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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Resultados

Cresci aprendendo que os melhores resultados são aqueles que podem ser medidos em números. Horrível, claro! As estatísticas podem ser forjadas, as contas podem se fechar por cálculos difíceis de explicar e as metas, ah, divinas metas são aquelas que explicitam uma tendência numérica crescente. Crescente, progressiva, superada pela antecessora: adjetivos que são associados à evolução que representa o que se pretende defender. Na maior parte das vezes, sabemos que os resultados numéricos, desejados ou alcançados, são inócuos perante a realidade. Não importa. Vivemos uma limitação mental que reduz a existência das coisas à sua própria representação. O preço, por exemplo, é uma representação cruel de valor que sufoca a poesia da vida. Mesmo assim, insistem os capitalistas, são incontestáveis: os números, os preços do mercado e os critérios quantitativos para medir produtividade, eficiência, desempenho e a razão de ser de cada empreendimento humano. Eu chamo de incompetência o que eles chamam de eficiência.

Assisto com tristeza à privatização da saúde pública em meu estado. Sérgio Cabral (aquele governador com 1001 motivos para estar preso, se vivêssemos em uma democracia de verdade) e os deputados estaduais que se alinham às suas práticas criminosas genocidas aprovaram um projeto de entrega da saúde pública a gestores privados que receberão recursos públicos pelo NÚMERO de atendimentos efetuados. Isto quer dizer: é só forjar o atendimento e receber a verba. Onde está a qualidade, a eficiência, o melhor desempenho para a saúde pública, num projeto que só alimenta desvios? Para tal ganho, além dos recursos públicos que alimentarão as “organizações sociais” de políticos, parentes e empresários amigos, sem a necessidade de licitação para compras e contratações, arruma-se também a progressiva destruição do servidor concursado. Fala-se mal deste, que é inepto e corrupto, faltoso e baderneiro, mas nunca se fala em punir seus chefes políticos, responsáveis diretos por tudo que não funciona no serviço público. As cifras volumosas de desvios na saúde são efetuadas pelos agentes políticos, nomeados ou eleitos, que impregnam os cargos eletivos e/ou comissionados no serviço público e sugam tudo e mais um pouco. O estatutário, muitas vezes, é quem ensina a prática cotidiana dos atendimentos, dos procedimentos e das razões técnicas dos serviços que executam às demais espécies que vêm ocupando seu espaço sem contrapartida eficaz, mas sofre de todas as dificuldades de execução na ponta. Os salários não aumentam, os insumos não existem, os leitos são poucos perante o contingente populacional e tudo isso se deve a prioridades políticas ou a roubo mesmo. Os estatutários podem ser corruptos? Claro que podem, principalmente quando são coagidos por seus superiores políticos a fazê-lo. É o que mais acontece.

Ai de quem não concordar com os sábios rumos dados pelos chefes! Os novos contratados por estas ONGs ficarão sem os direitos trabalhistas habituais, aqueles que reservam um pouco de dignidade à espécie humana, no maior golpe estatal contra servidores públicos depois da Era FHC. Dirão os espertos gestores: “reduziremos custos!” Errado: tirarão do trabalhador que precisaríamos para um atendimento qualificado e concentrarão um monte de recursos nestes mesmos empresários sugadores, que nada mais são do que os próprios políticos ou os seus amigos.

Isto é reduzir custos ou é desviá-los para apropriação do público pelo particular que matará milhões a mais de doentes necessitados? A privatização é declaração do Estado de que vai roubar ainda mais da saúde para piorá-la, efetivando o projeto neoliberal de manutenção de uma pequena casta intocável rodeada de famintos e desesperados. Operação mais próxima de uma monarquia absolutista que de uma república decente. Os exemplos de malversação dos recursos públicos deveriam afastar estes governantes e não os permitir que avancem ainda mais sobre os mesmos recursos. Mas quem pode fiscalizá-los dentro do aparato estatal também está habilmente condicionado pela ideologia das metas quantitativas de desempenho.

O Ministério Público do Estado do RJ não pode fiscalizar direito o governador fascista. Tem que cumprir METAS DE DESEMPENHO impostas pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Estas metas, como defendem os competentes gestores da miséria humana, são quantitativas. Logo, associadas a um NÚMERO de processos encaminhados em TEMPO recorde. O que se descobriu desta competência toda? Promotores estão arquivando o maior número possível de processos que envolvam homicídios sem apuração. Assim, atingem a META QUANTITATIVA, que só enxerga eficiência numa representatividade numérica inócua (?), deixando os homicidas impunes. Recebem o mesmo ou um pouco melhor por isso, demonstrando celeridade e respeito com a coisa pública. Por este critério, o governador Cabral, por exemplo, continua livre, uma vez que cada um dos crimes que pratica não pode resultar em uma denúncia embasada do MP. Seria gastar muito tempo para investigar e julgar, o que emperraria a fila quantitativa. Tem que ser toda arquivada para gerar número de causas julgadas, o que equivale à eficiência e à produtividade da máquina. 

Quanta insanidade! Quanta irresponsabilidade! Quanta maldade! No final, os bandidos – como é o caso do governador e de tantos outros – continuam soltos e o Estado Democrático de Direito não o é de fato. É o quê, então? Fascismo? Ditadura disfarçada? Pode ser. Então vale tudo.

Vejam o caso do Enem. O MEC resistia em liberar as notas das escolas para evitar rankings. Liberou este ano associando as notas à quantidade de alunos que fizeram a prova por escola, isto depois de fortes protestos das escolas particulares. Resultado: estamos melhores porque subimos de 502 para 511 pontos numa escala de 1000 (!?). Percebe-se cotidianamente que a situação da educação brasileira é sofrível e, neste caso, o número ridículo parece concordar. Não sei se uma prova nacional é capaz de avaliar realidades locais com a precisão que acalenta (até porque eu tenho a sensação de que ainda é pior) mas sei que até hoje não significou NADA em termos de melhoria para as escolas. É de uma produtividade inútil se o objetivo for a melhoria da qualidade, já que os números não estão associados a investimentos maiores no que precisamos. 

