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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 10 de março de 2012

Construções dialéticas e (des)encantamento(s) súbito(s)

                         A geração que hoje se apresenta na casa dos 30 anos foi a última a vivenciar, ainda jovem, um mundo sem internet. Talvez a última a percebê-la como ferramenta de comunicação poderosa, embora muito vigiada e incapaz de substituir contatos físicos. Digo isso porque é visível para mim, um de seus membros, o grau de influência da rede sobre comportamentos individuais e sociais. Uma influência que começa no ritmo de vida, de pensamento e de atitude diante dela, e segue sobre a interpretação do mundo no entorno, chegando ao cúmulo, em alguns casos, de se fazer crer no mundo virtual como algo soberano e/ou natural, ainda que paralelo, aos costumes e necessidades do mundo real. Dedicamos horas e dias aos contatos e feitos pela rede virtual sem refletirmos adequadamente em até que ponto somos acompanhados ou se estamos solucionando problemas reais.

             Pessoas que se conhecem ou se relacionam pelas redes sociais são chamadas de "amigos".  Assim, não raro, cada pessoa supõe ter mais amigos que qualquer outra de qualquer geração anterior. Ledo engano. Amigo tinha uma conotação de intimidade e de confiança que não se traduz no distanciamento eterno de teclados e webcams. Continua tendo, embora conviva com esta ilusão contemporânea. Aquele que se perde na ilusão contemporânea dos amigos virtuais fatalmente se perceberá angustiado de solidão. A explicação se situa no fato de que trocamos energias fundamentais nos contatos físicos e os contatos virtuais podem apenas nos oferecer uma parte reduzida das trocas reais. Se não oferecermos o equilíbrio necessário entre ambas, ou melhor, se os amigos virtuais não se encontrarem fisicamente nunca, não saberão discernir a ironia, a intenção e o sentimento de quem se comunica. Isto para ficar em três exemplos cruciais que pouco podem ser sentidos sem os complementos gestuais dos contatos físicos. Há outros aspectos.

           As redes sociais constituem o maior e mais eficiente banco de dados sobre os indivíduos de todo o planeta. Assim, de forma voluntária, pessoas se dedicam a deixar públicas todas as informações necessárias a qualquer outro que objetive o mapeamento de seus passos. Pode ser um amigo o interessado na sua vida mas também podem ser o Estado, o inimigo, o patrão e o bandido. Além das fotos e de cada detalhe sobre nosso passado e presente, apreços e desgostos, temos uma rede de contatos que também oferece um rastro magnífico sobre preferências e hábitos em comum de cada grupo social. Ligado nisso, o internauta consciente não publiciza o que  lhe oferece riscos reais ou, se o publicizar, é porque está disposto a encarar os riscos. Parece óbvio mas não é com essa preocupação que as novas gerações atuam na rede. 

            Quem não vivenciou ou estudou a respeito, tende a sofrer da ingenuidade sobre a histórica maldade humana, aquela que repete erros do passado por conveniência ou ignorância sobre os conhecimentos proporcionados pelas ciências sociais e a filosofia, mas que é fraca diante da força do conhecimento e da sensibilidade dos justos. A sociedade do conhecimento é também a sociedade do controle sobre o conhecimento. Trata-se de uma contradição muitas vezes imperceptível, noutras vezes um pulo para a esquizofrenia. Fato é que o sujeito racional e o sujeito sensitivo precisam caminhar juntos nesta matéria e buscar o equilíbrio entre percepções intuitivas e conhecimentos científicos quando navegarem na internet ou em qualquer ramo da vida social.

                Gerações que vivenciaram a ditadura militar ou estiveram um passo adiante, precisamente no período de "redemocratização" do Brasil, conviveram com o fato ou com os relatos e resquícios dos métodos nada democráticos de investigação e "justiçamento" cometidos por torturadores a serviço do Estado Brasileiro ou mesmo de organizações fascistas que o sustentaram antes,  durante e depois da carnificina, que ainda estão por aí defendendo-a, e que vez ou outra, de acordo com o interesse de sua classe social, fazem se firmar nos rumos da política vigente. Estes grupos cometeram toda a sorte de controle sobre o pensamento que puderam cometer com as tecnologias disponíveis à época. Grampos telefônicos, pessoas infiltradas fingindo-se de companheiros ou amigos, cartazes com rostos e associações destes com crimes comuns para justificarem suas prisões e assassinatos eram métodos comuns e sua divulgação, ou a divulgação de qualquer análise crítica a respeito, era proibida. 

