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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Origens e desafios históricos do Núcleo Barreto

Para falar do projeto de rádio comunitária que ajudei a construir no bairro do Barreto, Zona Norte de Niterói (RJ), em 2001, e que completa, neste ano de 2011, DEZ anos de fundação e existência, preciso me reportar às razões anteriores que impulsionaram diversos moradores daquele bairro à necessidade de um veículo de comunicação alternativo. Em síntese, o processo histórico de lutas comunitárias, a minha participação política que se iniciava enquanto adolescente do bairro, o projeto de sociedade alternativa que idealizávamos em grupo, a necessidade de um veículo que difundisse livremente nossas opiniões e anseios, a concretização do sonho, dificuldades e obstáculos enfrentados, conquistas coletivas e, por fim, os rumos que me levaram a compreender que era hora do meu afastamento.

Sem dúvida alguma, um dos maiores projetos que realizei na vida, verdadeira revolução no meu jeito de pensar e agir, e também relevante contribuição à história da periferia e do município que merecia um livro à parte. Um “post” no meu blog é pouco, pouquíssimo, quase um suspiro de tudo o que rolou. Talvez, um dia, a Rádio NB FM seja reconhecida a este ponto mas, para tal, mais ou menos como tudo que é genial e significativo na civilização judaico-cristã, será preciso a morte de todos os que dela participaram. E tempo, muito tempo. Reitero que, apesar do meu afastamento definitivo do projeto há cerca de cinco anos, sempre nutri a ideia de que a obra coletiva à comunidade pertence, não alimentando mágoas, rancores ou apegos pessoais quanto aos rumos que tomaram os que nela prosseguiram. Isto é mais importante do que qualquer sentimento ou episódio que narrarei aqui, concordando ou discordando cada qual de cada ponto. Espero não cometer injustiças. Fato é que a experiência desta rádio comunitária mudou minha vida e a vida está aí para ser vivida.

Pois bem, o ano de 1996 marcou minha iniciação na preocupação com causas coletivas. Com 16 anos de idade, eu não suportava mais ver (e muito menos fingir que não vejo o que ainda existe e é assustador pelo comodismo, pela ignorância e pela sensação idiota que o nosso povo ainda tem de que está se dando bem individualmente com o desatre coletivo!) as atrocidades e as inconsequências cotidianas das injustiças do mundo capitalista. O “sistema do mal-estar coletivo e individual profundos”, como mais tarde o cunharia, é muito mais nocivo quando vivido na condição periférica do terceiro mundo. Pior ainda se, dentro de tamanha desigualdade social cultivada no terceiro mundo, o sujeito toma a consciência de si e para si do quanto faz parte da coisa,  que tudo isto é fabricado e planejado, aproveitado e reaproveitado, naturalizado e reduzido incessantemente como se nada pudéssemos contra. Ao sujeito das periferias, diante de tudo, só resta a resignação ou a criminalidade. Ambas suicidas e genocidas. Meu grupo de amigos de infância, graças a Deus, acreditava numa terceira possibilidade.

Ouvíamos Raul Seixas, Cazuza, Legião Urbana, Paralamas, Iron Maiden, Alice Cooper, Ozzy, etc., etc., etc. O rock´n roll nacional e internacional nos alimentava questionamentos, reflexões, críticas e mudanças de atitude. Aquilo fervilhava na cabeça com muito álcool,  cigarro e nenhuma outra droga (na época e na nossa faixa etária, isto ainda era possível mesmo na periferia). Olhávamos o nosso redor e não aceitávamos a coisa pública abandonada como natural. Era como se nos sentíssemos afetados por uma surra ou por uma mãozada na própria bunda de quem a gente nem conhecia ou contra quem nem tinha feito nada. Comparávamos a situação de nosso bairro à situação da zona sul niteroiense e quanto mais presenciávamos a ostentação e o luxo de lindos condomínios, de obras e equipamentos públicos em permanente manutenção, a sinalização perfeita e o asfalto pintado, as áreas de lazer e as casas de show (tudo por lá, é óbvio), mais queríamos entender por que o Barreto era o local do cemitério municipal, do hospital de tuberculosos, das calçadas e ruas esburacadas, das enchentes violentas, do comércio decadente e dos imóveis históricos, dos velhos tempos de vila operária, abandonados. Muitos da Zona Sul achavam (e muitos ainda acham) que o Barreto pertencia (ou pertence) a São Gonçalo, cidade vizinha economicamente mais pobre, e esta percepção soava aos barretenses como preconceituosa. No fundo, no fundo, um preconceito também dos barretenses contra os próprios vizinhos gonçalenses. Mas o fato é o que o Barreto pertencia (e pertence) a Niterói, pagando elevado pelo IPTU não correspondido da cidade. E que os conterrâneos da Zona Sul também não conheciam nada (e, talvez, muitos ainda não conheçam) sua própria cidade por completo. Muito menos a cidade vizinha, o que os levavam (ou ainda levam) a uma segregação urbana inacreditavelmente preconceituosa.