Qualquer critério quantitativo que generalize a prática pedagógica é igualmente improdutivo: professores receberem gratificações por desempenho diferenciadas só perverte o professor a agradar mais o seu avaliador. E quem será o avaliador? O aluno? Como? Se cada turma reage de um jeito a uma mesma proposta pedagógica, a um mesmo conteúdo, a uma mesma avaliação, importando ao professor, a cada dificuldade, novos meios e tentativas de se fazer compreender? Sabemos que todos os professores merecem respeito e dignidade mínimos, o que não possuem com o que ganham ou da maneira como são tratados pelos governantes, pelos próprios colegas, pelos agentes políticos nomeados para a direção escolar, por alguns de seus alunos, pelas famílias e pela sociedade. Vamos cuidar disso primeiro? Não, temos que ter metas quantitativas. Pois então, o avaliador seria o diretor, que é nomeado pelo político? Então, o objetivo é coagir e restringir direitos, já que esta turma (a dos diretores impostos) não está interessada em qualidade. Está interessada em obedecer e/ou bajular seus chefes, aqueles que lhe deram a boquinha, o que não muda muito se compararmos às relações trabalhistas do setor privado. Onde está o avaliador da meta de desempenho? Aquele que não quer o desempenho? Aquele que tem que justificar exclusões para se perpetuar no pequeno poder passageiro em que se apega tanto?
   
No começo do Enade (provão do ensino superior), lembro como se fosse hoje: Paulo Renato era Ministro da Educação de FHC e prometia utilizar a prova como parâmetro para financiar as instituições públicas que estivessem precárias, além de fechar as privadas na mesma condição. Passados tantos anos, raríssimo ver instituição privada fechada por baixa qualidade; pelo contrário, muitas são subsidiadas. Quanto às públicas, o resultado nas provas não significou mais ou menos investimentos. Tudo o que se vê de investimento recente em infraestrutura está ligado ao aumento quantitativo de vagas e de cursos. A universidade expande vagas para estudantes mas não o faz na mesma proporção com que contrata professores e servidores técnico-administrativos. Resultado: turmas lotadas, excesso de contratos temporários e/ou de utilização da mão-de-obra barata dos próprios bolsistas de mestrado ou doutorado nas graduações. Os critérios quantitativos estão em direção diametralmente oposta a dos critérios qualitativos mínimos, levando também este serviço público para a ineficiência que justificará sua privatização. Que não resulta em melhor qualidade também e ainda exclui aluno por falta de dinheiro. Uma bosta completa!

 Temos de parar de tentar implementar no serviço público o que é motivo de insatisfação, incompetência e mal-estar na iniciativa privada. Sabemos nós que, de fato, toda essa ladainha por eficiência e produtividade é farsa, pois que não há possibilidade de maior eficiência e de maior produtividade por parte do trabalhador se ele ganha menos, é mais ameaçado de desemprego, vê seus direitos cada vez mais diminuídos, é forçado a um ambiente hostil de competição destrutiva, perde tempo livre para trabalhar mais e mais. O que mais rola como consequência direta é roubo do patrão por empregados, vingança, praga, queda vertiginosa da qualidade dos produtos oferecidos ao cliente, mais ações judiciais e gente puta da vida com a empresa, o órgão, seus chefes e funcionários. Todo mundo em conflito com todo mundo. Desespero e depressão. Violência.

Eu chamo de sinais do modo de produção capitalista chinês contemporâneo, que é comandado por uma ditadura que se diz comunista, em que os agentes políticos do Estado financiam e controlam empresas com o dinheiro de todo mundo, escravizam seus trabalhadores e produzem produtos vagabundos para competir em preço com o resto do mundo. Resultado: domínio de mercados, desastre ambiental com o descarte de resíduos descartáveis, demissão em massa de trabalhadores nos países onde tomam a concorrência da indústria local sem vantagens. Trabalhadores subempregados ou em condições análogas à escravidão como discurso de competência competitiva! Huuummm... que atraso, humanidade! É assim que a China vai dominar o mundo e nós alternarmos de metrópole? Esta é a grande novidade? Na verdade, “um museu de grandes novidades”, como dizia Cazuza.
 
Chegamos ao cúmulo de propagarmos uma cultura da malandragem em todos os graus e níveis de individualismo possíveis, o que é profundamente nocivo a todos. Patrões que procuram ser corretos com os direitos trabalhistas não encontram profissionais minimamente comprometidos no mercado. Profissionais comprometidos não encontram a oportunidade de emprego que merecem, pois este é restrito aos conchavos entre parentes e amigos dos patrões, não necessariamente competentes para a função. Todo o resto é número para inglês ver.

O mais certinho dos trabalhadores já percebeu que tomará voltas significativas na hora de receber. O mesmo acontece com os patrões, na hora de contratar ou de manter alguém no emprego. A relação capital X trabalho funciona assim hoje em dia: por precaução, evitam-se ao máximo a sinceridade e a honestidade para não alcançarmos dificuldades pessoais maiores. Isto vira um inferno se pensarmos que tal postura, muitas vezes, não tem razão de ser naquela relação restrita entre aqueles indivíduos da oportunidade exemplificada (patrão que paga corretamente e respeita os direitos trabalhistas X trabalhador comprometido e qualificado), mas quando se habita na ameaça constante, que é esta instabilidade econômica proposital, cria-se o medo como amante de qualquer indivíduo normal. Há uma sucessão de casos que influenciam a mentalidade coletiva, alimentando o pavor da insolvência, do fracasso, da violência, da perda, que resulta em injustiças e desequilíbrios inacreditáveis.

