Quem sou eu

Minha foto
Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 18 de setembro de 2011

O Anjo da Orla


A gente se olhava e tinha a sensação que nunca ficaria junto. Mas a gente se quis desde aquele momento. Carinha de safado. Vi Cazuza em você e você viu em mim, foi instantâneo. Nunca passamos desapercebidos desde então. Seu primeiro comentário, em meio ao discurso que eu fazia para um grupo de amigos em comum: “contador de histórias... sei... rsrs!” Eu falava sério de uma trajetória de vida incomum. Aquele seu jeitinho de quem ri debochado das maiores seriedades alheias sempre me irritou nos outros. Em você, não. Após diversos encontros dispersos no tempo, nunca no espaço, ficamos. Beijei você como poucos na vida. Naquele instante, encontrei quem precisava encontrar. Você é o próprio amor livre, eu a liberdade de amar o desconhecido. Tenho certeza que nos encontraremos de novo, mesmo que não tenhamos a menor obrigação. Sem celulares, sem facebooks, sem mais nada que iluda o real no virtual. Só a própria intuição. Se sonho, você aparece. Seu cheiro em meu nariz, sua presença logo em seguida. Pensamentos fixos, uma música em comum e o seu beijo. Assim como se sentia potencialmente a esperança fugaz de antigamente, de onde, na menor das possibilidades, mudávamos o rumo de uma coletividade inteira.

Apresentei-me como seu anjo de início. Tentado às fantasias mundanas, sou também espírito de luz de verdade. Não domino o que me impulsiona, apenas conheço um pouco mais a cada dia. Você não parecia compreender ou não queria. Não acredita no sobrenatural mas, de alguma forma, já o reconhece. Enquanto a ciência o distancia, as experiências de vida trabalham para que conheça o imortal entre nós. Por isso, insisti na história do anjo. De fato, sou o seu anjo. Um anjo hedonista? Não chego a tanto porque considero o hedonismo uma prática de sensações superficiais. Nosso caso envolve o além. Trepamos discutindo isso naquele dia. Sinceramente, não vejo Jesus imune a sexo desse jeito. Até então, só admitíamos o cupido que junta pessoas mas não participa da sacanagem. O anjo que participa parece novo. Mas não é. Chico Xavier haveria de libertar a humanidade da paranoia do pecado cinquenta anos antes. Revelou, ainda nos anos 60, que “não tem razão para a humanidade temer o sexo consentido e desejado como pecado. Sexo é troca vital de energias poderosas entre os espíritos.” É muito mais que um gozo material quando assim é praticado, sentido, curtido e reverenciado. E não precisa ser voltado exclusivamente à procriação ou à eternidade exclusiva de dois seres, o que nos legitima. Quando reprimido, traz consequências indesejáveis e imprevisíveis. Disso, tratam os psicólogos. 

Assim como as mulheres mais velhas (as quais não posso retribuir mais que um afeto), psicólogo é outra sina minha... psicólogo e artista. Observa o mundo e o retrata em busca da liberdade suprema que não encontra em si. São os maiores projetores da espécie humana, depois dos professores que se entregam à causa de corpo, alma e sem dinheiro. Não se curam nem param de projetar por decreto nenhum.  

Naquela praia à noite, ficamos nus. Desejávamos sentir cada cheiro de cada corpo. Seu beijo é bom demais. O perigo de fazer em público, excitante. Confesso que ando curtindo mais entre quatro paredes pelo tempo que nos é ofertado sem maiores retaliações. Em público, hoje, parece-me um bom começo. Às vezes, impossível de ser contido porque nem devem ser contidas. Não acredito que tenhamos sido filmados naquele dia (outra paranoia de nosso tempo!) porque sinto que, simplesmente, desaparecemos aos olhos dos normais. Pelo menos, boa parte do tempo. A melhor parte.

O seu anjo queria te levar para outro lugar. Mas não consegue. A limitação existencial só nos acessa naquele ambiente. Já lhe reconheci em outros mas não daquela forma peculiar que tanto me agrada. Foi o que lhe disse a respeito de me encontrar em outro ambiente que não aquele ali: poderia até ser eu, mas eu em outro. Cheguei a comentar a respeito enquanto sentia o maravilhoso sabor de seu peito. É, o seu peito, a superfície do coração.  Só na superfície, imagine, e... você queria saber onde poderia me encontrar além daquele dia! Para figuras como você, querer continuar é uma diferença. Eu já continuei, já experimentei a sensação de estar casado, de ser fiel e de amar exclusivamente alguém de verdade por três anos. Namorei por tempos mais curtos. Foi o meu limite. Você ainda não experimentou isso, duvido, é “rueiro” como se definiu. Nem tem cara de ser capaz de amar alguém mais que todos os outros. Poderia ser mais uma lábia perigosa... Mas falou sinceramente comigo, outro traço difícil de se encontrar por aí, e “mentiras sinceras me interessam”! Sempre que me encontrou, tirando o tom debochado, meu espelho, tratou-me muito bem. Dei valor. As pessoas se criticam com facilidade, evitam “no seu rosto lindo, o lado bom” dos seres. Dá-lhe Cazuza!

