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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 20 de agosto de 2011

Ser gay e ser normal: lutas e arranjos sociais paralelos


O sujeito descobre que é gay antes que o seja, pois a paranoia social, aquela que nos circunda desde a infância, faz de tudo para evitar o fato sem saber que é na necessidade de evitá-lo que mora a maior atração concreta dos acontecimentos. É quando aspectos culturais se fundem a aspectos espirituais, resultando numa relação de causa e efeito, que propicia ao temerário o enfrentamento daquilo que mais teme na vida. Vale pra tudo. Quanto mais paranoico com qualquer coisa, mais suas energias psíquicas ficarão orbitando na faixa vibracional do que tanto se importa, nada mais que um exemplo das desconhecidas capacidades e regras do poder mental humano de materialização do que idealiza em si, de si e para os outros. Como todos os gays, nasci de pais heterossexuais, como é da natureza divina a exigência para fabricação. Meus pais nunca foram liberais ou favoráveis à causa, muito pelo contrário, temiam e discriminavam, menos porque queriam ser e não foram e mais por uma reprodução cultural da formação católica que tiveram. “Pagaram a língua”, como diz a sabedoria popular. De tantos absurdos que ouvia em família, escondia meus prazeres deles mas não os escondia totalmente da sociedade. Convivendo entre a periferia e a elite da minha cidade, fui protagonista, coadjuvante e testemunha de histórias fantásticas, algumas das quais desejo compartilhar com meus leitores para proveito, em parte ou no todo, daquilo que os tocar a sensibilidade. 

Foi no convívio com a UFF que assumi de vez, mediante conhecimentos e amizades hetero/homo/bi/pan que me fortaleceram o espírito, e fizeram com que tomasse um rumo claro para quem quisesse ouvir ou não. Antes deste momento, ficava como uma boa parcela da irmandade: esperava a embriaguez ou o entorpecimento do outro para fazer e justificar dessa maneira. Ou me restringia à repetição dos casos confirmados, sem maiores aventuras que pudessem comprometer a imagem com comentários indesejáveis. À família, explicava que não trazia mulher pra casa, não tinha namorada ou mulher alguma para apresentá-los (sem dúvida, uma cobrança que acontecia e aporrinhava muito nos tempos de covardia) porque não queria namorar ou casar, o meu negócio era pegar várias sem compromisso. Nisto, conquistava o machismo dos conservadores. Fazia o papel do macho pegador, cheio das mulheres-objeto que nunca existiram. Sem rosto para justificar tamanha palhaçada, bastava falar que tinha e cada um falava que era melhor do que o outro. Iniciavam-me na tristeza que a competição humana sempre me causaria, ao mesmo tempo temperada com hipocrisia, em que investiam na construção de uma sempre bem compensada covardia. Se dissesse ao meu pai que precisava “fazer uma menina aí”, conseguia descolar um dinheiro que não conhecia normalmente. Um primo me ensinou o segredo. Como morava com meus pais, minha luta sempre foi deixar a casa deles o quanto antes para que pudesse viver livremente, sem cobranças ou insultos, os prazeres que a orientação “esquisita” impunha.

Se não tenho a certeza de que nasci assim, sou propenso a acreditar que o fator genético esteja presente apenas para justificar o trabalho dos geneticistas e neurologistas, o que é sempre uma ameaça perigosa de racialização oriunda da teoria  eugenista. Tornamo-nos assim por uma predisposição espiritual, parece-me mais adequado afirmar, que se encontra com a nossa própria visão de mundo em formação, propiciando a combinação perfeita para uma atração sexual imbatível que afeta todo o jeito de ser e de estar no mundo. A interpretação espírita dá conta de escolhas anteriores ao nascimento, escolhas estas feitas pelo próprio espírito, que as faz para cumprir um projeto de aprendizado na Terra (o planeta de provas e expiações que vivencia, atualmente, uma transição para se tornar um planeta de regeneração). Logo, o nascimento de gays, filhos de casais heterossexuais preconceituosos, seria uma das formas de aprendizado mútuo dos espíritos que reencarnam, tanto o bebê quanto aqueles que o geraram materialmente (a intricada relação entre pais e filhos), em sua relação entre si e com o mundo. Tanto os pais quantos os filhos teriam feito a escolha antes de serem reencarnados e, como em todas as demais reencarnações, não lembrariam desta escolha feita no outro plano. A memória material seria frágil demais para comportar a memória do Éter, sendo facultada àquela apenas os pequenos insights (ou breves percepções de já ter vivido, de já saber antes ao fato material, flashes de premonição, rápidas sacações sem qualquer vínculo com um conhecimento prévio, pensamentos sutis que são trazidos do inconsciente à consciência sob forte sensibilidade e inspiração).

Logo, como em todas as demais possibilidades humanas, a homossexualidade seria perfeitamente compreensível, ainda que alguns setores do espiritismo mantenham-se reticentes à naturalização por força de sua condição judaico-cristã. Porém, o que me faz admirar a postura espírita é justamente o caminho da compreensão, da inclusão e, por que não, da naturalização da diversidade sexual como fenômeno espírita decidido a aprimorar os indivíduos, e não de condená-los ou persegui-los, o que constitui um avanço significativo entre as religiões monoteístas. 
           
 Tanto é assim que tenho boas lembranças, ainda que vagas, repassadas por insights que emergem do encontro com situações específicas e remetem-me à infância. Ainda que não tivesse a malícia de um adolescente, muito criança mesmo, já era possível sentir rastros da fixação por figuras do mesmo sexo em diversos momentos. Nos homens, mais do que em mulheres, penso eu, há uma paranoia que atravessa diversos momentos de encontro. Muitos pais – e os meus não foram diferentes – preocupavam-se em fixar a cor azul dos móveis e roupas, o carrinho como brinquedo, o futebol como vício masculino e a orientação clara para brincar apenas com crianças do mesmo sexo, afastando-nos dos que todos tiravam como homossexuais, sendo-os ou não, pois talvez fossem apenas heterossexuais “delicados”. Muitas eram as discussões entre os meus pais sobre a minha criação e eu as ouvia e as entendia perfeitamente. Enquanto minha mãe me tratava sem paranoia, agradando mas também cobrando disciplina, estudo, higiene e boa conduta, meu pai era mais distante, apesar de morarmos juntos, e aparecia na minha formação, após um dia de trabalho, como aquele extremamente preocupado com duas coisas: em assegurar materialmente a casa e em formar seus filhos como machos plenos. Educação também era uma exigência acompanhada de estrutura e cobrança, uma vez que, se na cabeça dele, o estudo era importante, também o era brincar e conviver com meninos da minha idade. Eu gostava da escola, do estudo aos colegas de lá, e tinha horror de brincar com aqueles coleguinhas da rua. Meu pai não entendia, achava que minha mãe superprotegia e que estava criando filhos viados ou babacas, coisa que minha mãe jamais desejou também. Muitas foram as vezes em que fui retirado das leituras e escritas aos prantos, expulso de casa para brincar na rua e, na rua, acabei encontrando o que tanto amedrontava meus pais e que tanto curtiria também: o sexo precoce com pessoas do mesmo sexo. Logo, tudo o que fez para evitar foi inevitável e, antes mesmo de inevitável, tornou-se cada vez mais presente e forte.