               É muito grave quando se comete um crime comum contra alguém por ódio ou para tirar proveito individualista. É muito mais grave quando se inventa qualquer tipo de crime comum para justificar uma ação coercitiva sobre uma pessoa indesejada ao sistema politico-econômico vigente. Assim, aqueles que nos são apresentados pela grande mídia como ladrões, assassinos, terroristas, traficantes, estupradores, etc., podem sê-lo ou não o ser, e isto deve ser sempre analisado criticamente pelo espectador das mídias. Dada a velocidade com que as informações circulam no mundo virtual, dada a falta de apuração qualificada, dada a vigilância ostensiva e o impacto que geram todos esses elementos da notícia, de acordo com os interesses em disputa na sociedade, temos aí uma profusão de informações que pode caracterizar uma nociva desinformação. Formar-se quanto aos interesses em disputa na sociedade e enxergar a internet como veículo de comunicação destes trata-se de necessidade imperiosa a cada indivíduo que a acessa cada vez mais novo. Isto, infelizmente, não é trabalhado por nosso precário sistema de ensino nem mesmo pelas famílias, resultando numa formação autodidata que está, ao contrário dos autodidatas do passado, superdirecionada por fluxos de interesse que se impõem sobre nossas redes de relações. 

               Os mesmos interesses que formatam nossos jovens a só ouvir determinados lixos musicais são os mesmos que conseguiram transpor a tática do antigo jabá das rádios e TVs (grana por fora para difundir e repetir apenas artistas do interesse da indústria fonográfica) para o ambiente consagrado das redes de amigos virtuais. Se hoje há quem divulgue seu trabalho sem as gravadoras de outrora, há também quem só consuma o que aquelas gravadoras falidas e readaptadas ao novo cenário impõem. Sendo empresas capitalistas, estas gravadoras sempre tiveram o interesse maior no lucro mas nunca desviaram o foco da idiotização das massas, uma estratégia de perpetuação do capitalismo, que seleciona como descarta seus melhores e mais competentes "incluídos" dentre aqueles escravos mais obedientes.  

                Lembrando os ensinamentos das obras de Kafka, alguém pode dormir trabalhador ou estudante, acordar, ir ao trabalho ou à escola, e se deparar com reações adversas as quais nem imaginaria por que razão se manifestam. Contribui para este fato uma influência da internet a serviço do sistema capitalista: tornamo-nos mais isolados, individualistas e hipócritas nas relações reais. Há quem compartilhe no facebook, por exemplo, mensagens emblemáticas deste sintoma: "fale na cara o que você só tem coragem de dizer no facebook"; "saia do face e venha pra luta!", dentre tantas outras. Estas não são tão agressivas quanto o fato de você se tornar alguém que não seja, ter dito o que nunca falou, sentir indiretas no mundo real sobre aquilo que acreditava ter compartilhado de forma restrita e acabar desempregado, perdendo um grande amor ou preso por incitação ou prática de um crime qualquer que não cometeu.

