Não é de hoje que me irrito com estes suplementos de jornal que tratam de empregos e oportunidades no mercado de trabalho. São, em verdade, a produção mais ardilosa e cínica que a turma de Recursos Humanos (RH), a serviço de patrões inescrupulosos, pode oferecer ao leitor desesperado por um emprego digno. O suplemento "Boa Chance" do jornal "O Globo" do domingo 03/06/2012, em sua capa, traz um box com os seguintes título e subtítulo:
"Redes sociais e blogs não deixam ninguém mentir - reputação na internet é fundamental"
Transcrevo a íntegra dos três parágrafos do box para análise do meu leitor mais desafortunado, aquele que anda com seu currículo para cima e para baixo atrás de um vaga de escravo da iniciativa privada, ou ainda o outro tipo, aquele que já resignado pelas rasteiras habituais nos próprios direitos trabalhistas, ainda acredita na capacidade de ascensão social por méritos próprios, a dita "competência individual" nos ambientes de empregabilidade mais personalistas e hereditários possíveis. Vamos à matéria:
Em tempos de internet e
redes sociais em profusão, uma quantidade crescente de recrutadores e executivos recorre a essas ferramentas para checar dados e descobrir novas informações sobre os candidatos - desde traços de personalidade até em que empresas realmente trabalharam. Especialistas admitem, então, que o documento de papel já cedeu bastante espaço à web na hora de selecionar um profissional. Como se o currículo tivesse morrido.
- A reputação na internet é fundamental. Por isso, é necessário tomar cuidado com o que se escreve no facebook ou no twitter - diz a coach de executivos Marie-Josette Brauer, ressaltando que as redes sociais e o personal branding mostram uma outra dimensão do profissional. - O Linkedin, por exemplo, revela como a pessoa faz seu networking, o que é bem relevante.
Para o empresário Marcelo Giannini, as redes sociais se tornaram indispensáveis na hora de checar informações sobre um candidato.
São muitos os aspectos a serem analisados no discurso do jornal, da coach de executivos (nome sugestivo, não?) e do empresário. O que se nota, antes de mais nada, é que se tenta naturalizar um procedimento absurdo dos profissionais de recursos desumanos do capital (aqui em diante, chamarei pela sigla RDC em substituição a RH, como se auto-define a sordidez do ofício): empresas alertam que vigiam a vida individual dos candidatos a emprego através da internet, ou seja, dispõem da tecnologia para conferir seus hábitos, crenças, ideologias, privacidades e sentimentos sem autorização através das redes sociais e blogs. Não bastasse a conferência da veracidade de passados profissionais dispostos em currículos, estabelecem uma paranoia que visa cercear a liberdade de expressão das pessoas. Este é um ponto. Definem que tipo de profissional se deseja formatando padrões humanos ideais ou refutáveis. Associada à vigilância, ao temor e à censura plantados, observamos a discriminação explícita e naturalizada de seres humanos segundo lógicas completamente medíocres e surreais. Como sabemos que este não é o critério preponderante de contratações, promoções ou demissões no mercado de trabalho, muito mais calcado na indicação ou no privilégio personalista, fica apenas um cinismo nocivo, capaz de iludir e fazer proliferar a insegurança íntima sem resultados profissionais garantidos.
Outro elemento considerável da matéria é este esforço em importar e estabelecer estrangeirismos à nossa língua portuguesa. Sabem os profissionais de RDCs da vida o quanto a ignorância sobre a língua inglesa da maioria torna-a sedutora pois carregada de certo peso simbólico de autoridade sobre as mentes colonizadas e dóceis. O emprego do estrangeirismo tem como função fazer valer um discurso de verdade global, um elitismo desejável a quem busca algum lugar ao sol na selva das oportunidades cada vez mais restritas. Se existe relevância no aprendizado da língua estrangeira, não é esta relevância que está embutida em um texto em português carregado de referências importadas. É a necessidade de se fazer superior, de se vender a ideia do privilégio, de se criar uma atmosfera conceitual acima das práticas de comunicação habituais entre brasileiros, de maneira que este recurso é uma habilidade de dominação que constrange tanto o quanto ilude o ignorante até justificar seu banimento. Dentre tantas paranoias plantadas, usar a expressão "coach de executivos" no lugar de "treinador de executivos" tem mais significado e repercussão psicológica do que aparenta. Tudo isso é cuidadosamente elaborado, de maneira que os RDCs da vida adoram se apropriar de novos espetáculos conceituais para justificarem velhas práticas na seleção e na demissão de trabalhadores que passam longe, muito longe mesmo, do discurso que ostentam orgulhosos sobre fórmulas inovadoras de meritocracia.
Em outras palavras, na hora de dar o pé na bunda ou na hora de contratar, continuam pesando mais, mesmo no setor privado, não o conhecimento em inglês ou em qualquer outro saber que agregue potencialidades reais para a atividade a ser desempenhada, mas o parentesco com os chefes, os laços de amizade com os poderosos, o reconhecimento das habilidades apenas como se fossem transmissíveis por genes (que torna o mérito uma questão de sangue, transmitido de pai para filho).
Ora, se o empresário condena a ousadia e a liberdade de seu funcionário, cerceando-o e impondo certo terrorismo às suas particularidades "refutáveis", observa-se no mercado a reprodução de valores e métodos sem maiores inovações. Fica o ambiente de trabalho reduzido ao ambiente de fofoqueiros, puxa-sacos, incompetentes de todas as funções, covardes, dóceis que se tornam , num primeiro momento, mais baratos ao processo automático do sistema porém, de forma contraditória, mais caros porque incapazes de solucionar as demandas mais comezinhas. Ofusca-se assim todo o discurso da competência individual, aquele que reivindica que são melhores e mais aptos ao emprego os que dinamizam mais suas atuações, os que não se curvam à estagnação sobre novas oportunidades de aprendizado e, por último, os que revelam toda uma diferença positiva em relação à média, fazendo-se dignos dos títulos de liderança e promoções cabíveis. Ao mesmo tempo que os hipócritas que atuam no âmbito de RDCs falam uma coisa aqui sobre o padrão ideal, desmentem-no acolá, fazendo do trabalhador escravizado um idiota cheio de medo de perder o posto que tem, do desempregado um atordoado que vive se culpando pelos seus próprios (e supostos) erros ou vacilos mediante o padrão ideal.
O único padrão perceptível é que não há emprego para todos porque a exploração tem que ser máxima, o lucro deve ser máximo, assim como o controle social sobre as desgraças plantadas deve ser constantemente maquiado e embelezado, até que pareça natural e perfeito zelo individual o que é demasiadamente cultural e frágil publicidade enganosa.
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