Iniciei minha vida sexual com 11 anos de idade e a iniciei pegando mulher e homem na mesma época. As únicas condições para pegar alguém do mesmo sexo eram o silêncio social eterno, a continuidade das brincadeirinhas machistas para disfarçar e sempre exibir uma mulher-objeto para a sociedade. Nunca tive dificuldades com as práticas nem fui estuprado, tendo sido iniciado por homens que tiveram o cuidado de me apresentar o sexo como uma brincadeira entre eles que, se eu quisesse, poderia participar ou não. Sempre tive a consciência de ser uma espécie ameaçadora, pois não tinha um jeito afeminado, como imaginam os heterossexuais acerca de nosso estereótipo, mas constituía simplesmente a maioria enrustida que ninguém diz que é ou que gosta, ou seja, o maior objeto de desejo e de temor das mulheres quando projetam sobre seus relacionamentos a possibilidade de um enrustido enganador à nossa imagem e semelhança. Isto, claro, nos tempos de falsidade ideológica. Quando me assumi publicamente, a relação com as mulheres heterossexuais passou a ser ambígua: misto de perda, solidão e enganação de seu domínio (complexo de Hera) à amizade profunda, a qual se sabe que não está ali desejada sexualmente, mas admirada e considerada para além dos prazeres carnais o que faz muitos amigos heterossexuais a insistir que somos, enquanto gays, grandes facilitadores da aproximação entre eles e as mulheres. Sem obrigação de assim ser, nada mais que o que qualquer amigo faria por qualquer amigo.
        
 É claro que tenho na minha cabeça, graças aos estudos em ciências sociais e humanidades, um esboço claro de fatores que constituem a personalidade dos indivíduos em minha sociedade. Com a minha realidade particular não seria diferente. Quando digo que a UFF me libertou em diversos aspectos, refiro-me diretamente a este conhecimento e ao convívio com diversidades, pois como olhar o que é de influência religiosa, o que é de influência capitalista, o que é de formação individual e o que é de melindre típico de uma época, de um espaço ou de um agrupamento humano específico, sem o estudo de História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Psicologia e Filosofia?

Mas hoje sei que olhar e identificar não é suficiente: é preciso praticar a diferença, cobrar o respeito, respeitar o diferente e libertar a humanidade dos melindres que a escravizam, estes que cristalizam relações ou infelicidades coletivas como óbvias, que nada mais são que oriundas da necessidade animal de domínio. A evolução humana, na minha perspectiva, acontece à medida que nos desapegamos ou nos desvinculamos de disputas de poder, um traço que persiste na História Humana, como motivo de erro, crueldade e culpa, mas que sempre se enfeitou de uma propaganda enganosa de superação, virtude e capacidade. Está na competição e na disputa de poder a raiz das maiores mazelas sociais, das maiores injustiças e das maiores revoltas, dos maiores crimes e das maiores intolerâncias. Em nossa criação, até mesmo entre pais que exacerbam um projeto alternativo de sociedade, percebe-se o estímulo à competição, à necessidade de se rebaixar um perdedor diante da vitória do vencedor e, para tal, não é raro, fazemo-nos valer de estereótipos do vencedor, de modelos de fracasso e de sucesso a serem combatidos ou seguidos entre as crianças.

Um dos modelos de fracasso mais presentes na criação humana é o que se pinta erroneamente acerca do homossexual, ser que, na prática, revela-se de uma criatividade punjante, de uma sensibilidade fantástica e de uma dedicação ao trabalho incrível, uma vez que, como qualquer tipo humano discriminado, torna-se obrigado a comprovar méritos para além do exigido habitualmente aos demais. Assim como os negros têm de provar que são bons profissionais apesar da cor da pele, nós temos de provar que somos bons em qualquer coisa além do que somos na cama, na voz e nos trejeitos. Tamanho absurdo desconsidera o que é possível perceber naqueles que se atraem pelo mesmo sexo: uma fusão peculiar de qualidades e afeições de ambos os sexos, o que certamente incrementa a espécie humana e não a perverte, como obsessivamente focam os pensamentos judeu, cristão e muçulmano há tanto tempo, numa tentativa insana de obscurecer o prazer e fragilizar, dessa forma, o humano que se pretende manipular.

Após tanto sofrimento ao longo da história, o homossexual começa a ganhar espaço e respeito, ainda que duramente rechaçado, principalmente por semelhantes híbridos, cuja constituição das personalidades foi forjada no desvio da hipocrisia. Sei que há excessos também, pois o momento é de euforia histórica em torno das conquistas recentes e crescentes de direito à existência do Ser, que finalmente se emancipa após milênios de domesticação e humilhação dos monoteístas e dos nazistas. Isso é significativo e, por tal, compreensível que assim o seja. Por outro lado, considero a necessidade de se impor como moda um excesso que a história do movimento LGBTT tratará de corrigir à medida que a própria sociedade corrija também sua incrível obsessão pelo que o outro faz na cama. A sociedade brasileira, pelo menos a que eu conheço bem, ainda trepa preocupada, culpada e sem orgasmo, porque não vivencia tanto o prazer do ato em si o quanto direciona energia para a perseguição do ato alheio, o que vão falar e o que vão pensar sobre a revelação das quatro paredes, suas consequências reais e hostis sobre os ambientes familiar, profissional e público.   É notório que tal situação mal-resolvida, fartamente avaliada por Freud e ainda pertinente cem anos depois, alimenta produtos capitalistas, ódios religiosos e manipulação política de todos os setores envolvidos, favoráveis e opositores ao direito de Ser.

Ao contrário do que muitas pessoas defendem, de que há uma preocupação do sistema capitalista em transformar todos em gays, o que há, na real, é a exploração da polêmica que já não deveria mais existir entre favoráveis e desfavoráveis ao direito de Ser do outro, uma polêmica iniciada e sustentada por religiosos cristãos e que marcou muito nossa mentalidade coletiva pela estratégia de colonização europeia (portuguesa, católica e moralista), já que sabemos hoje que os indígenas nativos praticavam a homossexualidade sem problemas até a condenação sistemática de seus catequizadores/inquisidores católicos que chegaram unidos ao projeto do Estado Português. Basta se ler Padre Manoel da Nóbrega, catequizador voraz da época, sobre a prática sistemática do “pecado nefando” (como se referia ao sexo entre homens tupinambás), em obras de sua autoria. Ou mesmo Von Martius, botânico que se empenhou em estudar espécies da Amazônia no Império, sobre as mesmas práticas que, para ele, eram sinais de selvageria, argumento que fundamentaria a evolução racial do positivismo ao nazismo.

