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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 5 de novembro de 2011

Concursos Públicos na Era do Capitalismo Financeiro

                   Estou acumulando uma experiência em concursos públicos e acredito que posso compartilhar com os leitores sensações e impressões valiosas. Desde a decisão de estudar e concorrer, passando pela seleção criteriosa de quais concursos participar, os métodos das provas em si, a classificação, a posse e a experiência em um concurso público municipal, até o que observo de experiências correlatas e alheias, das políticas e politicagens envolvidas, da obstinação em se tornar servidor público de parte considerável de nosso povo enquanto a iniciativa privada expulsa e elimina grandes quadros como descartáveis. Tudo que experimento reforça o que pressinto, sinalizando êxitos e fracassos meus, individuais, e nossos, enquanto sociedade. Convido a uma reflexão como poucos ousaram estabelecer.

            Assusta-me a quantidade de gente que procura, cada vez mais, os concursos públicos nos grandes centros urbanos do país. Trata-se de reflexo da incapacidade da iniciativa privada de absorver um contingente humano que julga necessário descartar como lixo. Desde que vislumbrou a capacidade inventiva do capital virtual e fez deste uma referência de acúmulo mundial que não necessita da produção pelo trabalho, nossos "experts" do mercado financeiro instituíram a falência múltipla dos órgãos do próprio sistema capitalista tradicional.

          De que adianta produzir, empregar, ter um todo trabalho para vender e para pagar impostos, se é possível faturar muito mais na jogatina de ações privadas e títulos públicos, empréstimos a juros extorsivos, refinanciamentos e endividamentos eternos? Identificaram custo desnecessário em produzir. Logo, o que resta à maioria da humanidade é a disputa acirrada pelas migalhas que sobraram do setor produtivo. Temos migalhas nas bolsas-esmolas oficiais, temos migalhas dentre empregos temporários (uns que pagam, outros que não pagam, deixando o trabalhador numa incerteza inquietante quanto ao dia de amanhã), temos migalhas que são de setores marginalizados (prostituição não declarada, tráfico de drogas, contrabando, venda de muambas, de sentenças, de sistemas de proteção e favorecimentos instituídos por corruptos, etc.). 

             O que não temos mais é a certeza de que estudar gera um trabalho digno, que ser digno no trabalho gerará a retribuição de outrora, que produzir e ter uma empresa, por menor que seja, durará mais que um ano. Pouquíssimos faturam muito, mas muito mais do que faturaram os ancestrais ricos. Da classe média, o Estado extrai os recursos para a demagogia que promove entre os pobres e os donos do mundo em proporções desiguais. Quando falamos em combate à corrupção e aos desvios de recursos públicos, esquecemos que o maior desvio não está no agente público, servidor comum ou político eleito, e sim na grande contribuição que sustenta os poucos donos do mundo. Sugam quase 50% de tudo o que o Estado Brasileiro arrecada em impostos, sobrando dos outros 50% tudo o que o Estado gasta para manter serviços, pagar pessoal e roubar entre políticos.

             Protestos ecoam em todo o mundo em função de quem, já percebendo a disparidade, não aceita mais o jogo desfavorável ao ponto em que chegou. Assistimos a uma Grécia afundada em dívidas, reduzindo salários e demitindo 30% do funcionalismo público, ou seja, cortando e destruindo a própria economia, para manter em dia o pagamento de juros extorsivos a banqueiros e organismos multilaterais. Quando o primeiro-ministro ameaçou fazer um referendo para que o seu povo dissesse se aceita ou não o acordo com a União Europeia, os donos do mundo chiaram, fizeram pirraça, derrubaram bolsas, ameaçaram falir países em cascata. Cada vez mais gananciosos, dispostos a tudo por um dinheiro incalculável que jamais curtirão em vida (porque não terão vida para gastar tanto, ainda que de forma perdulária e consumista), submetem o resto do povo, lá quanto cá, aos seus comandos autoritários de extorsão e roubo institucionalizado. 

           Assim, diversas pessoas no Brasil, cientes de que o desenvolvimentismo nacional propalado na mídia é uma falácia porque não distribui riqueza ou, pelo menos, não sustenta a maior parte das profissões existentes e necessárias a qualquer sociedade, inflam a concorrência por vagas no serviço público. Há, de fato, uma máquina que ganha fortunas sobre esta tendência. Um grupo seleto de cursinhos preparatórios, jornais direcionados, empresas e fundações organizadoras dos processos seletivos, gráficas, escolas e universidades que cedem suas dependências para a realização das provas, servidores que recebem gratificações por participarem de comissões internas organizadoras dos certames, e, na ponta, ganhando muito menos, trabalhadores temporários contratados para corrigir provas, aplicá-las, transportá-las, etc. Mas esta máquina pode ser eficiente e colaborativa, como pode ser perniciosa e frustrante.

