar num bar do outro acesso, que é estar numa boca de fumo. A proibição do comércio da boca leva à militarização das relações, a um jogo que envolve armas de fogo, e ainda piora o que só seria um mal-estar do excesso ou da falta de dinheiro. 

       É preciso pensar em novas relações. O povo mineiro de onde eu morava até que lida bem com isso, uma vez que ninguém que não tenha dinheiro fica sem beber. É mais fácil o sujeito beber do que ter outra felicidade. O sistema de fiado, muito interessante, também era um grande adianto na vida dos clientes confiáveis. Este é um outro segmento. A camaradagem entre bebuns, às vezes, conseguia ser maior do que entre fumantes. Eu espero que o ano novo mude isso: temos de pensar na felicidade global e parar com essa besteira moralista de que o sujeito pobre tem que ter só comida. Comida para o corpo, tudo bem, é claro que é fundamental mas... e a comida para o espírito? Fica aonde?

        "Todo amor que houver nesta vida pra vocês!" - diria Cazuza. Todo amor? Sim, amor não pode ter limites de consideração. Amor é entrega, é desejo de alteridade. Que, em 2012, a gente reflita e pratique o amor de Cristo com mais coerências filosóficas e menos dramas de controle. Beijos e até! 
               
                                   

              

            

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