A forte condenação à homossexualidade na América Latina é proporcional à presença do moralismo católico na região, hoje corroborada pela concorrência paulatina dos radicais evangélicos na condução de parcela vulnerável da sociedade (ao lado da discriminação) e pela igualmente crescente e concorrente evolução das liberdades individuais (que buscam firmar o direito de Ser e os direitos civis inerentes, com maiores ou menores restrições) que fizeram crescer a emancipação dos direitos civis em relação ao dogma religioso sem, contudo, livrar-se plenamente da insistente condenação inquisitória dos tempos coloniais. É por isso que assistimos a episódios de homofobia que nos indignam mas que, infelizmente, sempre existiram, não necessariamente oriundos de católicos ou evangélicos coerentes ou “praticantes”, mas que carregam a chaga do que há de pior no dogma sem maiores reflexões do quanto estão agindo por impulsos dados por quem objetiva manipulá-los ao seu bel prazer material. Que eu saiba não há Roma sem putaria nem Brasil de rígidos celibatários... 

 Escapa-se atual e mais facilmente de outras discussões necessárias, até mais cristãs do que essa, no meu humilde entender, como o Amor ao Próximo como a Ti Mesmo. O Direito de Ser é indiscutível, sendo facultado aos indivíduos Ser o que quiserem Ser de suas essências e oportunidades de prazer individual, desde que estas não residam no extermínio do outro Ser, o que limitaria a propriedade privada como direito individual, por exemplo, mas não eliminaria o direito de se fazer sexo consentido com quem quer que fosse. Mas para não se discutir os abusos do direito à propriedade privada, sobretudo em tempos de acúmulo de capitais insuportável por uma ínfima minoria, é possível que a aliança entre lideranças cristãs, judias, muçulmanas e capitalistas, de fato, prefira sustentar a polêmica do direito de Ser gay. Seria politicamente muito menos nocivo aos seus interesses mesquinhos focar em polêmicas sexuais dos tempos medievos, reconfiguradas por nazistas, como em outras formas de racialização, pois teriam como resultado o lucro político, econômico e financeiro que os produtos do ódio e/ou os produtos da aceitação imprimiriam às suas respectivas necessidades de domínio e de acumulação materiais. Com a vantagem de ver todo um povo obcecado por esta razão menor, conferindo disputas insanas entre si, fragilizando o maior número de indivíduos por subcategorias segregacionistas e promovendo um bando de racistas que projetam ódio por temerem a prática do que justamente fortaleceria seus respectivos espíritos: o direito de Ser e a União dos oprimidos contra um inimigo opressor maior, comum a todos e forçosamente naturalizado, como é o caso da mercadológica para a maioria da espécie humana, em situação gravíssima de miséria e violência.


VOLTANDO À MINHA PRESENÇA NA HISTÓRIA


Já fiquei e fiz sexo com muita gente, é verdade. Quase sempre de camisinha porque, se assim não o fizesse, já estaria doente ou morto. De adolescente reprimido a adulto carente de um grande amor de verdade, de louco tarado que não podia ver quem me excitasse que já achava que deveria investir ao tipo contido e remediado, que desconta em outrem as frustrações de alguém que esperava do outro a iniciativa que não veio. Casei por três anos, separei, voltei a ser solteiro. De lá para cá, entre experiências que vivi e as que pretendo ainda vivenciar, aprimorei o olhar, irrefutavelmente a maior arma de um gay na sociedade, e passei a ficar mais exigente, considerando aspectos que não apenas os carnais na escolha dos parceiros. Não me interessa o tamanho do pau, os músculos, o dinheiro ou a carinha de eurodescendente: interessa-me o conjunto da obra que se apresenta à minha frente, incluindo a coragem de Ser o que quer que seja, a capacidade de se comunicar e de se sensibilizar com um mundo melhor. Não precisa concordar em ser meu espelho não, pois, apesar de megalômano e narcisista, já desencanei com essa pretensão há muito tempo. Se vier alguém mais humano do que a média, disposto a um envolvimento circunstancial ou duradouro, acrescido de outras características físicas, ótimo, tornar-se-á bônus. Se não, foda-se! Prefiro um cara de face esquisita, boa conversa e boa trepada, ou ainda ficar sozinho, que um bonitinho galã que me venha, do início ao fim da sacanagem, com ameaças para caso revele suas preferências na cama e ainda faça malfeito, justamente por paranoias do tipo! Ando sem paciência com os enrustidos, embora conceda à maioria da classe a benevolência necessária à condição de maioria, e seja adepto das cotas raciais para feios, esquisitos e medíocres, justamente por apostar incansavelmente na superação de nosso traço cultural aristocrático mais característico, e fazer de minha práxis uma luta pela necessidade de alcançarmos uma coerência mínima entre discurso e prática em todos os sentidos existenciais.  

Há quem não me reconheça mais. Depois que descobri, por exemplo, que me dava muito melhor numa pegação quando saía à noite sozinho, passei a não alimentar mais expectativas quando estivesse entre amigos, em rodas de bar ou em festas. Não preciso aparecer pegando nem vi nesta atitude muito sucesso. Há dias que são para os amigos e há dias que são para as demais atividades mundanas, com a rica possibilidade que o fato de ser carioca oferece de podermos puxar assunto e desenvolver intimidade momentânea com qualquer desconhecido, ainda que a violência urbana tenha conferido um medo desgraçado das pessoas em geral de conhecerem o desconhecido não apresentado por ninguém de confiança. Eu prefiro pedir proteção ao outro plano, observar a atitude de cada um ao seu modo e estender ou não a confiança no desconhecido, jamais o negando a uma primeira oportunidade de diálogo, aventura e magia. É claro que, em algum momento, você se dá mal. Mas o saldo, em geral, é bem mais positivo do que pensam os escravos disciplinados pela exploração midiática e/ou religiosa da desgraça alheia. O fato é que, sobrevivendo ao risco, resta o prazer da vida, a sensação de bem-estar que os padres e freiras são impedidos de reconhecer, a gargalhada e a história engraçada para contar aos amigos. A gargalhada fica em dobro porque os amigos não acreditam e aquela loucura fica mesmo só sua e de quem a compartilhou no momento, restando aos idiotas invejosos a mesma ojeriza que vitima de tédio os adeptos do politicamente correto, nome moderno do velho moralismo revigorado. É por essas e outras que não me resta outra pecha que não a de libertário, provocador e inquieto com a natureza arrumada dos humanos para eles próprios. Ninguém mandou que me deixassem descobrir como se tornam “poderosos” os que vociferam blasfêmias. Agora já é tarde. 