             Com a péssima formação acelerada de nosso ensino superior - cada vez mais moldado pelo princípio estadunidense da pressa, da quantidade de títulos para inglês ver, da redução drástica de disciplinas e conteúdos a serem estudados -, estamos assistindo a uma procura inacreditável de formados em nível superior disputando vagas de nível médio. Isto se deve também, é lógico, pelas razões de mercado que reduziram vagas na iniciativa privada. Gradativamente, como forma de excluir o grande contingente que procura por sua dignidade mínima (não chamo mais de privilégio, embora saiba que ser servidor público acabou se tornando; chamo de dignidade mínima em função das barbaridades que vejo praticarem os gestores da patifaria demagógica nas empresas particulares), o Estado Brasileiro vem ampliando a oferta de concursos públicos de nível superior específico, a saber: Direito, Administração, Comunicação Social, Ciências Contábeis, Engenharias, Economia, e, na rabeira, Arquivologia, Biblioteconomia e Tecnólogos específicos (cursos tecnológicos de 2 anos). Estas preferências revelam uma tendência ideológica de quem vem gerindo as políticas de Estado. 

           Ao reduzirem as antigas vagas de nível médio, passaram a exigir dos candidatos deste segmento conhecimentos que se direcionam pelo interesse das áreas de nível superior descritas acima. Não é raro observar a exigência de legislações específicas para cargos de nível médio. Sabemos nós que o Direito não é ensinado nas escolas brasileiras deste segmento, muito menos a Informática, tal como é exigida, tem respaldo na Formação Geral (modalidade de Ensino Médio generalista) ou mesmo na funcionalidade a qual o servidor irá atuar caso seja classificado e empossado. O que dizer, então, de provas com os seguintes conteúdos: Técnicas Comerciais, Conhecimentos Bancários, Noções de Contabilidade, dentre outras? Aquilo que exclui o sujeito de nível médio, na verdade, visa favorecer profissionais de nível superior nestas áreas. E o que é pior: não se trata de menosprezar conteúdos que podem ser, de uma maneira ou de outra, úteis ao servidor em questão (o que acho raro em diversos casos) mas se trata de criticar o crescimento forçado de espécie de servidor doutrinado por determinada perspectiva ideológica interessante aos donos do mundo.

            Os servidores públicos têm tarefa muito relevante em uma sociedade que destina à maioria a condição de pobreza espiritual e material. Ricos não precisam de seus serviços ou, caso sejam vítimas de descaso, têm os recursos necessários para acelerarem a justiça a seu favor, podem continuar vivendo sem o serviço público, pagam o que for necessário e seguem a vida. Pobres e remediados fatalmente precisarão mais do serviço público em diversos momentos de suas vidas. Logo, o profissional a qual se espera estar servindo ao público; este que, na verdade, é o seu patrão, deve ter sensibilidade social e compromisso público com o que faz. Deve saber que é sustentado pelos impostos que pagamos para uma finalidade muito nobre, qual seja a de transformar este país da selva em que se encontra, onde os indivíduos têm que recorrer a malandragens e a exceções para alcançarem direitos mínimos, num país decente, que respeita a dignidade humana, os direitos e deveres de cada um. Logo, o processo seletivo para ingresso no serviço público tem que priorizar esta perspectiva. Não entendo, por exemplo, a histórica e exclusiva importância dos conteúdos de Português e Matemática nos certames, assim como continuo sem entender as recentes inovações que trataram de incluir Direito, Informática, Economia, Contabilidade, etc., nas provas de nível médio. O mesmo posso dizer que não entendo, como critério de qualidade prioritário, a exigência de nível superior específico - das mesmas carreiras - em diversos casos.

             O que aconteceu com a exigência de qualquer nível superior? Lembro-me da comemoração que foi a liberdade de se comprovar qualquer graduação mínima para o ingresso no Instituto Rio Branco, órgão de formação dos nossos diplomatas que antes exigia exclusivamente a formação superior em Direito. Possibilita uma diversidade de concepções daquela carreira que só enriquece o serviço público da sensibilidade social e estratégica que deve possuir na formulação e na execução de políticas públicas. O mesmo não exigiria de carreiras específicas do Direito, como os cargos de juiz e promotor, que poderiam permanecer como reserva de mercado da área. Agora, analistas em geral, já penso que podem ser profissionais diversificados. 

