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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 24 de junho de 2012

Identidades de gênero na pós-modernidade: aprimoramento, resistência e colapso



          O direito à experimentação sexual tem sido uma necessidade histórica da humanidade que, nos anos 60, alçou forte insurgência cultural, sendo as décadas seguintes de aprimoramento, resistência e colapso. É o que tento problematizar neste ensaio.


         A concepção cristã sustenta há dois mil anos forte condenação ao prazer sexual. Faz uma opção política pelo enfraquecimento emocional dos indivíduos  que dela assimilam culpa ou erro. É uma boa serviçal dos poderosos na História. Seu objetivo é fragilizar para dominar com êxito. Sabem os que buscam o poder sobre a humanidade que detê-la por força física nem sempre foi tarefa exitosa, o que leva ao complemento ideológico. Convencer-se da necessidade de se reprimir é mais útil e eficaz que reprimir forçosamente a quem não se convence da necessidade de uma ordem. Resta saber a quê ou a quem serve a ordem. Se não à maioria, se não às vítimas de seus caprichos, se não a qualquer um dos indivíduos em sociedade, ela não pode ser continuada. Não continuar é resistir com coragem e sinceridade; é negar-se a elaborações relativistas que só fortalecem a ordem por omissão ou conivência por fraqueza. 


         Assim, vimos parcela da humanidade ocidental - esta de formação cristã e capitalista - insurgir-se contra seus pilares culturais básicos nos anos 60. Contra a ordem do matrimônio até que a morte o separe, vimos a insurgência do amor livre. Contra a ordem heteronormativa, vimos ascender a visibilidade, a tolerância e o respeito às mulheres, aos homossexuais e aos bissexuais. Contra a ideia de família que se estrutura e se preserva unica e exclusivamente por laços consanguíneos, vimos o levante de que todo ser humano pode se associar e se reconhecer enquanto família. Contra o domínio do espaço privado para se satisfazer sexualmente, sempre restritivo e sufocador da realidade, vimos insurgir-se a necessidade do prazer em qualquer lugar, da demanda pela sinceridade do que  afeta. 


       O espaço público ganhou cores e riqueza de possibilidades com as demonstrações públicas de afeto das mulheres solteiras, sendo mães ou não, das divorciadas, daquelas que só se satisfaziam com a variedade de parceiros, ainda que não se prostituíssem como as milenares profissionais. A mulher conquista a liberdade sexual e, com esta, a disposição necessária para subverter a condição de dominada por um homem que tudo podia desde que não fosse em público. Quero dizer, por um homem que, ainda que no comando do sistema, cheio de paranoias e bloqueios mentais. 


          Os passos tomados pelas gerações seguintes aos anos 60 foram no sentido do aprimoramento e da universalização destas conquistas. Afinal, elas ainda eram uma conquista de vanguarda, de uma minoria corajosa e revolucionária, que foi capaz de trazer o tema ao debate e à prática, arriscando sua própria pele e relações interpessoais. Veja que ainda não toquei nas resistências cristãs nem na apropriação capitalista do fenômeno social! A disposição desta minoria de enfrentar o "status quo" sempre foi enorme por conta de um segredo que se revela por trás dos interesses moralistas religiosos em condenar liberdades sexuais: justamente por conhecer da capacidade humana em se superar, em criar e resistir, em se subverter de toda e qualquer dificuldade imposta, que a gente limitada ao poder material busca incessantemente o domínio do espírito do outro. Neste ponto, o conhecimento da História, sobretudo sobre o que experimentamos enquanto espécie antes da  hegemonia do cristianismo e do capitalismo, nos oferece fundamentos libertadores do espírito. 