   Gozem, meus lindos, gozem bastante! Mas este “bastante” não é critério de quantidade, como tentam nos iludir os capitalistas com seus rankings hipócritas de sofrimento! Este “bastante” é qualitativo, carece de ousadia e tem na verdade seu aliado fundamental. Toda vez que mentimos pra nós mesmos e ainda forçamos ao outro a obrigação de também mentir, reduzimos nossas possibilidades de felicidade existencial, aproximamo-nos das depressões e das doenças de todo o tipo, oferecemos atrasos à vida alheia, atrasos que geram ódio, rancor, mágoa, covardia e vingança. O individualismo reforça a depressão espiritual da humanidade e não há outro antídoto para os males de nossos tempos que não o Amor ao Próximo Como a Ti Mesmo. Amar-se é ser possuído pelo prazer sim, mas o hedonismo por si só, o culto ao prazer pelo prazer, sem maiores reflexões ou envolvimentos sensitivos, não. Não é assim que o prazer assegura êxtase e é por essa egolatria desmedida que acabamos seduzidos pelos critérios quantitativos em geral. O prazer só é pleno ao indivíduo se ele consegue gerar prazer em outrem, se ele admite e facilita o direito de Ser ao outro em primeiro lugar, porque é desta estranha dinâmica (estranhada se, para além de um discurso bonitinho, um homem de nossa época, de fato, for capaz de cumpri-la) que se encontra o nosso próprio sentido de libertação. Quando se pensa em gerar prazer por critérios individualistas, aqueles que só comportam a supremacia da felicidade do Eu sozinho sobre o “foda-se” ao outro, temos mais perdas energéticas reais que acréscimos. Neste jogo, capta-se pouca energia, frágil e insustentável, requerendo o organismo humano a retro-alimentação constante, a quantidade de corpos em consumo, num fenômeno espiritual que chamamos de “vampirismo”. O que está rolando em nossos tempos exige de todos nós postura clara, reta e convicta quanto a princípios que não podem ser relativizados, como a coragem, o amor ao próximo e a verdade, sob pena de sofrermos muito, mas muito mesmo. 

        Para quem busca a felicidade e evita os males maiores do intricado jogo humano, ofereço um carinho gay que não apenas alivia... resolve! Pronto, mais do que a euforia das bibas escandalosas, minha oferta é pelo magnetismo curador, fruto do encontro, do olhar, do beijo intenso, do sexo incrivelmente consistente, da amizade paralela, da união por grandes causas e, sobretudo, por alguma continuidade que não involua ao nível do ciúme e da possessividade, mas que sim, evolua ao nível das incríveis descobertas que o Deus Chronos é capaz de revelar aos menos ansiosos por quantidade e mais instigados pela curiosa ampliação da sensibilidade que o acúmulo de encontros proporciona aos safados experientes.

domingo, 14 de agosto de 2011

Carta do recurso ao Conselho de Ensino e Pesquisa da UFF


Niterói, 11 de agosto de 2011.


Requerimento ao Egrégio Conselho de Ensino e Pesquisa da Universidade Federal Fluminense


            Com base nas cópias de documentos, na legislação e em fundamentos anexados a este presente requerimento, solicito aos Senhores Conselheiros do Egrégio Conselho de Ensino e Pesquisa da Universidade Federal Fluminense DEFERIMENTO quanto ao recurso que por ora apresento à decisão do Sr. Coordenador de Graduação em História desta Universidade, no tocante ao meu pedido de REMATRÍCULA para conclusão da respectiva graduação, observando o Regulamento dos Cursos de Graduação da Universidade Federal Fluminense e os argumentos que exponho a seguir.

            Faço saber aos senhores que diversas dificuldades pessoais (de ordem financeira e ideológica) impuseram-me a conclusão da respectiva graduação em seu tempo. Tal fato, no entanto, nunca me impediu de exercer a profissão de Professor de História por dez anos consecutivos, entre os anos de 2001 e 2011, entre escolas particulares de Niterói (RJ), escolas públicas de Bocaina de Minas (MG) e Resende (RJ), além de promover uma ONG e, através desta, diversos cursos, como destaco especialmente o ensino de História via FM, através da primeira rádio comunitária de Niterói totalmente legalizada pela Anatel/MC (Rádio Comunitária NB FM 98,5 MHz, sediada no Barreto, Zona Norte da cidade) a qual fundei, dirigi e capacitei diversos jovens em parceria com o Ministério da Cultura. Durante o período entre 2004 e 2007, exerci ainda cargo eletivo de Diretor de Comunicação do Sindicato dos Professores da Rede Particular de Niterói e Região e da Federação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino Privados do Estado do Rio de Janeiro. Nesta condição, além de um amplo projeto de comunicação sindical, ministrei diversos cursos de atualização para professores da educação básica em Cabo Frio, Mesquita, Angra dos Reis, Maricá e Rio de Janeiro (RJ), cursos estes direcionados para profissionais de ensino atuantes na rede particular dos municípios supracitados. Os senhores podem atestar alguns vínculos empregatícios citados em fotocópias de minha carteira de trabalho, de contrato municipal, contracheques e até entrevista feita por mestranda da PUC-RJ a respeito, todos anexados a este recurso.

            Divergências ideológicas com meus professores da graduação à época e dificuldades financeiras encaminharam-me para um exercício precoce e intensivo da profissão, constituindo uma vasta experiência profissional a qual gostaria de contemplar com o diploma que me asseguraria acessos profissionais outros, como a um concurso público na área. Por esta razão, submeti, em 31/05/2011, portanto no prazo previsto pelo calendário desta universidade, meu pedido de rematrícula à Pró-Reitoria de Graduação que, conforme o regulamento interno, encaminhou-o à apreciação do Coordenador da Graduação em História. Este, considerando estritamente uma suposta impossibilidade para a integralização em tempo hábil das disciplinas que me faltam, indeferiu meu pedido, razão pelo qual estou recorrendo a este conselho.

            Apelo à sensibilidade dos senhores para o fato de que disponho de tempo hábil sim, inclusive para integralizar as disciplinas faltantes em dois turnos simultâneos se for o caso, pois me encontro desempregado justamente em função do maior rigor que venho enfrentando, no que se refere às exigências legais de habilitação mínima, para a continuidade de meu exercício profissional no mercado de trabalho do Estado do Rio de Janeiro. Que só não o fiz anteriormente porque me encontrava trabalhando no interior do Estado de Minas Gerais entre 2006 e março último. Logo, amadurecido quanto às razões ideológicas que tenham me afastado da conclusão da graduação, solicito uma nova oportunidade e faço-a justificar, não apenas por interesse próprio, mas também pelas necessidades prementes de nosso povo por professores empenhados em dispor de uma educação de qualidade.

