Cresci aprendendo que os melhores resultados são aqueles que podem ser medidos em números. Horrível, claro! As estatísticas podem ser forjadas, as contas podem se fechar por cálculos difíceis de explicar e as metas, ah, divinas metas são aquelas que explicitam uma tendência numérica crescente. Crescente, progressiva, superada pela antecessora: adjetivos que são associados à evolução que representa o que se pretende defender. Na maior parte das vezes, sabemos que os resultados numéricos, desejados ou alcançados, são inócuos perante a realidade. Não importa. Vivemos uma limitação mental que reduz a existência das coisas à sua própria representação. O preço, por exemplo, é uma representação cruel de valor que sufoca a poesia da vida. Mesmo assim, insistem os capitalistas, são incontestáveis: os números, os preços do mercado e os critérios quantitativos para medir produtividade, eficiência, desempenho e a razão de ser de cada empreendimento humano. Eu chamo de incompetência o que eles chamam de eficiência.
Assisto com tristeza à privatização da saúde pública em meu estado. Sérgio Cabral (aquele governador com 1001 motivos para estar preso, se vivêssemos em uma democracia de verdade) e os deputados estaduais que se alinham às suas práticas criminosas genocidas aprovaram um projeto de entrega da saúde pública a gestores privados que receberão recursos públicos pelo NÚMERO de atendimentos efetuados. Isto quer dizer: é só forjar o atendimento e receber a verba. Onde está a qualidade, a eficiência, o melhor desempenho para a saúde pública, num projeto que só alimenta desvios? Para tal ganho, além dos recursos públicos que alimentarão as “organizações sociais” de políticos, parentes e empresários amigos, sem a necessidade de licitação para compras e contratações, arruma-se também a progressiva destruição do servidor concursado. Fala-se mal deste, que é inepto e corrupto, faltoso e baderneiro, mas nunca se fala em punir seus chefes políticos, responsáveis diretos por tudo que não funciona no serviço público. As cifras volumosas de desvios na saúde são efetuadas pelos agentes políticos, nomeados ou eleitos, que impregnam os cargos eletivos e/ou comissionados no serviço público e sugam tudo e mais um pouco. O estatutário, muitas vezes, é quem ensina a prática cotidiana dos atendimentos, dos procedimentos e das razões técnicas dos serviços que executam às demais espécies que vêm ocupando seu espaço sem contrapartida eficaz, mas sofre de todas as dificuldades de execução na ponta. Os salários não aumentam, os insumos não existem, os leitos são poucos perante o contingente populacional e tudo isso se deve a prioridades políticas ou a roubo mesmo. Os estatutários podem ser corruptos? Claro que podem, principalmente quando são coagidos por seus superiores políticos a fazê-lo. É o que mais acontece.
Ai de quem não concordar com os sábios rumos dados pelos chefes! Os novos contratados por estas ONGs ficarão sem os direitos trabalhistas habituais, aqueles que reservam um pouco de dignidade à espécie humana, no maior golpe estatal contra servidores públicos depois da Era FHC. Dirão os espertos gestores: “reduziremos custos!” Errado: tirarão do trabalhador que precisaríamos para um atendimento qualificado e concentrarão um monte de recursos nestes mesmos empresários sugadores, que nada mais são do que os próprios políticos ou os seus amigos.
Isto é reduzir custos ou é desviá-los para apropriação do público pelo particular que matará milhões a mais de doentes necessitados? A privatização é declaração do Estado de que vai roubar ainda mais da saúde para piorá-la, efetivando o projeto neoliberal de manutenção de uma pequena casta intocável rodeada de famintos e desesperados. Operação mais próxima de uma monarquia absolutista que de uma república decente. Os exemplos de malversação dos recursos públicos deveriam afastar estes governantes e não os permitir que avancem ainda mais sobre os mesmos recursos. Mas quem pode fiscalizá-los dentro do aparato estatal também está habilmente condicionado pela ideologia das metas quantitativas de desempenho.
O Ministério Público do Estado do RJ não pode fiscalizar direito o governador fascista. Tem que cumprir METAS DE DESEMPENHO impostas pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Estas metas, como defendem os competentes gestores da miséria humana, são quantitativas. Logo, associadas a um NÚMERO de processos encaminhados em TEMPO recorde. O que se descobriu desta competência toda? Promotores estão arquivando o maior número possível de processos que envolvam homicídios sem apuração. Assim, atingem a META QUANTITATIVA, que só enxerga eficiência numa representatividade numérica inócua (?), deixando os homicidas impunes. Recebem o mesmo ou um pouco melhor por isso, demonstrando celeridade e respeito com a coisa pública. Por este critério, o governador Cabral, por exemplo, continua livre, uma vez que cada um dos crimes que pratica não pode resultar em uma denúncia embasada do MP. Seria gastar muito tempo para investigar e julgar, o que emperraria a fila quantitativa. Tem que ser toda arquivada para gerar número de causas julgadas, o que equivale à eficiência e à produtividade da máquina.