         Quem se realiza sexualmente, reverbera potencialidades edificantes. Quem não se realiza, reverbera angústias e injustiças. Se conhecermos bem das leis da espiritualidade, presentes em todos os manuais religiosos porém manipulados pelos sacerdotes em busca de seus respectivos interesses materiais, veremos que a condenação às liberdades sexuais serve a certa doutrinação do espírito revolucionário que carregamos dentro de nós. A revolução que significa estar feliz, entendendo felicidade sempre como busca incessante do espírito, concretizada em espaços de tempo e circunstâncias definidas, faz do sujeito um ser indomável por quem objetiva seu controle material. Em outro aspecto diretamente relacionado, faz do mesmo sujeito um ser capaz de realizar o que deseja espiritualmente no plano material. Ao contrário deste, o deprimido, o resignado e o manipulador, céticos da possibilidade de mudança pelo afeto, são seres domáveis por outrem que criam diversas dificuldades à saúde da coexistência humana sem realizarem seus desejos mesquinhos com sucesso. Correm atrás eternamente de uma renovação pelo consumismo da energia alheia, como vampiros, mantendo-se constantemente mal. 


        Uma característica comum aos seres deprimidos, resignados e manipuladores do interesse material é a previsibilidade de seus passos. O intuito do sistema do mal-estar profundo (este que só gosta de Cristo morto na cruz e do dinheiro como único e verdadeiro Deus) é condicionar todos os seres, mapeá-los, vigiá-los e sufocá-los ao máximo. Reduzir a existência espiritual das coisas existentes à condenação simplista dos falsos moralismos ou à condição limitada de significados, que é a condição de mercadoria capitalista, onde tudo só pode ter valor se o valor for o da representação de sucesso financeiro, cria uma atmosfera mórbida de assimilação de fracassos, culpas e ressentimentos que descambam na violência sob as mais diversas manifestações possíveis. O ser consciente de sua matriz energética natural, aquela que pode ser encontrada no alimento, no espaço e nas relações humanas saudáveis, não se permite à manipulação tosca e frágil das mesquinharias materiais ou dos pensamentos destrutivos. Investe sobre o outro a felicidade que pretende para si pois sabe que, no universo de gozos humanos, há uma lei espiritual próxima à lei da Física de Newton, aquela que trata que para cada ação corresponde uma reação. O libertário espiritualista desenvolve um agir imprevisível, embora pautado na consciência de como suas atitudes reverberam no cosmos, de maneira que não se submete aos apegos do domínio material. Por tal é que investe na autonomia existencial e no mundo colaborativo das diferenças, sabendo reconhecer o valor daquilo que não rende ou custa dinheiro e poder ilusório. Sabe que passam pelo sexo prazeroso energias vitais e invisíveis, não restringindo sua consecução em regras inúteis à felicidade por que pautam os moralistas cristãos, nem reduzindo o prazer sexual a uma mercadoria descartável, de significado restritamente financeiro ou espetaculoso, que precisa da falsidade para fazer prevalecer no mundo. 


           É sabido que o objetivo único da  mercadoria é agregar mais e mais valores materiais. Assim, ela se difunde em espetáculos de publicidade enganosa e de extrema fluidez de sentidos, em exibição quantitativa, em pressa e em proporcional esvaziamento afetivo. O sexo enquanto mercadoria não é apenas o produto vendido pelas prostitutas mas um sentido de encará-lo até por quem não tira dele seus sustentos materiais. Quando equiparamos todas as ações humanas à lógica de produção das fábricas, da especulação financeira, da apropriação privada do que é produzido pelo suor alheio, estamos transformando e reduzindo os sentidos espirituais que nos motivam a pensar, a sentir, a elaborar e a agir sobre nós mesmos e sobre o mundo. Sexo enquanto mercadoria seria o sexo apressado, afundado na perspectiva da publicidade ostensiva (e, portanto, paranoico quanto ao convencimento do outro sobre a representação desejada), em quantidade semelhante à produção em série das fábricas para consumo, aquele que opta em esvaziar de sentido afetivo e racional por entender como único valor de existência o que se projeta na apropriação material do outro por domínio. Sendo assim, pode alcançar a condição restrita de mercadoria o sexo monogâmico também. Não é uma prerrogativa dos tidos como "promíscuos" a atrofia sexual dos sentidos existenciais. Um sólido matrimônio cristão que seja calcado num ciúme doentio, numa relação de propriedade privada, numa submissão do outro para satisfazer interesses sociais (publicidade enganosa), na violência mútua calcada em falsidades reveladas, numa obrigação posta como de desejo divino que quase sempre resvala na atuação incoerente por debaixo dos panos, faz seu papel de mercadoria também. Afinal de contas, o que menos interessa à mercadoria é a coerência entre o que demonstra ser e o que se é. Seu valor maior continua sendo sua capacidade de agregar representações materiais ilusórias. É daí que podemos compreender o quanto o moralismo cristão pôde ser assimilado e disponibilizado aos interesses capitalistas, atuando em parceria pela manutenção de escravos deprimidos de tão obedientes. Faria muito melhor se seu foco fosse o amor ao próximo de verdade.