Atenciosamente,

                                           Fernando Almeida Calado

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fundamentos Anarco-Espiritualistas


         Algumas pessoas me pediram pra comentar sobre o “anarco-espiritualismo”, ideologia citada em alguns de meus posts, ou sobre algumas citações que fazem referência a um relacionamento com espíritos nunca esclarecido no corpo dos artigos. Pois bem, decidi fundamentar minhas convicções transcendentais neste e como estas descobertas mudaram minha vida, oferecendo ao leitor a oportunidade de entender o que algumas religiões espiritualistas abordam à luz de uma conexão que percebi com os princípios libertários, e, portanto, ao contrário do medo e das limitações desenvolvidas historicamente em torno da disputa de poder insana dos sacerdotes e do desconhecido.

         Em primeiro lugar, quero deixar claro que fui ateu até os meus 21 anos de idade. Não acreditava em Deus nem em santos, espíritos ou religiões, zombando de tudo e todos, julgando racionalmente o homem conforme sua capacidade criativa de criá-los e a eles se submeter por desespero, carência ou limitação a todos imposta culturalmente. De família católica, fui submetido a três tentativas de catecismo, todas frustradas por extrema discordância com a Igreja Católica, essencialmente por ter conhecido seus métodos e interesses políticos, esclarecidos através do estudo da História e da observação crítica de seus falsos moralismos. Logo, mesmo tendo sido batizado nela, não fiz primeira comunhão, nem crisma, nem constituí matrimônio, por razões óbvias que vão da diferença filosófica à repressão de minha sexualidade, ostentada erroneamente por esta igreja ao longo dos séculos, que tanto fundamenta preconceitos, crimes de ódio e infelicidades extremas de boa parcela da humanidade.

         Por mais que eu estudasse, entretanto, sentia a diferença fundamental da figura de Jesus Cristo de todos os que pregam em seu nome. Ora, para mim, antes de mais nada, tratava-se de um homem. Um homem especial, sem dúvida, mas não porque exercia superpoderes conferidos por Deus. Um homem especial porque REVOLUCIONÁRIO em sua época! Daí personagem histórico. Se não, que outro adjetivo posso atribuir a quem não aceitou sujeitar a si mesmo e a seu povo ao Império Romano, que então escravizava a Judeia, o povo judeu, submetendo a este como a tantos outros, pesados tributos, ordenamento político e jurídico, perseguições políticas e extrema desigualdade social, ainda que, amparado em acordos políticos tácitos, permitisse a liberdade religiosa local a cargo de sacerdotes poderosos?

         Os seguidores esquecem que Jesus nasceu pobre, que saiu pregando e ajudando os mais pobres, que foi simples e solidário e, por tal, poderoso. Sua concepção de poder não se restringia ao plano material mas buscava as regras do plano transcendental - o “além”, o desconhecido, os céus, ou qual nome quisermos dar para simbolizá-lo. Isto é significativo quando extrapola a pura retórica e se torna verdade constante. O que católicos e evangélicos em geral fazem nas missas, nos cultos e nas ruas, é o contrário: busca-se excessivamente a limpeza e a salvação do espírito pela repetição exaustiva da retórica, pela cobrança moralista da atitude alheia, enquanto as suas próprias práticas sociais, aquelas resultantes das intenções e dos pensamentos, são viciadas pelas disputas materiais. Dissolvem com facilidade os ensinamentos de Jesus e falam em nome dele, condenando e expurgando aqueles que julgam “tomados por Satanás”, a quem de fato oferecem um valor inigualável.

         A percepção diferenciada que atribuía à figura histórica de Jesus Cristo associava-se, na minha jovem cabeça, aos princípios de esquerda, do socialismo e do anarquismo. Como seus seguidores poderiam se tornar capitalistas? Como justificarem a desigualdade social falando em nome de Jesus? Há passagens bíblicas que explicitam referências socialistas e anarquistas de Jesus: “vendilhões do templo”, como referiu-se, certa feita, a vendedores de objetos sacros (os evangélicos de hoje se apegam a esta passagem para condenar o culto aos santos católicos mas vendem outras materializações do sacro!); “atire a primeira pedra quem nunca pecou na vida”, em defesa de Maria Madalena, prostituta que seria facilmente condenada pelos cristãos de hoje, uma vez que alimentam a chaga dos preconceitos moralistas para obscurecerem os diversos desvios de caráter e conduta, a corrupção endêmica, o individualismo e a ganância de seus líderes e seguidores. Que tal a recusa de acordo político com Pôncio Pilatos, governador imposto por Roma à Judeia, para que negasse o que dizia e fosse livrado da condenação à cruz?

         E os exercícios de fé também me chamavam a atenção nas passagens bíblicas. A fé, de fato, é poderosíssima quando real e a realidade da fé é que materializa o impossível. Não o contrário. A exigência de prova material que a ciência cartesiana impôs para que seus feitos fossem valorizados como “reais” criou também a figura do intermediário, seja ele qual tipo de autoridade for, se sacerdote, político ou cientista, quem vai definir o que deve ser digno da chancela do real. Interesses políticos, egóicos e materialistas, rechaçam muita gente boa e muita obra significativa por aí em nome deste prestígio social da legitimidade. Nietzsche questionou isso. Jesus fura esta pretensão das autoridades e propõe que é possível a todos furar, oferece-se como caminho (exemplo) mas sua declaração de ser “o único caminho, a verdade e a vida” foi infeliz. Na época, por serem consagrados os grandes retóricos de acordo com a firmeza de seus discursos, talvez tenha sido necessário. Dá-se um desconto. O mesmo não podemos falar dos rumos que os moralismos tomaram na história do cristianismo.

         Neste momento de profundas transformações em meu Ser (2001), deparei-me com a existência de vozes ocultas, atrapalhadas, como se numa feira estivesse. Brincava muito com a existência dos espíritos, contava histórias, adorava filmes de terror e zombava do medo e da crendice das pessoas. Até que eles foram aparecendo de verdade. Testavam-me e eu os testava. De começo, afora a admiração à figura revolucionária de Jesus, nada me parecia real. Mas as vozes vinham e anunciavam pretensões, feitos que se confirmavam no mundo material, no meu dia-a-dia, no comportamento das pessoas que me cercavam, nos sonos que se prolongavam por dias, na estranha manifestação de conversas com pessoas após situações que se repetiam e fugiam ao meu controle. O que qualquer pessoa julga fácil ser fruto de consumo de entorpecentes ou enlouquecimento, esquizofrenia e doenças mentais do gênero, não o era. Era na sobriedade do trabalho, na tranquilidade do lar, no caminhar das ruas e no encontro com pessoas desconhecidas que mais se manifestavam. Como negar? Tornou-se difícil após o episódio que vou relatar pra vocês logo em seguida. A sucessão de acontecimentos levou-me naturalmente a buscar ajuda e a estudar com afinco o universo dos espíritos.