Quanta insanidade! Quanta irresponsabilidade! Quanta maldade! No final, os bandidos – como é o caso do governador e de tantos outros – continuam soltos e o Estado Democrático de Direito não o é de fato. É o quê, então? Fascismo? Ditadura disfarçada? Pode ser. Então vale tudo.
Vejam o caso do Enem. O MEC resistia em liberar as notas das escolas para evitar rankings. Liberou este ano associando as notas à quantidade de alunos que fizeram a prova por escola, isto depois de fortes protestos das escolas particulares. Resultado: estamos melhores porque subimos de 502 para 511 pontos numa escala de 1000 (!?). Percebe-se cotidianamente que a situação da educação brasileira é sofrível e, neste caso, o número ridículo parece concordar. Não sei se uma prova nacional é capaz de avaliar realidades locais com a precisão que acalenta (até porque eu tenho a sensação de que ainda é pior) mas sei que até hoje não significou NADA em termos de melhoria para as escolas. É de uma produtividade inútil se o objetivo for a melhoria da qualidade, já que os números não estão associados a investimentos maiores no que precisamos.
Qualquer critério quantitativo que generalize a prática pedagógica é igualmente improdutivo: professores receberem gratificações por desempenho diferenciadas só perverte o professor a agradar mais o seu avaliador. E quem será o avaliador? O aluno? Como? Se cada turma reage de um jeito a uma mesma proposta pedagógica, a um mesmo conteúdo, a uma mesma avaliação, importando ao professor, a cada dificuldade, novos meios e tentativas de se fazer compreender? Sabemos que todos os professores merecem respeito e dignidade mínimos, o que não possuem com o que ganham ou da maneira como são tratados pelos governantes, pelos próprios colegas, pelos agentes políticos nomeados para a direção escolar, por alguns de seus alunos, pelas famílias e pela sociedade. Vamos cuidar disso primeiro? Não, temos que ter metas quantitativas. Pois então, o avaliador seria o diretor, que é nomeado pelo político? Então, o objetivo é coagir e restringir direitos, já que esta turma (a dos diretores impostos) não está interessada em qualidade. Está interessada em obedecer e/ou bajular seus chefes, aqueles que lhe deram a boquinha, o que não muda muito se compararmos às relações trabalhistas do setor privado. Onde está o avaliador da meta de desempenho? Aquele que não quer o desempenho? Aquele que tem que justificar exclusões para se perpetuar no pequeno poder passageiro em que se apega tanto?
No começo do Enade (provão do ensino superior), lembro como se fosse hoje: Paulo Renato era Ministro da Educação de FHC e prometia utilizar a prova como parâmetro para financiar as instituições públicas que estivessem precárias, além de fechar as privadas na mesma condição. Passados tantos anos, raríssimo ver instituição privada fechada por baixa qualidade; pelo contrário, muitas são subsidiadas. Quanto às públicas, o resultado nas provas não significou mais ou menos investimentos. Tudo o que se vê de investimento recente em infraestrutura está ligado ao aumento quantitativo de vagas e de cursos. A universidade expande vagas para estudantes mas não o faz na mesma proporção com que contrata professores e servidores técnico-administrativos. Resultado: turmas lotadas, excesso de contratos temporários e/ou de utilização da mão-de-obra barata dos próprios bolsistas de mestrado ou doutorado nas graduações. Os critérios quantitativos estão em direção diametralmente oposta a dos critérios qualitativos mínimos, levando também este serviço público para a ineficiência que justificará sua privatização. Que não resulta em melhor qualidade também e ainda exclui aluno por falta de dinheiro. Uma bosta completa!
Temos de parar de tentar implementar no serviço público o que é motivo de insatisfação, incompetência e mal-estar na iniciativa privada. Sabemos nós que, de fato, toda essa ladainha por eficiência e produtividade é farsa, pois que não há possibilidade de maior eficiência e de maior produtividade por parte do trabalhador se ele ganha menos, é mais ameaçado de desemprego, vê seus direitos cada vez mais diminuídos, é forçado a um ambiente hostil de competição destrutiva, perde tempo livre para trabalhar mais e mais. O que mais rola como consequência direta é roubo do patrão por empregados, vingança, praga, queda vertiginosa da qualidade dos produtos oferecidos ao cliente, mais ações judiciais e gente puta da vida com a empresa, o órgão, seus chefes e funcionários. Todo mundo em conflito com todo mundo. Desespero e depressão. Violência.