Os critérios quantitativos (moda e pensamento único ditados pelos números desviantes do foco), presentes em toda configuração social dos nossos tempos, não oferecem respostas qualitativas para o que precisamos evoluir, seja no serviço público, seja em qualquer área. Erram profundamente todos os gestores, políticos e trabalhadores que acreditam neste engodo matemático e ainda competem entre si por ele. A mídia faz ostensiva defesa destes critérios, assim como as faculdades e MBAs da vida que cuidam do controle corporativo contemporâneo.

Estas metas de desempenho, de produtividade e de eficiência (chinesas!) que amarram os indivíduos a uma compreensão mecânica, frágil, constrangedora e contraditória, poderiam ser extirpadas de nossas proposições políticas. Não resultam em nada a mais que não seja mais acúmulo material para poucos, mais guerra entre todos e mais doenças no mundo. É isso que queremos? Então estamos no rumo certo. Mas se o que pretendemos é qualidade de verdade, aquela que supere a condição de miséria espiritual em que nos encontramos, não podemos nos limitar no investimento material, no tempo ou nos benefícios que assegurem dignidade aos seres humanos. A inversão de valor que pressupõe a poesia ao seu preço é inegociável àquele que defende uma transformação cultural alternativa à mentalidade reducionista do capitalista. 
 
Lembrei de tratar deste assunto porque estou retornando à UFF após longos meses de definição sobre o meu direito de retornar e garantir a conclusão da minha graduação. No último artigo, invoquei a necessidade de discutirmos formação superior espiralada como alternativa à formação linear tradicional dos cursos de graduação. Enquanto os capitalistas defendem que temos de formar mais pessoas em menos tempo, eu defendo exatamente o contrário: temos de continuar formando (o que não se esgota nas titulações da legislação educacional, mas continua e se aperfeiçoa com a práxis social) permanentemente, até a morte ou a desistência do indivíduo, aquele que quiser continuar seus estudos livremente, sua relação de convívio com o saber científico e com o saber popular. Nossas instituições têm de ser preparadas para receber conhecimentos diversos e aproveitá-los como legítimos ao invés de rechaçá-los ou discriminá-los.

A quem ou ao quê interessa um número fantástico de diplomados em tempo recorde? O que importa é saber e não decorar, foi o que ouvi desde pequeno dos meus pais e dos professores. A pressa é inimiga da perfeição, foi o que ouvi enquanto sabedoria popular. Incrivelmente não é o que o mercado entende como qualidade para servi-lo. Prega a necessidade de formação apenas como desculpa para exclusão e as pessoas em geral correm atrás, como espermatozóides afoitos, para a inclusão de poucos privilegiados ao acesso dos benefícios. Esta é a nossa miserável fecundação social... Ter um diploma o mais rápido possível tornou-se critério maior que obter o antigo e respeitável documento por, de fato, este atestar um saber aprofundado ainda que especializado. E pensar que a perda anterior, dentro do processo de degradação, fora a especialização do conhecimento em função da divisão social do trabalho! Sendo assim, o que vemos é gente pagando por diplomas a prestação, o que equivale a cursar com rapidez e de qualquer jeito, sem leituras ou experimentações variadas e profundas, para alcançar a profissão que deseja exercer. Sabemos nós que as consequências são previsíveis: advogado que não sabe escrever, médico que não sabe medicar, professor que não sabe ensinar, profissionais que fazem de tudo por dinheiro, titulados que se impõem como intermediários entre contratantes de serviços e verdadeiros profissionais, etc., etc., etc.

O modelo de formação espiralada que defendo parte da minha opção de vida por ser professor antes de me formar e, agora, de me formar para continuar sendo. Tudo porque tento conciliar o que idealizo com o mundo real, o que nem sempre dá certo mas que sempre me revelou ser o caminho mais correto e compatível com minha saúde física, psíquica e espiritual. Enquanto professor, permaneço aluno. Há muito o que aprender para além dos títulos e acho que, só agora, compreendo o que mestres da educação tão citados na academia, como Paulo Freire, queriam dizer.

É hora de rebaixar a legitimidade dos números inócuos, aqueles que não refletem melhorias significativas na qualidade dos serviços, dos produtos e das vidas humanas. Vamos nos enganar eternamente, vendendo e comprando gato por lebre como se fosse exemplo de competência e eficiência? Expor o trabalhador a muitas horas de trabalho forçado, diminuir direitos e renda, trará melhoria para alguém que não para a satisfação momentânea do egoísmo de poucos? Momentânea sim, porque facilmente dissolvida pelas consequências. Violência, insônia, depressão, mal-estar, doenças de todo tipo (destaque para o câncer)...

Houve um tempo em que todas as ciências se curvavam à Biologia tentando justificar comportamentos e tendências sociais. Deu no que deu: nazi-fascismo. Estamos num outro momento sem perder de vista aquele: curvamo-nos agora também a uma Matemática Suprema, cuja racionalidade lógica das estatísticas e das porcentagens parece pairar sobre os interesses políticos e a realidade social, determinando-os. Não seria o contrário o mais racional? Interesses políticos e realidade social determinam a necessidade lógica dos cálculos para solucionar seus problemas. Ou eu estou ficando maluco? Como a própria Matemática é formada de representações com princípios acordados entre as partes que as calculam, parece que o grande problema não é matemático, mas de discernimento: não há fórmula aplicada a um caso concreto que não reivindique os interesses que a conduzem. Estes interesses são objeto das ciências sociais, a incômoda e mal paga área que não refuta como óbvio o que não é. Ou que, pelo menos, não deveria refutar, né?