         Quando decidimos montar uma rádio comunitária, eu e amigos do bairro, com grandes dificuldades financeiras para tal empreendimento, procuramos apoio entre comerciantes e donos de imóveis comerciais que pudessem colaborar com um aluguel barato ou uma permuta para ser a sede da rádio. Encontramos um comerciante, dono de uma loja de autopeças, cujo sobrado, na parte de cima, estava ocioso. Tratava-se de uma construção histórica, desfigurada na fachada original por um chapisco absurdo, mas que, em seu interior, mantinha um chão de madeira Gonçalves Ledo com cerca de cem anos, um teto alto e uma escadaria pomposa e antiga de acesso. O dono propôs uma permuta: “paguem-me o aluguel em reformas do espaço”. Para nós, simplesmente fantástico! Eu fui um dos maiores entusiastas, já que a localização era ótima e o fato de ser estudante de História animava-me ainda mais com o que encontrei.

         Tivemos de tirar vários objetos e quinquilharias amontoadas. Madeiras, móveis, um telefone a manivela, um banquinho preto, um tridente, pedaços de ferros, de alumínio e restos mortais de objetos outros foram despachados num caminhão de mudança. Tiramos fotos com estes objetos típicos de um terreiro mas só mantivemos o telefone a manivela e o banquinho, que foram devidamente restaurados e expostos na sede, após intensa obra que modificou toda a instalação elétrica, a pintura e a divisão espacial. Para quem tiver dúvidas sobre o que digo aqui, basta procurar os fundadores da rádio comunitária NB FM que eles atestarão o que vou lhes contar aqui.

         Na parte de trás do sobrado, localizava-se uma escada que começava no meio da parede até o sótão. O acesso a este sótão dependia da passagem pela casa de uma senhorinha que vivia sozinha, ou melhor, com seus milhares de gatos. Muito solícita e simpática, a senhorinha sempre disponibilizou seu banheiro durante as obras e posteriormente a elas, água e acesso ao sótão. Era fundamental a instalação da antena e do transmissor da rádio do sótão até o telhado do sobrado, condição para a transmissão dos nossos sinais via FM. Ela não atrapalhou nossas pretensões, pelo contrário, e sempre com aquele sorriso suave, de pessoa que transparece uma leveza fora do comum, permitiu-nos o acesso irrestrito, ainda que ficasse ou não em casa. Dizia:

         - Aqui já foi uma escola, meu filho! Trabalhei com um casal que me ajudou muito, mas esta casa ficou abandonada por muito tempo.

         Escola? Pensávamos e ficávamos imaginando em que ano, quando isso aconteceu. Nossas famílias, tradicionais no bairro, nunca haviam narrado a existência de uma escola ali e, pelo espaço restrito, acredito que se tratava de uma escola de poucos alunos. Logo, bem antiga, dos tempos em que pouquíssimos eram os que estudavam naquela outrora vila operária. Pelo que encontramos ali, estava mais para centro espírita que escola.

         Quando subi pela primeira vez no sótão, fiquei surpreso. Uma estante trazia livros bem antigos de Odontologia e um, em particular, tratava-se de um diário manuscrito a pena com algumas partituras. Pelos relatos, em português bem arcaico, era de uma senhora pianista, casada com um dentista do Partido Republicano Fluminense! Fiquei fascinado. Queria porque queria retirar os livros dali, limpá-los, restaurá-los, expô-los e até aproveitá-los numa futura monografia, tese ou obra sobre a história política da Província Fluminense. Comecei o trabalho mas... não sabia onde estava me metendo.

         Começou a acontecer uma série de fatos estranhos no ambiente da rádio e fora dele. CDs e objetos em geral desapareciam, instigavam desconfianças de roubo e brigas. Tinha acabado de conquistar minha primeira turminha de 5ª série em escola particular do outro lado da cidade. Com cerca de três semanas na escola, menor intimidade com os novos colegas de trabalho (que nem sabiam ainda da existência da rádio) e um fato inusitado interrompeu minha aula. O inspetor, pálido, pediu desesperadamente que eu fosse encontrar com a orientadora pedagógica, interrompesse a aula, que ele vigiaria a turma para mim, mas que era urgente. Ainda retruquei, pedi que fosse depois, na hora do recreio, pois precisava terminar o raciocínio da aula. Ele voltou a implorar, disse que o assunto era grave e urgente, que não podia adiar. Tudo bem, então fui ao encontro da professora.

         Quando cheguei em sua sala, deparei-me com a tal professora em estado de espírito completamente diferente. De cara e punhos fechados, aquela figura sempre alegre e tranqüila, parecia estar com muita raiva. “O que aconteceu, professora?” – perguntei. “Quem mandou você roubar minhas coisas?” – ela me devolveu. “Eu!? Mas eu não roubei nada.” – respondi perplexo. “Roubou sim. Você entrou na minha casa sem autorização, colocou lá uma caixa de faladô (sic!), anda levando gente que eu não gosto e ainda pegou meu livro da estante!” – respondeu a pessoa, deixando claro, junto com aquela dormência súbita e inacreditável em meu corpo físico, que não se tratava da professora em si mas da dona do livro e da casa onde estava a rádio, quero dizer, do espírito desencarnado daquela que um dia habitou ali e se recusava a deixar o prédio por apego.

Convencido pelas evidências, pus-me a dialogar com a tal senhora: “mas se foi a senhora dona de tudo aquilo, a senhora já morreu e sabe que meu interesse é social e histórico. Construí ali uma rádio comunitária que vai ajudar muita gente e o seu livro pode servir à história da nossa comunidade. A senhora sabe que eu estudo História e que eu não posso ser impedido de esclarecer a História por causa de...” [interrompeu]. “Não me interessa!!!” – gritou o espírito batendo na mesa da professora. “Você vai colocar tudo no lugar ou então eu vou provar pra você que eu existo! Vou mexer na sua carne três vezes até deixar o lugar! Aquele formosado que você gosta tanto, rá, rá, aquele ali veio de muito longe pra se vingar. Você foi muito ruim pra ele na outra vida!” – ameaçou citando um amigo pelo qual estava me apaixonando. A imagem do amigo me veio na hora à cabeça. Perplexo, eu ainda assisti, pela primeira vez, o fenômeno que consiste na despedida daquele espírito encostado no médium, que desaba em choro e não se lembra do ocorrido parcial ou totalmente. No caso, foi total. A professora não lembrava de absolutamente nada.