Eu chamo de sinais do modo de produção capitalista chinês contemporâneo, que é comandado por uma ditadura que se diz comunista, em que os agentes políticos do Estado financiam e controlam empresas com o dinheiro de todo mundo, escravizam seus trabalhadores e produzem produtos vagabundos para competir em preço com o resto do mundo. Resultado: domínio de mercados, desastre ambiental com o descarte de resíduos descartáveis, demissão em massa de trabalhadores nos países onde tomam a concorrência da indústria local sem vantagens. Trabalhadores subempregados ou em condições análogas à escravidão como discurso de competência competitiva! Huuummm... que atraso, humanidade! É assim que a China vai dominar o mundo e nós alternarmos de metrópole? Esta é a grande novidade? Na verdade, “um museu de grandes novidades”, como dizia Cazuza.
Chegamos ao cúmulo de propagarmos uma cultura da malandragem em todos os graus e níveis de individualismo possíveis, o que é profundamente nocivo a todos. Patrões que procuram ser corretos com os direitos trabalhistas não encontram profissionais minimamente comprometidos no mercado. Profissionais comprometidos não encontram a oportunidade de emprego que merecem, pois este é restrito aos conchavos entre parentes e amigos dos patrões, não necessariamente competentes para a função. Todo o resto é número para inglês ver.
O mais certinho dos trabalhadores já percebeu que tomará voltas significativas na hora de receber. O mesmo acontece com os patrões, na hora de contratar ou de manter alguém no emprego. A relação capital X trabalho funciona assim hoje em dia: por precaução, evitam-se ao máximo a sinceridade e a honestidade para não alcançarmos dificuldades pessoais maiores. Isto vira um inferno se pensarmos que tal postura, muitas vezes, não tem razão de ser naquela relação restrita entre aqueles indivíduos da oportunidade exemplificada (patrão que paga corretamente e respeita os direitos trabalhistas X trabalhador comprometido e qualificado), mas quando se habita na ameaça constante, que é esta instabilidade econômica proposital, cria-se o medo como amante de qualquer indivíduo normal. Há uma sucessão de casos que influenciam a mentalidade coletiva, alimentando o pavor da insolvência, do fracasso, da violência, da perda, que resulta em injustiças e desequilíbrios inacreditáveis.
Os critérios quantitativos (moda e pensamento único ditados pelos números desviantes do foco), presentes em toda configuração social dos nossos tempos, não oferecem respostas qualitativas para o que precisamos evoluir, seja no serviço público, seja em qualquer área. Erram profundamente todos os gestores, políticos e trabalhadores que acreditam neste engodo matemático e ainda competem entre si por ele. A mídia faz ostensiva defesa destes critérios, assim como as faculdades e MBAs da vida que cuidam do controle corporativo contemporâneo.
Estas metas de desempenho, de produtividade e de eficiência (chinesas!) que amarram os indivíduos a uma compreensão mecânica, frágil, constrangedora e contraditória, poderiam ser extirpadas de nossas proposições políticas. Não resultam em nada a mais que não seja mais acúmulo material para poucos, mais guerra entre todos e mais doenças no mundo. É isso que queremos? Então estamos no rumo certo. Mas se o que pretendemos é qualidade de verdade, aquela que supere a condição de miséria espiritual em que nos encontramos, não podemos nos limitar no investimento material, no tempo ou nos benefícios que assegurem dignidade aos seres humanos. A inversão de valor que pressupõe a poesia ao seu preço é inegociável àquele que defende uma transformação cultural alternativa à mentalidade reducionista do capitalista.
Lembrei de tratar deste assunto porque estou retornando à UFF após longos meses de definição sobre o meu direito de retornar e garantir a conclusão da minha graduação. No último artigo, invoquei a necessidade de discutirmos formação superior espiralada como alternativa à formação linear tradicional dos cursos de graduação. Enquanto os capitalistas defendem que temos de formar mais pessoas em menos tempo, eu defendo exatamente o contrário: temos de continuar formando (o que não se esgota nas titulações da legislação educacional, mas continua e se aperfeiçoa com a práxis social) permanentemente, até a morte ou a desistência do indivíduo, aquele que quiser continuar seus estudos livremente, sua relação de convívio com o saber científico e com o saber popular. Nossas instituições têm de ser preparadas para receber conhecimentos diversos e aproveitá-los como legítimos ao invés de rechaçá-los ou discriminá-los.