          Isso que dá naturalizar o que é criação cultural humana! Enquanto os liberais chamam de “idealistas” os seus opositores, volto pra eles o próprio idealismo de suas proposições. A diferença que nos nutre é que, no nosso caso, os ideais que empreendemos não são conduzidos pela perversidade da mesquinharia. Logo, se não for pra melhorar pra todos, não serve a ninguém. Desconfiamos de números chineses. Temos motivo pra isso: todo dia, utilizamos serviços públicos concedidos à iniciativa privada. Não melhoraram nada, talvez apenas a maquiagem, a forma de fazer. Roubo por roubo, prefiro os mais baratos: os que valorizam direitos como caminho mais lógico para a eficiência do trabalhador, os que são movidos pelo bem-estar social e os que resgatam a passionalidade latina no meio da frieza racionalista saxônica.

domingo, 28 de agosto de 2011

Formação Linear e Formação Espiralada: debates sobre qualidade na formação superior brasileira


            Aqueles que me conhecem, amigos e desafetos, sabem que não sou de assumir uma missão, seja ela profissional, seja ela política, sem arriscar mudanças na mentalidade coletiva. Antes fosse uma questão simples de opção de vida, que já pudesse abrir mão, sempre que minha vida pessoal fosse ameaçada no rolo criado. Na verdade, sou levado a tais atitudes mediante a decisão de terceiros, que sempre invocam a condição de autoridade, cometendo abusos ou desvios contra mim e contra um coletivo simultaneamente. Não posso nem me dar ao luxo de dizer que sou o único alvo de suas pretensões, o único culpado ou a única vítima de atitudes equivocadas que descambam em movimentos de reparação à injustiça quase sempre vitoriosos. É exatamente o que está ocorrendo agora, mais precisamente desde o dia 31 de maio de 2011, quando busquei concluir minha graduação e alcançar o diploma na universidade que tanto defendi a existência, enquanto instituição pública, gratuita e de qualidade, entre os anos de 1998 e 2002.

            Conferi a legislação interna da UFF e percebi que tinha o direito, apesar do tempo em que me afastei e das disciplinas que cursei. Fiquei ciente de que não poderia tentar retornar para o curso de Letras Português-Latim, cujo ingresso se deu por outro vestibular bem-sucedido no ano de 2006. O motivo? Justamente o mínimo de disciplinas cursadas, que na faculdade de História eu tenho. Em Letras, cursei um semestre. Na História, conclui as disciplinas pedagógicas, as instrumentais, as optativas e as eletivas. Restaram pouquíssimas do ciclo básico e do ciclo profissional, o que, segundo me foi esclarecido pela Pró-Reitoria de Graduação, asseguraria um fundamento sólido, à luz da legislação interna em vigor, para a minha rematrícula (como é chamada a petição pelo retorno de matrícula cancelada). Não bastasse a legislação, conheço das políticas públicas em vigor, implementadas pelo MEC, que visam a diminuição da evasão acadêmica e, portanto, vinculando a quantidade (sempre ela) de estudantes à liberação de verbas para projetos de infraestrutura (o famoso REUNI). Com a oferta maior de vagas preenchidas, mais verbas. Portanto, se a legislação e as políticas públicas me amparam, por que eu não voltaria e concluiria a graduação, possibilitando um concurso público na área que já me consagrei pela experiência? 

Se eu fosse professor da graduação, no mínimo, diante de um histórico formal deste estudante, tanto quanto estudante da UFF quanto professor de fato por tantos anos, de uma carta fundamentada com razões de ordem pessoal e de um pedido de retorno legitimamente assegurado pela resolução interna, tendo toda a circunstância político-institucional favorável, no mínimo, trataria com maior atenção e boa vontade para com o caso. De fato, não se trata de uma abordagem normal. Como educador que sou, sendo o caso de exceção ou não, pensaria no que posso fazer para ajudar um cidadão que já foi da casa e a vida tratou de impor caminho diferente. Aquele que quer voltar, com uma rica experiência de vida para contribuir, não pode ser tratado com burocracias e argumentos frágeis que, sabemos bem, servem mais como mecanismos para escamotear uma intenção excludente. Esta sensibilidade deve estar acima de qualquer outra perspectiva quando se vive e se pratica educação. É o que fui obrigado a praticar quando estive dando aulas no ensino fundamental e no ensino médio, por exemplo, onde endossei inúmeras apostas em alunos aparentemente problemáticos, com dificuldades momentâneas na vida, corroborando em transformações significativas e me sentindo professor de verdade.

            Neste momento, quando já se passam quase TRÊS MESES da minha solicitação inicial, vi o coordenador da graduação em História rejeitar meu pedido e a burocracia da universidade tomar um tempo valioso de aulas corridas, além do que assisto a diversas outras propostas de vida serem comprometidas à espera da decisão soberana interna, já que impetrei recurso questionando a atitude do Prof. Manuel Rolph (coordenador da graduação em História)  desde 11 de agosto último, no Conselho de Ensino e Pesquisa da UFF, e a decisão (acredito) só virá em setembro.

            O que está em jogo nesta dificuldade em receber o aluno que vos escreve de volta? Posso pensar em duas hipóteses claras: uma seria um rancor político que não teria se esgotado quase DEZ ANOS DEPOIS de minha participação política no movimento estudantil, o que seria uma lástima, só pelo tempo em que rancores idiotas se perpetuariam na academia impedindo a produção do conhecimento alternativa à vaidade dos que lhe comandam. Mas não acredito que seja o caso específico, pois, ao que eu me lembre, nunca encontrei na pessoa do Prof. Manuel Rolph motivos para tal. Não fui seu aluno na especialidade em que lecionava, a área de História Antiga. Muito menos tivemos confrontos diretos por esta ou aquela posição política durante alguns momentos mais brabos que aquele departamento encarou. Para não pensar que o professor esteja apenas atendendo a pedidos covardes de outros professores, o que seria muito medíocre de sua parte mas não impossível, tendo a considerar que as razões podem estar na segunda hipótese que desvelo a seguir.