Intrigado com aquela situação, ainda resisti. Dizia que achava um absurdo que os mortos, ainda que existissem, nos impedissem de concretizar feitos por caprichos egoístas. Continuei meu trabalho normalmente, relatando a poucos amigos o que havia acontecido. Alguns acreditavam, outros não. Mas os fenômenos foram crescendo. Especialmente à noite, quando ficávamos sozinhos, eu e o amigo descrito pela mulher desencarnada, eu comecei a ouvir insistentemente vozes como se estivesse em uma feira livre. Aquilo me perturbava. De todas as vozes, uma se destacava na multidão e me lembrava do que havia dito através da orientadora pedagógica naquele dia. O amigo, de formação evangélica, não acreditava. Até porque me conhecia em plena transição: eu brincava demais com essas coisas e certamente, na visão dele, estava querendo impressioná-lo. Aos poucos, ele foi acreditando. Pedia-me para rezar. Teve um momento em que o chão de madeira quebrou, mantendo uma de suas pernas no alto do teto da loja, que ficava embaixo.

Mas o pior dos mundos aconteceu também: tive uma sucessão de pesadelos e brotaram três furúnculos na minha bunda. Nunca havia tido problemas sanguíneos, muito menos furúnculos. Quando sarava um, surgia outro. Três ao total, exatamente como “ela” havia ameaçado. Mexia na minha carne! E os objetos que sumiam da rádio reapareciam após longos conflitos.

A gota d´água aconteceu quando a rádio resolveu fazer um link promocional direto do estacionamento do supermercado WalMart um dia. Instalada a tenda árabe por lá, eu fiquei sozinho na sede, na função de comandar a programação como locutor e operador. Divulgava no ar que estávamos lá, prontos para receber o ouvinte etc e tal. Inexplicavelmente, o amigo (aquele que fora chamado de formosado pelo espírito desencarnado) apareceu transtornado na sede, deixando a tenda da rádio no supermercado. Gritava comigo - “Você não vai me controlar, porra! Ninguém manda em mim, entendeu? – enquanto quebrava a socos pesados as janelas, os móveis, os objetos e os equipamentos da rádio, tirando, obviamente, nosso sinal do ar. Juro que não tinha cobrado nada a ele, nem pessoal, nem profissionalmente, para que justificasse tal atitude. Estávamos bem. Não havíamos brigado. Aquilo não era o normal dele nem havia sido motivado por nada entre nós. Pelo menos, a princípio.

Em conversa anterior a este fato com a professora-médium, sem a presença dos espíritos, ela já havia confessado que era espírita e médium, mas que achava muito estranho que este fenômeno tivesse acontecendo no ambiente de trabalho, ou seja, na escola, já que havia doutrinado seu corpo para não os receber em qualquer lugar e que se tratava de algo excepcional. Mas me advertiu quanto ao recado dado a respeito do formosado. Esclareceu-me de como funciona a reencarnação. Foi textual quando pontuou que deveria observá-lo, acompanhá-lo e que o perdoasse caso acontecesse algo estranho. Era o sentido reencarnatório do nosso encontro, pois algo não havia sido resolvido entre nós em outra vida. Isso foi antes do acontecido! O espírito da mulher que vivia na casa foi claro ao dizer que o formosado vinha de longe em busca de vingança. Quem diria, justo alguém com quem eu simpatizava completamente!

Ao vê-lo agora, naquela situação de enfrentamento materialmente injustificável, tornei a ficar dormente e consciente do que estava ocorrendo. Com aquelas mãos sangrando sem parar, totalmente ferido pelo acesso de loucura, outro sinal do fenômeno veio logo a aparecer: o choro. Descambou a chorar sem parar. Levei-o até a pia do banheiro da senhorinha que habitava a parte de trás do inóspito sobrado, para que pudesse lavar seus cortes. Com a rádio fora do ar, invariavelmente apareceriam as pessoas querendo saber o que havia acontecido. Éramos quatro diretores, eu incluso. Os outros três, ao verem a situação (um prejuízo formidável!), foram extremamente humanos. Acreditando ou não na parte espiritual da coisa, acreditavam em mim. E, por mim, disseram que o prejuízo era o de menos mas que a permanência do formosado na rádio estava nas minhas mãos. Eu decidiria se ele seria afastado temporariamente, definitivamente, ou se permaneceria independentemente do fato. Pedi um tempo, agradeci a confiança e disse que iria conversar com o formosado em outro lugar. Teria de ter uma longa conversa com ele e, desta conversa, tiraríamos uma decisão.

A sensibilidade de dois diretores ainda nos levou para a Praia de Itacoatiara para que pudéssemos relaxar. O mar, sempre presente nos momentos cruciais da minha vida, também se tornou notado a partir do momento em que o estudo do espiritualismo pediu-me que notasse qual elemento da natureza sempre esteve presente na minha vida. Qualquer exercício de revisão de vida que façamos, desde o nosso nascimento até a idade em que estivermos, passando por todos os feitos, erros e acertos, revelará a presença intensa e persistente de uma força da natureza a nos apoiar ou a nos guiar. É desta descoberta que reconhecemos os rituais fundamentais à alimentação de nossa fé, aquela que traçará a confiança necessária na vitória dos rumos os mais absurdos e ilógicos. Surgem as pessoas, as oportunidades e as saídas para qualquer tipo de problema. Veja bem: eu nunca mencionei isto ao amigo diretor que nos levou em seu carro até a praia. Sequer tinha essa noção à época. Voltando no tempo e observando cada marco histórico da minha trajetória, sinto a presença da Mãe Água, seja na forma de mar, de cachoeira ou de chuva, invariavelmente. Poderia ser um animal em particular, uma planta ou o vento. Mas é a água, tenho certeza, o elemento da natureza que mais me fortalece. 

No bar, após esta visita à praia, o formosado confessaria algo que jamais ouvir da boca de alguém aos prantos: “eu sempre tive inveja de você! Você é tão novo quanto eu e é tão inteligente, é diretor de uma rádio, professor... e eu!? Eu sou o quê, Fernando? Eu não sou nada. Agora, eu sou menos ainda! Você vai me colocar fora da rádio, eu sei!”. Perplexo diante daquela confissão, vinda de quem eu admirava o profissionalismo, o talento e começava a amar, consciente de tudo que a espiritualidade estava me apresentando, um dos grandes divisores de águas de todo o meu sentido existencial, disse a ele que o perdoava mas que precisava de um tempo. Afastei-o da rádio temporariamente mas nada seria como antes.