              Quanto aos conteúdos das provas, acrescentaria a História do Estado Brasileiro como prova obrigatória. Poderia esta prova ser mais direcionada para a História das Políticas Públicas Setoriais no Brasil, abordando aspectos relevantes já experimentados e reflexos na população-alvo. Poderíamos somar a esta, provas de Sociologia ou de Geografia, ao invés de investirmos em provas esquisitas de Ética no Seviço Público que, na verdade, dizem pouco sobre o efeito a que se propõem. O Português deveria ser mantido sim para todos mas a Matemática acredito que somente para setores dos quais se torna imprescindível. Não vejo razoabilidade em se aferir conhecimentos de trigonometria ou de equações e inequações a sujeitos que atenderão o público, por exemplo. 

             Alguns conhecimentos específicos deveriam ser alvo de cursos de formação aos servidores classificados e não de provas de seleção geral. Determinados conhecimentos a quem não atua na área sequer podem ser avaliados sem a concorrência da práxis. Como diagnosticar um bom bancário da Caixa Econômica Federal? A sensibilidade social deve estar acima de técnicas específicas que também serão úteis mas não com a prioridade de primeira etapa classificatória que adquiriram. 

            Outra possibilidade a ser experimentada é a de assegurar acesso aos autodidatas em geral. Com a profusão de informações a que estamos submetidos no século XXI, não é difícil atestar conhecimento a quem não possui titulações específicas. A categoria dos professores pode resistir a esta proposta, acreditando que, sem a obrigatoriedade de titulação, o sujeito estará se livrando do ganha-pão dos mestres. Eu responderia que, se o importante é saber, conhecer do que fará em serviço, não estão nossos diplomas atestando isto de forma automática. Pelo contrário, do jeito que há perseguições a alunos por carência, vaidade e conveniência política de professores, diretores e donos de escolas (os privilégios, por força desta mesma contradição, também existem), estamos então disfarçando que temos os melhores profissionais em função dos diplomas que ostentam. Existem mecanismos no sistema educacional brasileiro para atestar conhecimentos e conferir titulações a quem não necessariamente passou por toda a trajetória escolar obrigatória. Refiro-me, por exemplo, ao caso do ENEM para quem quer provar a capacidade quanto ao Ensino Médio, ao caso dos EJAs (Educação de Jovens e Adultos, antigo supletivo, que reduz o tempo de formação no fundamental e no médio) e ao caso das provas de proeficiência, mecanismos aceitos para substituírem a frequência em disciplinas de ensino superior e que são omitidos nas respectivas faculdades.

             Outra questão me irrita bastante: estas provas de múltipla escolha apresentam, por diversas vezes, opções de resposta truncadas. Há bancas que adoram anular questões. Não é possível que respostas idênticas sejam diferenciadas apenas por um tratamento privilegiado do gabarito oficial a uma delas. É equivocado que recursos não sejam deferidos em casos extremamente absurdos. Por mais trabalho que represente a correção, defendo que as provas discursivas assumam imediatamente o lugar das provas de múltipla escolha. Poderão dizer que estas são mais subjetivas e que acabarão caracterizando expressões de preferência ou vantagem pessoal daquela banca mas o que vem ocorrendo com os resultados absurdos das questões de múltipla escolha que encontramos por aí? Pelo menos, com o direito de se expressar livremente, o sujeito poderia escrever o que sabe sem incorrer no exercício angustiante que significa escolher a "menos pior" das opções. Devidamente publicizado o resultado de um julgamento coletivo de professores, não estaríamos sendo mais justos e conferindo certa razoabilidade a argumentos legítimos? Sem contar que a correção gramatical e a coesão textual também poderiam ser exigidas das mesmas respostas discursivas de qualquer conteúdo.