            A formação linear é conceituada como aquela que persegue linearmente, ou seja, reta e diretamente, sem desvios ou intempéries, o cumprimento do cronograma de disciplinas do curso, seu tempo, seus pré-requisitos e suas funcionalidades previsíveis. Quando se concretiza um modelo linear de formação, é imperioso que este modelo estabeleça suas regras igualitárias para a titulação de qualquer estudante. Não há o princípio da desigualdade aos desiguais. Além deste fato, o modelo de formação linear prezado pela Área de História da UFF sempre direcionou seu aluno para a pesquisa científica (o que seria coberto pelo bacharelado) em contraposição hierárquica superior às necessidades do magistério fundamental e médio (o que seria coberto pela licenciatura e ficaria a cargo da Faculdade de Educação complementar opcionalmente por fora). Não há problema em aprofundar a pesquisa científica e acredito que esta seja fundamental também à prática docente. O problema está no desprezo a um, na hierarquização de saberes e no descarte de conhecimentos importantes que a práxis social traz ao estudante. 

Portanto, minhas considerações se direcionam à contraposição hierárquica imposta entre o Bacharel e o Licenciado em História, o que, a meu ver, nem deveria existir, quiçá ser motivo para exclusão de pensadores. Vejo que o vestibular atual oferece vagas separadas para bacharelado e licenciatura, o que, na minha época, não existia. Mas foi o menosprezo à licenciatura que determinou a formação de muitos colegas que só tiveram posteriormente o magistério de níveis fundamental e médio para encarar como profissão. Uma vez que o campo responde majoritariamente pelo mercado de trabalho dos historiadores, o que havia – não sei se ainda o há – era um distanciamento muito grande entre a formação do historiador pela UFF e a realidade social brasileira, os obstáculos encontrados nas escolas, os fatores que levariam tantos colegas ao fracasso e à evasão das carreiras docentes em pouco tempo.

Nesta perspectiva, ainda durante a graduação, solidarizei-me com os debates iniciados pela Prof. Magali Engel quanto à formação do professor de História dentro da Faculdade de História da UFF. Cursei uma disciplina instrumental chamada “História do Ensino de 1º e 2º Grau” que, pela primeira vez, era oferecida por uma docente da área de História e não da Faculdade de Educação, onde tínhamos diversas críticas ao modelo infantiloide das pedagogas de plantão que, em nada praticamente, nos servia. Em diversas aulas da Faculdade de Educação, encontrávamos um tratamento dado a crianças da educação infantil, sem debates mais complexos, atividades externas ou experimentações do fazer pedagógico. Na matéria da Profa. Magali Engel, pelo contrário, pensávamos da melhor didática à melhor avaliação em História, sendo nossas notas atribuídas a uma negociação constante entre professora e alunos. A professora chegou a organizar a Revista Tempo (revista do Departamento de História da UFF) V.11, no 21, de 2006, cujo dossiê (“Ensino de História”) trouxe a debate artigos do Prof. Ilmar Rohloff de Mattos e da Profa. Flávia Eloisa Caimi, dentre outros, sobre a relação direta entre formação superior e ensino de História no Brasil, cujos fragmentos disponibilizei como fundamentação ao recurso encaminhado ao Conselho de Ensino e Pesquisa:

“(...) Entre as inúmeras
dificuldades, é preciso mencionar, primeiramente, a permanência, nos
meios universitários, de convicções que hierarquizam pesquisa e ensino, sendo
atribuído à primeira o papel de criar/produzir o conhecimento, que caberá ao
segundo reproduzir. O ato de ensinar é visto, assim, como mera repetição dos
saberes de referência – no nosso caso, a história – por meio de uma linguagem
didática e, portanto, simplificada, quase sempre distorcida.”

Prof. Magali Engel, IN: Apresentação, p.2



“Uma leitura singular que revela o fato de os professores de história estarmos
imprimindo à nossa prática cotidiana um significado diverso, provocando
talvez uma surpresa e rejeitando uma inferioridade. De modo categórico,
afirmamos ainda uma vez que, por meio de uma aula, também se conta uma
história; que, ao se contar uma história por meio de aula, também se faz história;
e que somente ao se fazer história por meio de uma aula nos tornamos
professores de história. Por lermos de um modo singular uma proposição,
podemos afirmar que também somos autores. Mas o fazemos não para afirmar
uma semelhança, e sim para sublinhar a diferença que nos identifica.”

Prof.Ilmar Rohloff de Mattos, IN: ´Mas não somente assim!´
Leitores, autores, aulas como texto e o ensino-aprendizagem de História, p.11.