Enquanto providenciávamos, em apenas quatro meses de existência da rádio, a mudança de sede (como permanecer ali?), Formosado contraiu uma doença rara que lhe tiraria a visão para além de um metro de seu campo de visão. Isto o afastou definitivamente da rádio e de nós, levando-o para um rumo diferenciado. Eu resolvi assumir papel que outrora era o seu na nova sede. Fui morar lá, atendendo a tudo e a todos, como ele fazia, além de preencher buracos de programadores ausentes e experimentar o crescimento de um espaço cultural associado ao crescimento da rádio. Durante esta passagem, passei a frequentar centros espíritas, a ler sobre umbanda e kardecismo, e a tentar doutrinar a manifestação de incorporações, audições, visões e sonos incríveis e duradouros, além de atender, ainda sem experiência no assunto, casos e mais casos de pessoas que nos procuravam com problemas espirituais os mais diversos.

Ainda me encontro em processo de aprendizado. Do conhecimento espiritualista ao espírita, observei nexos fundamentais com a existência material dos seres humanos e disso jamais ousei me dissociar novamente. Por mais que desejemos libertar a humanidade de suas opressões objetivas, haveremos sempre de reconhecer nossa limitada condição humana perante o Universo. Em papo com um advogado noutro dia, que me relatava dos procedimentos e equipamentos materiais existentes para se prevenir mortes por chuvas e inundações, indaguei-lhe se, como homem de ciência, acreditava mesmo que era capaz de evitar uma destruição individual, ainda que todo o coletivo estivesse comprometido pela força da natureza. Ele insistiu em sua defesa de que era possível e não deixo de considerar que tem sido o grande desafio humano desde o seu surgimento no planeta, com avanços consideráveis em diversas frentes, mas que o individualismo e o capitalismo enfraquecem essa tendência, ah, disso não tenho dúvidas. Se, de fato, toda a tecnologia alcançada for capaz de prevenir vidas de grandes catástrofes, ainda assim, só o fato de seu acesso ser determinado por quantia financeira relevante e inacessível à maioria, depreende-se que reduzimos nossa fé e nossa vontade de potência como um todo. Logo, a natureza, soberanamente, há de corrigir tamanha pretensão do Deus Capital.

A lógica maior da Espiritualidade Superior se posiciona a favor da cooperação e do entrelaçamento entre os seres e suas respectivas capacidades e necessidades vitais. Não há capacidade individualista extraordinária se o conjunto da espécie humana (e mesmo o conjunto maior dos seres vivos) se enfraquece espiritualmente com a lógica do capital-acesso para poucos. Trata-se de um engodo ideológico vendido como solução que vem sendo comprado pela maioria à custa de profundo e crescente mal-estar. Para mim, é nítido que a violência é originada do instinto animal de sobrevivência mas é superpotencializada pelo errôneo cultivo da competição ególatra, que relega ao perdedor a condição subumana de existência enquanto ao vencedor do direito de comer ao de ostentar todos os luxos e desperdícios. Guerras, misérias, autoritarismo, barbáries, invejas e ciúmes só atrasam nossa evolução, de maneira que a prática do cultivo às disputas mesquinhas tornam-nos mais próximos da autodestruição, que nunca é individual, pois afeta a todos que nos cercam, não apenas as famílias e amigos, mas o imaginário coletivo e as forças da natureza também.

O anarco-espiritualismo, como ideologia libertária, não contempla a necessidade de comandantes poderosos a conduzir a Verdade e a Essência do mundo de forma egoísta. Não adianta ser de esquerda ou de direita, do partido A ou do partido B, se as práticas se reduzem a disputas por vagas no comando do aparelho estatal do capital e do acesso da minoria às benesses do privilégio. Temos que pressionar o Estado para destituí-lo de seu sentido originário de promoção da amenização ou do acirramento de desigualdades sociais provocados pela propriedade privada. Nenhum governante pode ganhar mais que um professor, que um médico, que um bombeiro, que um lixeiro. A corrupção tem que ter pena de morte. Ah, você vai dizer: “mas matar, pode?”. Eu digo: “pra fazer justiça social, pode ser possível que sim. Por que milhões devem ser obrigados a obedecer e a sustentar um com tanto que não terá vida suficiente para gozar do tanto?”. Nenhum banco ou especulador pode existir, quiçá acumular para si, 51% de tudo que é arrecadado em impostos federais. Não pode. O Estado, tal como está, tem que ser redimensionado sistematicamente até a plena capacidade de organização local das atividades produtivas, que deverão servir obrigatoriamente ao sustento de todos no que for precípuo à vida (comida, moradia, vestimenta, saúde, educação e lazer). Tudo que hoje vive de competições individualistas deve ser aniquilado a pó, sendo sua atividade precípua redirecionada ao bem-estar social. Todo o sentido de felicidade individual será permitido, sendo o homem contido apenas no seu acúmulo material e na sua pretensão de domínio. Temos que conhecer melhor como funciona a Lei de Causa e Efeito da Espiritualidade Superior (ou o “colhe-se o que se planta”) e parar de apenas falar por falar de Jesus Cristo, passando a exercitar seus ensinamentos, e assim conseguirmos nos livrar da fome, da depressão, do desespero, do complexo de inferioridade, da insegurança íntima e da violência em todas as suas formas de expressão, o que vem proporcionando catástrofes mais do que suficientes. Simplesmente insuportáveis.

Hoje, usam-se drogas em busca do refúgio temporário em um mundo mais contemplativo, harmônico, encorajador. Um mundo menos cheio de dores constantes. Imagine quando forem as drogas absolutamente desnecessárias porque não conviveremos mais com as dores das concessões indesejáveis e cotidianas, exigidas em tonelada?  Aguardo e planto a felicidade destes novos e utópicos tempos, não os limitando apenas à beleza da retórica, mas à felicidade da ação cotidiana. É o mundo competitivo e, por tal, autodestrutivo, que nos impôs a insatisfação existencial expressiva da contemporaneidade e, por consequência, a necessidade de sublimá-lo com estupefacientes de todos os tipos e para todos os gostos, liberados ou proibidos pela lei. A insatisfação humana é, de fato, permanente e pertinente a todos os sistemas e épocas, mas o que vemos hoje é gritante e assustador, caracterizado, sem exagero, como mal-estar coletivo e individual profundo. O consumo de drogas, como está colocado hoje, com todas as suas nuances, reflete este fenômeno social consumista pouco ou nada reflexivo. Pouquíssimos profissionais de saúde ou de segurança pública são capazes de apontar o dedo na verdadeira ferida, optando por paliativos de tratamento ou de repressão individual.  

Convido o leitor a aprimorar nossa trajetória mundana.