                 Assim, a narrativa de um fato abandona livremente o fato em si, sua razão de ser, para se tornar cada vez mais versão propositadamente elaborada e repetida. As pessoas passam a interagir com esta perspectiva mental: inventam, distorcem, falsificam e propagam com a rapidez de um clique. Muitos já não conversam mais que dez segundos nos encontros reais, considerando enfadonho qualquer aprofundamento conceitual, de leitura do mundo e de relacionamento interpessoal. Isso é sujeição a determinando comando, prova cabal da manipulação de sentidos físicos e de pensamentos a teleguiar indivíduos e grupos. Tem o objetivo de desagregar a potência do encontro físico. Aos mais jovens, muitas vezes, trata-se de um mecanismo imperceptível ao ponto de considerarem-no banal. Se em toda a história da humanidade, as grandes criações exigiram tempo livre, contínuo e longo, que efeitos estamos alcançando com tamanha pressa? Perturbações de todo tipo estão aí como epidemia e a mercadológica do lucro incessante e ascendente triunfa sobre um manto de estupidez, alienação e quantidade como sinônimo de qualidade. Mas ainda há os que resistem, ou seja, as falhas na matrix que até agora se utilizam do mesmo instrumento para propagar a sociedade que vislumbram.

                Há quem apenas tenha se tornado mais imagético no mesmo uso ideológico que se fazia com as antigas táticas de comunicação. Percebendo-se do quanto a sociedade está submersa aos comandos da velocidade e do encantamento que se  desencanta subitamente, alguns exploram seus interesses transformando qualquer atividade humana contínua em eventos distintos oferecidos num contínuo. Assim, uma causa que mobilizaria multidões hoje é prontamente substituída por outra amanhã sem que ambas tenham encontrado resultados satisfatórios no que se fizeram crer. O único propósito destes é assegurar visibilidade publicitária do autor, seja com fins eleitorais, seja com fins comerciais, pessoais ou de manutenção de certo status quo. Outro grupo pretende mais. Adentra o mesmo ambiente de fluxos intermitentes para posicionar seu fluxo de conteúdos e propósitos enquanto prática pedagógica da sociedade libertária. Esta frente pressupõe a liberdade na internet mas também a de todos os seres em existir, pois sabemos que só podemos nos consagrar livres exercitando contatos físicos e mudanças reais. Desta forma, a sociedade libertária tem na internet um fluxo de atuação e construção mas não se restringe a ela, prezando a ferramenta e não a exclusividade de seus fluxos. Não interessa aos libertários transformar lutas e conquistas humanas importantes em mercadorias descartáveis ou eventos que mais se assemelham aos interesses da "sociedade do espetáculo", pois estes estão a serviço da disputa de poder quanto ao controle da sociedade, coisa que não pretendemos.  Queremos, antes de mais nada, o acesso livre à informação e ao contraditório mas também queremos a materialização de relações humanas mais intensas, sinceras, autônomas individualmente, ainda que coletivamente exercitem um poder horizontal. 

          O sexo virtual não nos satisfaz porque não consegue suprir nossas necessidades de troca de afeto. Precisamos dos olhos das pessoas, da pele, do cheiro, do gosto, dos gestos diante dos comentários, impressões vivas de seus afetos concretos em múltiplas linguagens, para que possamos também ceder os nossos e realizar a ousadia e a criatividade que despertam. Libertários têm matrizes energéticas na natureza, na liberdade e nos encontros físicos, de forma que reprimi-los ou reduzi-los é algo tão insensato o quanto inócuo. Se não delegamos a ninguém a autoridade sobre a nossa existência, nosso movimento no mundo não depende de líderes que, uma vez corrompidos ou mortos, acabam levando consigo toda a coletividade que lhes inspirou. Podemos até nos fazer presentes em eventos mas não tememos nenhuma continuidade, pelo contrário, aprofundamos a continuidade na mudança tática que se fizer necessária. É uma forma de ser imprevisível, desapegado deste controle social habitual que acredita estar no comando quando não está vinte e quatro horas por dia nem consigo mesmo. Sabemos da relevância da prática pedagógica libertária em qualquer lugar, sob qualquer circunstância ou condicionamento do capital. Assim, matam um de nós e emergem cinco. Assim, a internet não contem nem dez por cento de nossas intenções ou feitos no mundo. Assim, podemos ser personagens de nós mesmos quando precisarmos estar próximos do inimigo, ainda que este nem desconfie de quem supre todo o resto de informações, realizações e afetos reais. Assim, todo o aparato de repressão é quase um combustível para nossa sede de justiça. Com amor, Liberdade do Ser.       


                      

                  

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