Afirmei-lhe que poderia me encontrar em qualquer lugar mas não na mesma forma humana. Os anjos são assim, mais fáceis de serem encontrados no pôr-do-sol das praias. Depois, eles ficam por perto, espreitam. Não se dão ao luxo de serem vistos entre os mortais com facilidade. Você riu. Disse que também quer algo além do que sempre viveu com alguém. Que está na hora de sentir mais, é urgente deixar-se sentir. E que, por isso, não trocaríamos telefones ou e-mails. Você chamou o celular de rato eletrônico e eu complementei: “rato eletrônico cancerígeno”. Concordamos. Conheço do ritmo frenético de encontros e desencontros que não passam dos diálogos de dez segundos, cujas raízes estão na cultura criada pela exploração do homem pelo homem através do manuseio intensivo das novas tecnologias. É o domínio do homem pelo homem que os torna máquinas, ou refém de máquinas, e não o contrário. Sob um clique súbito no teclado de computador, um torpedo ou uma conversa distanciada e rápida, não se sabe nada além do superficial. Longe dos olhos nos olhos, apenas temos uma breve noção de quem são e sobre o que afeta de verdade as pessoas. Ficamos loucos atrás daquilo que perdemos rotineiramente. Ansiedade, angústia, pressas que resultam em outros problemas. 

O cheiro, o sabor e a dormência súbita dos corpos em profusão me excitam. Não te esqueço. Ao final da noite, você me perguntou: “mas você não quer mesmo saber o meu nome?” Eu disse: “chamando-se como quiser, para mim, seria indiferente. Você já é inesquecível”. Seus olhos brilharam. Você então falou o seu nome, um nome composto de dois personagens cristãos: um bíblico e outro santo católico. Os sinais são esses. Não preciso ser religioso para senti-los e conhecê-los, uma verdadeira emancipação do meu espírito! Há sinais que deixamos passar porque desconhecemos a fundo o que representam. Tratamos como simples coincidências o que muitas vezes nós próprios alimentamos de fé ou pela força do verbo. O anjo metafórico, de início, conectou-se ao fim em seu nome de verdade. O segredo da revelação consiste em concatenar argumentos e indícios aparentemente soltos por aí, mas que são entrelaçados por nexos invisíveis. É claro: tudo sem paranoia! O indivíduo paranoico transforma deduções inconcebíveis em lógicas estapafúrdias. Comete, em nome destas deduções, erros e abusos graves. Eu prefiro escrever meus sentimentos porque, através deste ato, forço-me à autocrítica necessária ao discernimento. Sigo constatando, provocando, experimentando realidades e, se necessário, corrigindo-as. Torno-me feliz assim.

 As melhores crônicas são aquelas que se frutificam de um simples estar e sentir no mundo, resultando em espelhos ao leitor. Não invento nada do que escrevo, quando muito o cerco de encantamentos. Os anjos que visitam o pôr-do-sol das praias são reais, mas nem por isso qualquer um acredita neles. Advogando a supremacia do materialismo histórico, o homem desejou a sua emancipação da própria natureza. O coração tornou-se uma bússola temida. Se aproveitarmos bem – e sem fanatismos - o que conquistamos das tendências emancipatórias materialistas, voltar-nos-emos à natureza dos sentimentos, alcançando as chaves que nos acessam o portal das felicidades adiadas. Os anjos nada mais são que espíritos de altíssima luz que nos visitam, nos espreitam e nos apoiam. Casam-se com os santos e aí figura a alegoria da presente passagem: santos só existem dessa forma se morrerem. Em vida, por mais corretos que sejam, nunca são reconhecidos assim. Há toda uma noção de pecado construída que glorifica aquele que, na verdade, é temido e se quer longe, como alguém superior e incomum. Aqui, por uma boa causa, caso os anjos e os santos na orla do Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense. A literatura me permite o que a História, enquanto ciência, sempre me ofuscou.

Através dos homens e de todo o projeto material concebido pelos homens para a transformação daquele ambiente – a orla de um campus universitário que é ameaçada de virar rua de trânsito livre para veículos automotores – observamos o impacto indescritível da influência espiritual desejada pelos vivos na preservação daquele espaço. 

Incrível mas é o que está inserido na luta vitoriosa dos estudantes da UFF em ocupação da reitoria recente, a qual me identifiquei de cara, muitas vezes criticada por elencar como bandeira a manutenção da integridade dos campi e da propriedade de pessoas que moram no entorno. Uma vez que a Prefeitura de Niterói resolveu construir vias de trânsito livre que cortam os campi para favorecer especulação imobiliária próxima, outros aspectos salutares que envolvem a relação da universidade com a comunidade foram menosprezados. Como o mundo das ciências ignora ou menospreza argumentos sensoriais e espirituais que participam das ações humanas – e nesta assertiva, excluo a Física - eis que aqui estou tentando dar conta desta outra parte da história.  