        A partir dos anos 90, presenciamos o crescimento da concepção individualista sobre todas as relações existenciais humanas. Aprofundou-se, em verdade, a mercantilização da vida, ou seja, a apropriação de tudo o que é vivo pela lógica restrita dos valores de mercado. Foram esvaziados do direito à existência quem ou o que não se adaptasse de corpo e alma, ou ainda, cinicamente. É propaganda enganosa do mercado sua relação direta com a qualidade do que produz, logo convencer o outro não está associado à coerência prática do que se sustenta em teoria. Sendo assim, o espaço da enganação ganhou reforço à medida que cooptava líderes e referências que outrora associavam-se a uma sociedade melhor, mantendo de suas antigas insurgências sociais apenas o discurso. 


          No âmbito das identidades de gênero, assistimos à profusão de um sem número de possibilidades que passaram a se apresentar como alternativas à sociedade heteronormativa (normatizada pelo padrão heterossexual). Quem lhes faz a defesa atribui ao indivíduo a primazia sobre sua própria identificação, o que possibilitaria ao sujeito se dizer heterossexual mas se comportasse na esfera privada como homossexual, por exemplo. Acredito que continua sendo um direito do indivíduo aceitar ou rejeitar a carapuça que lhe cabe. Problematizo esta defesa a partir do momento que encontro nela a sustentação da resistência moralista cristã escondida no ser híbrido. Na prática, temperada pelo sentido cínico das mercadorias. Vejamos o caso do indivíduo que diz "não ter rótulos", o que pressupõe ser aberto a experimentações sexuais com pessoas do mesmo sexo ou de sexo oposto, na condição versátil, ou ainda, com bichos, plantas e objetos, já que "não ter rótulos" nesta seara fertiliza a imaginação do desavisado. Quase sempre se verifica nestas pessoas o mesmo comportamento dos rotulados, ou pior, a primazia da exposição pública definida pela heteronormatividade. Se praticam outra relação que não a heterossexual, esta outra possibilidade é ainda velada e cheia de paranoias. Se são adeptos do amor livre, ainda desenvolvem ciúmes, subordinação e monogamia, pelo menos exigindo esta do(a) parceiro(a). Onde está a revolução sexual dos anos 60 nestes comportamentos? Houve um aprimoramento, uma resistência a ou um colapso daquela perspectiva? Até que ponto a multiplicidade de identidades de gênero vem servindo à libertação sexual humana e até que ponto esta vem servindo ao tradicional esconderijo por onde permitimos, de forma restrita, velada e hipócrita, as proibições históricas do moralismo cristão?


         O mais comum entre diversos jovens que conheço é dizer que não são gays mas que respeitam esta identidade de gênero. Mesmo entre os que notoriamente o são! Não caem na real, acreditam conseguir ludibriar a inteligência do outro, parecem ter grande medo dos efeitos da insubordinação à disciplina a qual foram acostumados por suas famílias e amigos desde pequenos a obedecer. De tanto ouvirem "viadinho", "bichinha", "boiola" e os próprios palavrões com referências depreciativas às liberdades sexuais, creio que foram severamente doutrinados. Ora, um gay não engana ao outro, sobretudo porque o tempo e as experiências de vida fazem com que passemos a reunir um sistema de códigos próprios, afora a intuição latejante, típicos das resistências necessárias a todo e qualquer oprimido. As liberdades sexuais também vêm assegurando a legitimidade do que se assume gay de manifestar seus desejos sinceramente.  Paralelamente, porém, é corriqueira, mas explanada só em ambientes próprios, em rodas de intimidade ou em ambientes de pouca instrução, sobretudo nas periferias e igrejas cristãs, a defesa do machismo e da homofobia como naturais do homem. A disputa de concepções está posta no campo social, que legitima um discurso politicamente correto por força de lei e de imposição do saber relativista, que cada vez menos afirma convicções mas também rejeita a desqualificação total dos sujeitos pela orientação sexual. Nesta confusão conceitual, racional e afetiva, prevalece a prática paranoica do desejo (quando esta poderia ser libertada à plena potência) e um discurso publicitário do Eu submerso em incoerências vacilantes. 