“(...) é paradoxal verificar como persiste, nos meios acadêmicos,
a concepção de que, para ensinar História, basta a apropriação, nos cursos
de formação, pelo futuro professor, dos conhecimentos históricos produzidos e
sistematizados pela historiografia e pela pesquisa histórica, negligenciando-se
a preocupação com estudos sobre a aprendizagem, ou seja, com a construção
das noções e dos conceitos no pensamento da criança ou do jovem. As políticas
públicas recentes para formação de professores nas licenciaturas, expressas nas
Diretrizes Curriculares dos Cursos de História e nas Diretrizes para Formação
Inicial de Professores, agudizam, em certa medida, esta polarização, uma vez
que apontam perspectivas diferentes no que se refere ao perfil do profissional
da História. As Diretrizes para Formação Inicial de Professores concebem
sua formação como ponto de partida, seguindo-se daí a especificidade do
trabalho pedagógico nas diversas áreas de conhecimento que compõem as
licenciaturas, ao passo que as Diretrizes Curriculares da História entendem
que o ponto de partida deve ser a formação do historiador, derivando dela as
especificidades de atuação profissional nos campos da docência, da pesquisa
e da gestão de patrimônio.
Esta dualidade de concepções, presente nos documentos legais, reflete
a diversidade de pontos de vista entre os profissionais da História e os
da faculdade de educação dentro das universidades. Historicamente, têm-se
manifestado tensões e dicotomias entre licenciatura e bacharelado nos cursos
de graduação, constituindo-se, de um lado, os que defendem a soberania do
conhecimento histórico e, de outro, os que advogam a supremacia da orientação
pedagógica na formação do profissional da História, definindo hierarquias
de valor e importância entre os conhecimentos ditos ´específicos´ e os ditos
´pedagógicos´.
O mirante a partir do qual estendo o meu olhar, o lugar de que falo e
a posição que assumo, neste estudo, me levam a afirmar que o domínio dos
conhecimentos históricos a ensinar pelo professor não é condição suficiente
para garantir a aprendizagem dos alunos, embora dele não se possa prescindir,
absolutamente. Se é correto afirmar que ninguém ensina, qualificadamente,
um conteúdo cujos fundamentos e relações desconhece, também é possível
supor que a aprendizagem poderá ficar menos qualificada, se o professor desconsiderar
os pressupostos e os mecanismos com que os alunos contam para
aprender e os contextos sociais em que estas aprendizagens se inserem.

                                                                       (...)

Demonstrando a complexidade da tarefa educativa no âmbito da escolarização
básica, Tardif define o saber docente como plural, formado pelo
seguinte amálgama: saberes pessoais dos professores (sua personalidade, sua
história de vida); saberes da formação escolar anterior (suas experiências na
escolarização básica); saberes da formação profissional (graduação, estágios
curriculares, seminários, cursos, leituras, etc.); saberes provenientes dos programas
desenvolvidos e dos livros didáticos utilizados na sala de aula; saberes da
sua própria experiência na profissão (interlocução com seus pares, socialização
profissional).  Se as práticas escolares protagonizadas pelos professores se
constituem de todas estas nuanças, é necessário admitir que o tempo de um
curso de graduação é insuficiente para a consolidação da aprendizagem profissional.
Neste sentido, a contribuição mais importante a ser dada pelos cursos
de história na formação do professor talvez seja a de fazer ruírem os quadros de
referência prévios dos professores em formação, no que respeita à compreensão
da atividade de ensinar como mera transmissão, ao entendimento dos alunos
como depositários de fatos, à definição dos conteúdos escolares como fins
em si mesmos, dentre outros. Em seu lugar, a compreensão de que o ensino
é, fundamentalmente, ‘uma relação social caracterizada pela dependência
mútua, pela interação e o engajamento social entre os nele envolvidos’ ”.

Prof. Flávia Eloisa Caimi, IN:  Por que os alunos (não) aprendem História?
Reflexões sobre ensino, aprendizagem e formação de professores de História. p. 21 e 31

Vale dizer que a Profa. Magali Engel deixou a UFF para trabalhar na Faculdade de Formação de Professores da UERJ (São Gonçalo). Uma perda significativa, sem dúvida alguma, para o curso e um prestígio legal para a galera da FFP.

Pois bem, diante destes argumentos e de experiências vividas, eu defendo que a formação superior deixe de ser linear e se torne espiralada. Na área de História, como talvez em outras licenciaturas, isto significaria um avanço concreto às graduações e à prática docente de ensino fundamental e médio. A base curricular tornar-se-ia flexível para assimilar aprendizados externos à academia. Se atualmente o estudante comum só vai encarar o mercado ao final do curso, através de estágios que acabam resumidos a relatórios da atividade escolar de outros professores, passaríamos a adotar um modelo em que ele promoveria, desde o primeiro período da graduação, o seu intercâmbio entre saberes científicos e saberes populares, planejando-o devidamente e executando, ou ainda, executando para posteriormente sistematizá-lo. Não se teria um tempo mínimo nem máximo para o acompanhamento, a realização e a avaliação final, deixando tal prerrogativa à negociação livre entre as partes. O peso que exerce uma monografia para a conclusão da graduação seria equiparado ao peso de um projeto de intervenção social concreto, onde a conclusão seria a revelação de uma solução empreendida a um caso concreto, e não apenas o diagnóstico teórico redundante sobre aquilo que agrada ao seu mestre ou doutor orientador.

A primeira sugestão apresentada acima, a do intercâmbio entre saberes científicos e saberes populares, foi o que busquei realizar enquanto aluno e organizador-colaborador-parceiro das Semanas Culturais “500 Anos de Poliesculhambose”, cuja proposta era aproximar artistas populares e acadêmicos no debate sobre a História do Brasil e a necessidade ou não de comemorar o advento da invasão portuguesa em 1500. A Rede Globo comemorava no país inteiro, em 2000, a data de 22 de abril de 1500 como grande acontecimento patriótico e nós rechaçávamos esta conduta, enquanto nossos professores da Faculdade de História nos rechaçavam pelo barulho das intervenções nas suas aulas. Não consideravam o que estava ocorrendo como aulas reais e, nesta postura arrogante, trataram até com falta de educação muitos de nossos convidados.

Com o meu afastamento da graduação para dar aula de diversas formas e em diversas frentes, também pude experimentar o intercâmbio descrito fora dos muros universitários. Dei aula em escola particular, em programa de rádio comunitária, em escola pública, no bar, em praças e em diversos encontros sociais. Atividades conexas à educação também explorei, como a militância sindical na categoria dos professores, o desenvolvimento de algumas frentes específicas de movimentos sociais, a orientação jurídica de oprimidos no interior de Minas Gerais etc. A Profa. Sônia Nikitiuk, em seus cursos de Prática de Ensino I, II e III, na Faculdade de Educação, foi a única que, mesmo com dificuldades de locomoção, pois tinha um problema nas pernas, dignou-se a visitar a rádio comunitária em que eu exercia o trabalho de professor-locutor e traduziu esta atividade como uma prática pedagógica legítima. Dizia-se cansada com a mediocridade mediana e, à esta altura, já deve estar aposentada. A Profa. Maria Lúcia, também da Faculdade de Educação, transformou a Poliesculhambose em objeto de pesquisa do seu grupo de bolsistas. 