Os motores da civilização perturbam anjos e espíritos desencarnados, de maneira que, nos centros espíritas, é terminantemente proibido o uso de tecnologias que se utilizam das ondas eletromagnéticas, como o celular ligado, por exemplo. Muito ainda há que fazer, mesmo entre a ciência materialista domesticada pelo dinheiro dos poderosos, no sentido de compreendermos os impactos físico, psicológico e cultural de nossa superexposição cotidiana a essas máquinas viciantes. No ambiente do Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense, como em outros campi espalhados Brasil e mundo afora, a proximidade com espetáculos da natureza em meio ao sacrifício urbano que a todos assola, favorece a reflexão, a paz interior para reflexão e o aprendizado. Trata-se de uma tradição europeia positiva, onde o ambiente universitário sempre foi equilibrado com paisagens naturais que trouxessem certa paz de espírito, na verdade retroalimentação energética para o saber. Se levarmos em conta que as universidades europeias históricas foram sedimentadas sobre bases católicas, ambientes de meditação e reflexão do clero regular, isso não é pouco, não é bobagem. Tem uma razão de ser. Nossa tradição assimilou este aspecto positivo como também assimilou outros negativos, exaustivamente trabalhados em outros artigos ou crônicas. 

Se as obras em curso para expansão da Universidade Federal Fluminense já perturbam o ambiente de estudos, o que dizer do trânsito livre de veículos automotores no lugar da orla do campus, por exemplo, onde muitos estudantes leem, conversam e debatem ao deleite de um pôr-do-sol magnífico sobre a Baía de Guanabara a poucos metros da região central da cidade? Se as obras de expansão são necessárias para suprir uma demanda histórica de vagas pela sociedade, o mesmo não se revela necessário pela intervenção de duas ruas de acesso que cortam a universidade para terminarem logo ali, sem maior impacto no trânsito caótico de Niterói. A cidade precisa mais de transportes menos poluentes, que ocasionem maior impacto no tráfego através da capacidade individual e/ou coletiva de locomoção, como ciclovias e metrô, que de outros paliativos para o caos rodoviário. É uma luta ambientalista também que se confronta com o ideário desenvolvimentista tradicional. Ainda que a nível local, onde, de fato, devemos implementar as revoluções que acreditamos.         

As grandes lutas são levadas a grandes vitórias menos pelo exercício ácido das críticas destrutivas e mais pela dedicação existencial dos seus partícipes em acrescentar algo relevante dialeticamente. É preciso combinar fluidos, arranjar-se pelo que nos une e parar de sobrepor nossas diferenças menores, uma prática que mais se assemelha ao projeto capitalista de individualismo e opressão, ou às ditaduras em geral, inclusive as socialistas, que relegaram na história os benefícios da condição humana a um grupo seleto de privilegiados. A contribuição de cada um, seja dos partidos políticos de esquerda envolvidos, seja dos anarquistas, seja dos social-democratas, seja dos malucos, seja dos anjos e até dos cachorros do campus, resulta em mudança efetiva e positiva para todos. O resto é disputa de domínio entre grupos ou indivíduos.  

         No dia em que trepei bonito na orla, enquanto anjo, com um ser iluminado, misto de personagem bíblico e santo católico, era um dia de comemoração dos estudantes pela vitória que foi a assinatura de um termo de compromisso pelo reitor. Com ele, a ocupação da reitoria foi encerrada com êxito. No termo de compromisso, veio a suspensão das obras viárias (sobretudo da Via Orla) e a previsão de realização de um plebiscito na comunidade acadêmica a respeito. Selamos no astral nossa postura – a minha e a do amigo fortemente inspirado – contra o projeto. E ai de quem vier com argumentos mesquinhos, como a defesa de que estamos querendo libertinagens e drogadições no ambiente universitário. Para tanto, há diversos espaços e os donos das chaves conhecem muito bem as repartições públicas ou privadas em que exercem seus poderes republicanos. Queremos a orla preservada para exercermos nossas mediunidades em comunhão, o que pressupõe leituras e experimentações variadas em contato direto com a mesma natureza que inspirou tanto os gregos no ócio. Falamos das heranças do conhecimento grego, assim como de tantos outros grandes autores no mundo, que tiveram tempo livre para pensar, criar e transformar. 
 
      Diferente da pressa e da política de resultados quantitativos inócuos, que impõem a disputa irracional e a alienação de diversos saberes, queremos, sem dúvida alguma, razões significativas para o avanço da qualidade de ensino em nosso país. Entre elas, certa dose de existencialismo nos cai muito bem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário