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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 23 de abril de 2011

500 anos de Poliesculhambose - a nossa versão sobre os 500 anos de Brasil

Em janeiro, rolou a primeira. Em abril de 2000, a segunda. Ambas as Semanas Culturais "500 Anos de Poliesculhambose - a nossa versão sobre os 500 anos de Brasil" foram organizadas por um coletivo de estudantes de História, Ciências Sociais e Psicologia da UFF. Aconteceram no espaço do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da mesma universidade. Seu pontapé inicial: a preocupação que tínhamos com uma crescente e absurda propaganda global (com o apoio oficial do governo FHC) que exaltava, através do antigo calendário da historiografia oficial, supostas glórias brasileiras de um evento forjado pelos colonizadores portugueses para a nossa exploração. 


O "descobrimento" do Brasil, assim louvado em livros didáticos de História que formaram gerações, fora interpretado até meados dos anos 80 como um evento digno de constar em nosso calendário oficial de comemorações cívicas. A data de 22 de abril de 1500, suposto momento histórico inusitado, cercado de controvérsias, da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro, na Bahia, por obra e acaso de correntes marítimas desconhecidas no Oceano Atlântico que desviaram o comandante e suas caravelas do destino inicial (o caminho das Índias pelo contorno do continente africano), já não era fato tão mais "inusitado" assim pois a comunidade dos historiadores brasileiros, mediante documentos históricos contundentes, havia se dado por um consenso contrário desde os anos 80 do século XX. 


Não obstante as provas e os relatos de inspeções espanholas e portuguesas anteriores à data de 22 de abril de 1500 pelo que seria, mais tarde, o território brasileiro, os estudantes da UFF do ano 2000 não viam motivos para se celebrar com requintes ufanistas uma data que mais confundia interesses da nossa antiga metrópole em nos colonizar, dominar e extorquir riquezas e trabalho humano, que propriamente motivação para inflamar um sentimento de patriotismo. Mesmo assim, percebiam os estudantes que era preciso uma resposta à altura, algo que marcasse profundamente o descontentamento de quem estuda a História e as relações humanas na sociedade brasileira com o trato que a Rede Globo e o Governo Federal ofereciam ao tema. 


Afinal de contas, como aguentar relógios enormes fincados nas praias e centros de grande densidade populacional do país com estética de mau gosto e propósito tão subalterno? Eles portavam cronômetros regressivos que calculavam, dia por dia, quanto faltava até que se chegasse o fatídico 22 de abril de 2000. Segundo o espírito da comemoração cívica evocado, alcançaríamos um marco civilizatório por conta do aniversário redondo de "500 anos de Brasil". 


Como assim!!? - reagíamos. Como comemorar uma data que não corresponde ao aniversário do país (somente compreendido desta maneira, como Estado independente perante o mundo, a partir de 07 de setembro de 1822), que não foi verídica o quanto propagaram (visto que não foi inusitada, imprevista, por acaso: navegações anteriores registraram a existência do território que Cabral só veio mais tarde a reafirmar posse, a assumi-la, mediante traçado do Tratado de Tordesilhas, ao mundo) e cujo efeito não foi tão louvável assim aos povos nativos (os indígenas escravizados, dizimados, aculturados) e aos povos forçados à migração (como os africanos escravizados). Humanitariamente falando, não foi louvável nem mesmo para Portugal.


Se pudéssemos comemorar algo relativo à data, delimitaríamos o produto da miscigenação brasileira, com a grande mistura de culturas que constituíram nossa sociedade. Mesmo assim, em 2000, ainda entendíamos que estávamos muito desiguais nas oportunidades, muito subalternos às novas metrópoles que surgiram no tempo e com desafios a superar que exigiam de nós um olhar menos elitista e mais popular acerca de diversos aspectos. 


Foi assim que produzimos a Poliesculhambose. O formato foi inspirado em iniciativas estudantis anteriores do próprio ICHF-UFF, como a Semana Gaia no Campus, realizada nos anos 90. Amigos veteranos de viés libertário sempre relatavam iniciativas de forte impacto cultural, muito envolvimento artístico e objetivo revolucionário anti-capitalista. Sabe-se que os libertários costumam ser criativos, ousados, culturalmente engajados e um tanto o quanto imprevisíveis. O movimento estudantil da UFF nesta época (anos 90 e início dos anos 2000) era fortemente influenciado por esta tendência. Na verdade, tendência esta que construiria influência nas concepções ideológicas de muita gente boa do PT e do PSOL de hoje. Mas este é assunto para muitos outros artigos.


O termo "Poliesculhambose" não foi copiado de lugar nenhum. Nossa ideia nasceu de juntar à palavra "ESCULHAMBAÇÃO", ou seja, o sentido histórico da construção civilizatória do Brasil, o prefixo "POLI", atribuído à pluralidade, e o sufixo "OSE", uma referência científica da Química sempre presente em termos como "osmose", "fimose", "necrose" etc. Concebi o conceito "500 anos de Poliesculhambose" deitado no gramado do campus, exatamente ao lado do bloco N, após uma boa contemplação do pôr-do-sol em nossa orla. 


Na semana cultural, preservamos a variedade da programação. Da Fé Ba´hai com dinâmicas motivadoras até artistas populares que nunca tinham entrado na universidade. A partir do mote da nossa versão para os 500 anos de Brasil, de tudo um pouco foi trabalhado. A organização do evento decidiu acampar no local de produção e o que era para ser uma semana cultural em janeiro de 2000 acabou levando duas semanas de cada mês (a primeira versão em janeiro; a segunda, em abril). 


Uma das características libertárias mais marcantes chegou a ser aceita pela burocracia da UFF. Em cada documento oficial que solicitava autorização de espaços físicos e equipamentos, assinávamos "Coletivo de Estudantes de História, Ciências Sociais e Psicologia da UFF". Sem um "cabeça" para dar a cara a tapa, uma liderança que assumisse sozinha diversos riscos ao patrimônio público, nada era autorizado. 


No nosso caso, foi. Simplesmente passou. Ninguém pagou propina por isso.


Num dos episódios mais marcantes, quando grafiteiros expuseram suas interpretações sobre o tema nas pilastras do bloco O e o ICHF amanheceu grafitado com alcunhas anti-capitalistas, uma autoridade universitária me procurou para tirar satisfações: "foi danificado o cabo de telefonia da caixa grafitada no térreo. Quem vai pagar?" Eu lhe disse: "olha, a caixa não devia estar sem porta. Já estava sem porta há muito tempo. Essas coisas é que danificam o patrimônio da universidade, a arte não!"


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