Curiosamente, tive mais professores atentos ao trabalho desenvolvido fora de minha graduação específica em História, como também posso citar o empenho da Profa. Tânia Stolze (Antropologia) quando decidiu convidar, traduzir por uma semana e receber em sua casa, abrindo mão de suas aulas formais naquela semana, uma família de índios Juruna que participou do evento. Ou da Profa. Sílvia Scchiavo (Antropologia), amante da formação espiralada, que impulsionou seu fazer pedagógico a partir das relações entre a literatura nordestina e a tragédia grega, levando seus alunos à intimidade do bar, ao canto na mesa de sinuca, ao cinema e às aulas em qualquer lugar. Por estas razões, mais rechaçado e perseguido que ouvido ou esculpido, deixei a graduação em História para fazer História antes mesmo de abandonar a UFF, o que explica a conclusão de disciplinas optativas, eletivas, instrumentais e pedagógicas antes daquelas obrigatórias de meu curso. Senti-me impulsionado por convicções ideológicas que me direcionaram à formação espiralada que tive. Algo que não deve ser descartado, rebaixado, humilhado como “ilegítimo”, “coisa de vagabundo” ou “de péssimo estudante”, qualificações que geralmente recebo ou ouço, ainda que tenha adquirido um arcabouço riquíssimo de experiências, leituras e intervenções coletivas.

A academia, ao permitir a formação espiralada de seu estudante, corrigirá um erro histórico, uma violência contra diversos gênios perseguidos na História da Humanidade, que ousaram legitimar uma nova interpretação de mundo através da interação entre o conhecimento científico e o saber popular, tendo sido duramente diminuídos, submetidos às dores da perseguição política e da miséria, quando não mortos, para então serem reconhecidos e valorizados. Por outro lado, inserirá os profissionais que encaminha à sociedade no rol das necessidades e desafios sociais concretos, evitando choques de desespero e desperdício com a profissão escolhida e corroborando com as necessidades prementes da nossa sociedade. 

Um dos desafios colocados à formação de professores em geral, não apenas aos de História mas aos de todas as disciplinas e níveis de formação, aos que atuam em qualquer front, se na rede pública ou na rede privada, se no terceiro setor ou de maneira informal, situa-se na constituição de uma sólida identidade docente. Professor tem de se reconhecer professor, tem de se solidarizar com o colega, tem de conhecer dos perversos mecanismos históricos de desunião da categoria que levaram à estranha condição de ser a única atividade no país que exige nível superior de escolaridade mas recebe, em contrapartida, apenas 60% (ou até menos!), em média, dos salários de outras carreiras. Não raro, os concursos públicos disponíveis exigem cada vez mais pós-graduação como fator de pontuação extra e exclusão. Um advogado graduado ou um engenheiro em igual nível ganha muito mais sem a necessidade de pós-graduações. Deveríamos superar os fatores de desunião, promovendo a inclusão, o aperfeiçoamento, a união e uma carreira docente com propostas de formação, atuação profissional e remuneração diferentes das possibilidades atuais.

O empenho da Universidade Federal Fluminense neste sentido deveria ser pioneiro pois, de fato, a universidade tem tradição e prestígio social suficientes para implementar inovações. As motivações políticas que distanciam professor universitário e futuro professor dos demais em atividade não têm constituído vantagem para ninguém, nem para os próprios, nem para seus estudantes, nem para a sociedade como um todo. Penso que as licenciaturas precisam treinar profissionais capazes de envolver e sensibilizar estudantes para a importância do conhecimento e da produção deste conhecimento de forma autônoma. Formar papagaios é o que estamos fazendo há muitos anos. Dos anos 90 para cá, com o advento de novas tecnologias e novos acessos à informação, o jovem vem rejeitando violentamente o fazer pedagógico, sem recursos ou novidades, que insiste em se fazer impor sem nexos ou pontes com os interesses de nossa época.

Um bom professor tem de ser preparado para além do conhecimento teórico indispensável à área em que atua. Tem de ter formação em mentalidade coletiva brasileira in loco, em legislação, em gestão escolar, em artes cênicas (retórica, improviso, impostação de voz, presença de palco, expressão facial, etc.), em informática e recursos afins, em linguagens para portadores de necessidades especiais, em formação política e ser experimentado continuamente em diversas frentes, recebendo por tal diversas titulações que não as tradicionalmente referenciadas por nossa legislação educacional. Acredito que a formação básica e inicial (2 anos) deveria ser comum a todas as licenciaturas, construindo uma identidade docente antes mesmo das especificidades de cada área do conhecimento. Durante a formação teórica específica (posterior à formação básica), haveria o acompanhamento desta formação identitária primordial, estimulando-a a atuações conjuntas em escolas, cursos, etc. Deveríamos ter a coragem de reconfigurar a pedagogia, retirando seu status soberano de formação para o magistério em educação infantil e ensino fundamental das séries iniciais, das licenciaturas e dos profissionais de gestão escolar (supervisão, orientação, direção), para inseri-la na formação docente comum a todas as áreas. Seria extinguir a figura do pedagogo, incorporando seus conhecimentos e possibilidades profissionais ao novo professor que se pretende formar, que, por sua vez, também poderia atuar em todas as áreas do conhecimento, da educação infantil até o ensino médio, optando por fortalecer especializações no curso de sua formação vitalícia.