           Assim, quem pratica o desejo homossexual é um número vinte vezes maior de pessoas do que aqueles que reivindicam  a identidade de gênero homo ou bissexual. Entre estes que praticam, em sua maioria, não podemos distingui-los pelo jeito afeminado (se homens) ou masculinizado (se mulheres), ou pela condição de solteiros eternos, como até então sustentaram os estereótipos da heteronormatividade. São homens e mulheres que estão por aí, mais normais do que parecem, muitas das vezes fazendo discurso machista e homofóbico, pois o curioso é como acreditam se esconder com eficiência reproduzindo sistematicamente o que é projeção típica de desejos profundos renegados. Quem muito fala daquilo que odeia, em verdade revela o que ama. E como toda mentira tem perna curta, a revelação da orientação sexual real é inevitável. Pode ser adiada a um custo que só aumenta no tempo mas é inevitável. Incrível é que, de tão abafada em si e reiteradamente refutada no outro, a orientação sexual verdadeira do Ser, ao se revelar, traz transtornos muito maiores aos que se envolveram com o Ser reprimido no tempo. As vítimas da autorrepressão sexual  passam a ser instrumentos de chantagem de michês, garotas de programa, prostitutas, travestis, amados e amantes ocasionais,  que foram rejeitados em nome da opção publicitária enganosa, e agora passam a ameaçar casamentos, namoros e até expectativas outras (por exemplo, profissionais, como é o caso dos militares, padres e freiras bi ou homossexuais) decorrentes da assimilação de um núcleo familiar heteronormativo de fachada.


           Assusta saber que a opção dos seres humanos ainda seja pela dor e não pelo amor ao próximo como a ti mesmo. O efeito do moralismo cristão sobre a mentalidade coletiva, em relação às liberdades sexuais, não só lhe pertence como lhe foge o controle do alcance. Se foi deliberadamente arquitetado na educação dos mais jovens, em missas e cultos que se propagam há séculos, também o foi racionalizado cientificamente pelo nazismo durante parte do século XX. A violência cresceu na proporção do controle ideológico plantado, pois foi estabelecendo não apenas um auto-controle, um sentimento de culpa individual daquele que destoa de suas padronizações infelizes, como também gerou divisões, segregações, perseguições organizadas por um lado, que estão por aí torturando e matando em tantos e tantos lugares em busca da limpeza étnica que, acreditam, alcançará seus padrões ideais. Basta estudar História para se ter uma ideia do quão fracassadas foram estas necessidades de padronização humana mas eles insistem, é parte da ignorância que representa a competição pelo poder. 


          Por outro lado, estamos também formando guetos de resistência, onde uma cultura sexista tenta denunciar e acabar com a outra para que se implante uma nova, sob a mesma lógica de apenas substituir quem manda na normalidade. 


           Entre estas perspectivas, só posso afirmar minha identidade homossexual sem pretendê-la única nem muito menos dominadora da espécie humana. Ela é a minha identidade porque é como me sinto realizado sexualmente, sem simulações reducionistas, disfarces inúteis ou modismos, fortalecendo meu espírito para tantas e tantas lutas que não têm a ver com o que realizo na cama mas que deste depende para ter pleno êxito espiritual. Sendo assim, minha atuação no mundo é relacionada à naturalização da orientação homossexual, não sendo esta um horror a ser temido nem evitado, muito menos um espetáculo a ser disponibilizado com pressa, culpa, compromisso com a quantidade, a mentira e a angústia. O que tenho de bom em mim eu não vendo, eu divido para multiplicar, no mundo colaborativo, o segredo de uma trajetória que não culminará em depressão ou servilidade.                               


                         


                 
         

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