             Precisamos tomar conta de perto dos concursos municipais. Estão muito mais propícios à manipulação política antes, durante e depois da realização dos mesmos que os de outras esferas do poder público. Isto é gravíssimo! Além da Constituição de 1988 ter deixado clara a necessidade de concursos públicos para todas as esferas, órgãos e empresas estatais; muito além da cobrança do Ministério Público sobre as prefeituras e câmaras municipais, há uma insistência das autoridades políticas em nomear e contratar temporários que sejam aliados políticos no lugar de fazer concurso público. Há perseguições inadmissíveis ao servidor concursado, sobretudo em cidades do interior do país. Eu mesmo fui vítima disso e conheço diversos casos no mesmo sentido. Além de uma cultura de protecionismo local aos nascidos e criados ali, o que legitima uma perseguição insistente ao concursado que veio de fora da cidade e tentou concurso público, como todo brasileiro, alcançando o legítimo direito de ser servidor público em qualquer lugar do país, há uma política de transferências e de mecanismos de assédio moral que tentam fazer o servidor desistir. Com a desistência, não é costume puxar alguém da fila de classificados. É costume contratar temporariamente outro cidadão aliado, que votou no político e, portanto, jamais o fiscalizará como deveria. Em geral, as autoridades municipais se aproveitam da lentidão do Judiciário no julgamento dos feitos, assentando seu mandato de quatro anos numa impunidade que, não raro, perdurará uma década ou mais. Com a vitória do servidor, assistimos a um prejuízo financeiro do Erário, que acaba arcando com indenizações vultuosas pelo tempo que levou a sentença judicial definitiva para acontecer. E o prejuízo é duplo ou triplo: durante este período, o servidor afastado arbitrariamente não prestou serviços ao povo, este contou com um substituto que naõ sabia ou não queria fazer o serviço adequadamente e, por fim, acabamos todos tendo que indenizar o servidor maltratado. Uma dica que posso oferecer aos concurseiros de plantão é que resistam ao máximo a prestarem concursos municipais, sobretudo os que acontecem no interior do país, fora das regiões metropolitanas, porque o que vemos é toda a sorte de abusos que atentam contra o Estado Democrático de Direito nas barbas de um Judiciário fragilizado por leis brandas, mecanismos recursais de monte e corrupto, muito corrupto. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por exemplo, tornou-se uma das piores piadas de mau gosto do país pela forma como protege as autoridades municipais mais escandalosas.


              A reforma administrativa implementada pelo Governo FHC foi uma das mais desastrosas contribuições à deficiência do serviço público no país. Por ela, já era suficiente que nenhum servidor público votasse no PSDB mais pelo resto de sua vida. Como o PT manteve diversas modificações, ainda que tenha estancado a sangria realizando mais concursos, também não é digno de louvores. Fernando Henrique Cardoso ampliou o prazo mínimo para o servidor alcançar a tão sonhada estabilidade (de 2 para 3 anos), esticando o tempo em que o servidor fica na mão do político. Destruiu a possibilidade de transferência ou promoção em diversos casos. Aviltou salários e estendeu o prazo para se aposentar, argumentando que teríamos de economizar para sustentar os juros que os banqueiros impõem à dívida pública brasileira. Privatizou diversas estatais e fez com que os antigos servidores perdessem a estabilidade da noite para o dia, resultando no elevado nível de precarização daqueles que trocaram a condição de estáveis pela de terceirizados que podem receber ou não. Como consequência natural, nossos serviços públicos pioraram com a política em vigor. Ainda assim, PSDB e PT (empregados dos donos do mundo) conseguiram dificultar tanto o bem-estar mínimo do trabalhador da iniciativa privada que a péssima condição de muitos servidores públicos virou privilégio na sociedade em que estamos. 

               É por isso que, mesmo com todas as críticas aos concursos e à imagem negativa construída, vou continuar tentando meu lugar ao sol no funcionalismo. Ciente de que, uma vez me tornando servidor público de novo, terei ainda de lutar muito ao lado dos verdadeiros colegas, aqueles que se interessam pelo nosso povo, para manter meus direitos mínimos de existência. Toda vez que ouço alguém falar que funcionário público é vagabundo e não trabalha, lembro ao sujeito que vagabundos que não trabalham e só enriquecem são os nossos patrões, sejam eles os políticos, sejam eles os donos do sistema financeiro internacional. São eles que determinam procedimentos, desviam verbas, alimentam a ingerência e gostam de fulanizar a culpa. Do jeito que está, todos nós perdemos. Durante a década de 90, as promessas da iniciativa privada eram de valorização da  eficiência, da agilidade, da competência e do mérito. Na prática, ao tentar fazer tudo isso, o trabalhador sério acaba punido. Como não gosto muito de ser escravo nem tenho tentações capitalistas ambiciosas, daquelas que precisam estabelecer a ascensão social pisando nos outros (à custa de depressão ou câncer), não vejo outra forma de sobrevivência que não o caminho do serviço público. E vou vencer este desafio.        

          
                         

                                                      

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