Desta maneira, acredito que superaríamos limitações históricas da educação brasileira, pelo menos aquelas concernentes à formação docente. A cultura da hierarquização entre pedagogos, licenciados, pós-graduados; professores generalistas e professores de disciplina específica; professor primário e professor secundário; orientadores, supervisores, diretores e professores regentes, dentre outras instituições de desagregação, que só serve para pontuar limitações diferenciadas de conteúdo, prestígio social e remuneração, cairiam por terra. Penso que a formação básica comum habilitaria o sujeito a ser professor até o ensino médio, independentemente do grau de ensino ou área de conhecimento, servindo as especializações que constituem as graduações e pós atuais espécies de formação complementar, com diversas titulações graduais e contínuas a oferecerem. Isto posto à formação teórica e complementado pela práxis social, de forma contínua e conjunta, creio que resultaria no professor que precisamos na atualidade e para gerações futuras, uma vez que, não raro, encontramos no ensino médio alunos que não sabem ler ou escrever, interpretar texto, fazer conta, e que, constituída como tal, tanto no que se refere às bases curriculares da educação básica quanto à formação docente, a educação brasileira apresenta aspectos sofríveis porque também empurra a missão de alfabetizar para frente ou para trás. Ora, se alfabetizar é precípuo, primordial e intransferível, estamos empurrando estudantes sem saber nada a uma titulação fictícia de nível fundamental e médio. Acredito que o quadro docente das escolas, mediante tal gravidade, tem de estar preparado para alcançar o nível de deficiência e dele partir, jamais se esquivando do que não seria sua competência de nível. 

Observo que estas proposições não substituem o devido investimento financeiro do poder público na área, hoje escasso e irresponsável. Paralelamente ao crescente investimento, à remuneração minimamente dobrada em relação aos padrões atuais e à melhoria da infra-estrutura em geral, faz-se mister uma  reformulação da formação docente. Entendo que há dificuldades estruturais do professor em encarar a realidade nas escolas brasileiras de uma maneira geral, um ambiente cada vez mais hostil ao conhecimento, o que só se agrava pelo fato de que estamos, cada qual, isolados na nossa ilha de formação, em que o historiador fala uma língua, o pedagogo outra, o matemático outra ainda diferente. E todo mundo acha que está com a razão, deixando tudo como está.

Além de encontrar resistência a mudanças pedagógicas, encara-se usualmente uma profunda resistência até mesmo quando o professor é convocado a convergências de seu próprio interesse. Identificar-se como categoria da classe trabalhadora tem sido complicado e, ao mesmo tempo, útil aos manipuladores do pensamento, aqueles que se interessam por uma educação desqualificada. Estão na formação docente também aspectos culturais desagregadores que justificariam os crescentes e sucessivos prejuízos políticos e econômicos da categoria, sua desmoralização social e a de seus sindicatos. Só uma formação de identidade docente sólida que superasse nossas peculiaridades em nome da condição de Professor, um resgate da legitimidade de seu saber, de sua autoridade e de sua importância estratégica na sociedade, poderia imprimir uma categoria mais unida e combativa. Algo que a academia, na atual construção de formação especialista e soberba de si, refuta e sufoca, como posso servir de exemplo pessoal ao caso, gerando conseqüências conhecidas.    

O sujeito hoje completa sua graduação, encaminha-se e conclui sua pós –graduação, e, em nenhuma delas, consegue reunir instrumentos para lidar com o que vem encontrando nas escolas. Isto é grave porque as titulações atuais parecem não corresponder com o que vem sendo exigido pela realidade social brasileira. A falta de recursos públicos na escola pública e/ou a insuficiente remuneração, mesmo na iniciativa privada, são um ponto vital da reestruturação da carreira, como igualmente o é o devido convívio e a devida atenção aos aspectos do cotidiano das escolas, incluindo a cultura predominante na comunidade onde está situada, o ponto real em que se situa o nível de conhecimento da média dos alunos mesmo que em série incompatível. 

Para que sejam corrigidos erros históricos de descaso com a educação, qualquer iniciativa séria que priorize a qualidade do ensino (e não a quantidade) deverá levar em conta o que têm a dizer sobre o assunto os próprios professores das respectivas redes de ensino, seja em qual nível estiverem. O que não dá mais é fingir que a escola atual, retrato de uma época distinta e antecessora, contempla qualidade a partir dos arranjos ególatras dos mestres e doutores universitários na formação de professores em todos os níveis. Até porque, na hora em que lutam por melhores condições de vida, os professores da educação básica não encontram o apoio devido em seus “mestres” e “doutores” da universidade. Estes, por sintoma explícito, gostam mais de serem chamados assim. Quando rejeitam o título de professor, estão, na verdade, inferiorizando seus próprios estudantes e acreditando que se constituem numa casta superior, o que revela a própria inferioridade.

Com o tempo, acredito que as intervenções que proponho para a formação docente também alcancem os docentes do ensino superior. Mas quem sou eu para propor mudanças do tipo? Nem a graduação eu encerrei. Talvez, por isso, nem deva ser ouvido ou lido e tudo que acabei de dizer deva ser desconsiderado por se tratar de mera bobagem leiga. Que pretensão! Por isso, concedam-me o retorno, meus mestres! Digam-me a qual nobre devo recorrer para o favor que suplico, qual o preço e qual o caminho. Se devo escrever ao papa, ao conde, ao duque ou ao rei. Que eu graciosamente mandarei os senhores àquele lugar maravilhoso que nem deveria ser considerado palavrão de tão útil e prazeroso. Seria o ato mais educado que poderia oferecer. Enquanto tenho de suplicá-los o título, sofrendo o quanto sofro das exclusões inerentes, há um prejuízo social colocado que se encontra em suas mãos e que, no auge de suas respectivas sabedorias, posso afirmar-lhes o quanto é libertador morrer com a consciência de quem são e o que pensam sem querer o mesmo.