A quem ou ao quê interessa um número fantástico de diplomados em tempo recorde? O que importa é saber e não decorar, foi o que ouvi desde pequeno dos meus pais e dos professores. A pressa é inimiga da perfeição, foi o que ouvi enquanto sabedoria popular. Incrivelmente não é o que o mercado entende como qualidade para servi-lo. Prega a necessidade de formação apenas como desculpa para exclusão e as pessoas em geral correm atrás, como espermatozóides afoitos, para a inclusão de poucos privilegiados ao acesso dos benefícios. Esta é a nossa miserável fecundação social... Ter um diploma o mais rápido possível tornou-se critério maior que obter o antigo e respeitável documento por, de fato, este atestar um saber aprofundado ainda que especializado. E pensar que a perda anterior, dentro do processo de degradação, fora a especialização do conhecimento em função da divisão social do trabalho! Sendo assim, o que vemos é gente pagando por diplomas a prestação, o que equivale a cursar com rapidez e de qualquer jeito, sem leituras ou experimentações variadas e profundas, para alcançar a profissão que deseja exercer. Sabemos nós que as consequências são previsíveis: advogado que não sabe escrever, médico que não sabe medicar, professor que não sabe ensinar, profissionais que fazem de tudo por dinheiro, titulados que se impõem como intermediários entre contratantes de serviços e verdadeiros profissionais, etc., etc., etc.
O modelo de formação espiralada que defendo parte da minha opção de vida por ser professor antes de me formar e, agora, de me formar para continuar sendo. Tudo porque tento conciliar o que idealizo com o mundo real, o que nem sempre dá certo mas que sempre me revelou ser o caminho mais correto e compatível com minha saúde física, psíquica e espiritual. Enquanto professor, permaneço aluno. Há muito o que aprender para além dos títulos e acho que, só agora, compreendo o que mestres da educação tão citados na academia, como Paulo Freire, queriam dizer.
É hora de rebaixar a legitimidade dos números inócuos, aqueles que não refletem melhorias significativas na qualidade dos serviços, dos produtos e das vidas humanas. Vamos nos enganar eternamente, vendendo e comprando gato por lebre como se fosse exemplo de competência e eficiência? Expor o trabalhador a muitas horas de trabalho forçado, diminuir direitos e renda, trará melhoria para alguém que não para a satisfação momentânea do egoísmo de poucos? Momentânea sim, porque facilmente dissolvida pelas consequências. Violência, insônia, depressão, mal-estar, doenças de todo tipo (destaque para o câncer)...
Houve um tempo em que todas as ciências se curvavam à Biologia tentando justificar comportamentos e tendências sociais. Deu no que deu: nazi-fascismo. Estamos num outro momento sem perder de vista aquele: curvamo-nos agora também a uma Matemática Suprema, cuja racionalidade lógica das estatísticas e das porcentagens parece pairar sobre os interesses políticos e a realidade social, determinando-os. Não seria o contrário o mais racional? Interesses políticos e realidade social determinam a necessidade lógica dos cálculos para solucionar seus problemas. Ou eu estou ficando maluco? Como a própria Matemática é formada de representações com princípios acordados entre as partes que as calculam, parece que o grande problema não é matemático, mas de discernimento: não há fórmula aplicada a um caso concreto que não reivindique os interesses que a conduzem. Estes interesses são objeto das ciências sociais, a incômoda e mal paga área que não refuta como óbvio o que não é. Ou que, pelo menos, não deveria refutar, né?
Isso que dá naturalizar o que é criação cultural humana! Enquanto os liberais chamam de “idealistas” os seus opositores, volto pra eles o próprio idealismo de suas proposições. A diferença que nos nutre é que, no nosso caso, os ideais que empreendemos não são conduzidos pela perversidade da mesquinharia. Logo, se não for pra melhorar pra todos, não serve a ninguém. Desconfiamos de números chineses. Temos motivo pra isso: todo dia, utilizamos serviços públicos concedidos à iniciativa privada. Não melhoraram nada, talvez apenas a maquiagem, a forma de fazer. Roubo por roubo, prefiro os mais baratos: os que valorizam direitos como caminho mais lógico para a eficiência do trabalhador, os que são movidos pelo bem-estar social e os que resgatam a passionalidade latina no meio da frieza racionalista saxônica.
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