Neste clima, a Associação de Moradores do Barreto, por volta de 1996, estava praticamente desativada. Alguns moradores e o meu grupo de amigos estavam interessados em reativá-la. Queríamos reivindicar e realizar muitas coisas no bairro, ressaltando aspectos positivos de sua história, de seu patrimônio, costumes e moradores. Chamar a atenção do poder público, denunciar a segregação sócio-espacial dos investimentos públicos da Prefeitura de Niterói, construir e/ou preservar elementos cruciais da identidade comunitária. Na associação de moradores, uma entidade aberta a todos os moradores por força de seu próprio estatuto, esbarraríamos na necessidade permanente de ter a maioria dos votos de quaisquer moradores, mesmo os “bem pagos”, sempre que tentássemos aprovar um projeto coletivo. Enquanto esteve desativada, assim como toda a classe política “eterna” (familiar, tradicional, hereditária, aristocrática) da Província Fluminense desejava manter, ninguém comparecia nem puxava reuniões. Quando passamos a fazê-las, percebemos que logo poderíamos encontrar resistências e por tudo a perder. Antes de encontrar claques (plateias arranjadas, pagas por algum político) prontas a abafar nosso movimento, tivemos de buscar alternativas.

Entendemos, primeiro, que deveríamos nos organizar melhor. Constituímos, então, o NÚCLEO BARRETO – GRUPO DE FORMAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL – já no mesmo 1996. Não éramos institucionalizados ainda. Informalmente, reuníamos um grupo na casa de um, na casa de outro, na praça ou na rua. Todas as necessidades e soluções para o bairro eram levantadas e discutidas paralelamente à associação de moradores, a qual participamos até compreendermos que era melhor garantir a autonomia de realização do grupo que ficar em longos embates com quem teria o mesmo direito ao voto na associação, estava afim de atrapalhar e poderia por em risco a concretização dos nossos sonhos. É um princípio dos libertários, o de romper com coletivos formais (instituições coletivas) quando acabam asfixiando a coletividade de propósitos desejados, aquilo que estava sendo executado. Nesta época, nem tinha noção do que havia de profundidade ideológica no nosso feito. Não havíamos estudado o anarquismo ainda mas já sabíamos bem o que queríamos. E ninguém iria sacanear nossas ideias para manter o status quo da cidade, este sim extremamente indesejável.

Lembro-me que um dos questionamentos mais corriqueiros das pessoas era quanto à nomenclatura “NÚCLEO”. “Mas... por que ‘núcleo’?”, perguntavam. “Núcleo de quê? De alguma organização internacional ou nacional?”, indagavam os mais curiosos. Respondíamos que éramos um núcleo que não era representativo de nada mas de si mesmo. Não estávamos vinculados a partidos políticos nem a organizações terroristas, nada a mais que nós mesmos do Barreto. Decerto, alguns de nossos membros – não todos – eram filiados ao PT. Mas o “Núcleo do Barreto do PT” tinha outra funcionalidade, outra organicidade, outra atuação destacada. Como eu também integrava o núcleo petista, não posso deixar de assumir que havia sim o desejo de que todos do NÚCLEO BARRETO – GRUPO DE FORMAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL - se filiassem e participassem do “Núcleo do Barreto do PT” (estratégia até hoje utilizada pelos partidos de esquerda para se aproximarem de pessoas independentes). Mas isto não ocorreu, nós também crescemos em insatisfação com o partido e o próprio núcleo petista viria a se dissolver. Todos os seus membros se decidiram pela desfiliação coletiva do PT em 1998.

O motivo? Algo que perpassava uma questão local e que também se refletia nas questões estadual e nacional: nossa oposição ao “eterno” governo do PDT em Niterói, somada com a crescente (e indesejada) adesão do PT local e ao desastre que foi a direção nacional do partido (na época, o presidente nacional era José Dirceu) intervir no diretório estadual do RJ, quando este, por decisão soberana de seus filiados, apoiara a candidatura de Vladimir Palmeira para governador. Em nome da aliança Lula/Brizola em 1998, o PT do RJ tornava-se obrigado a apoiar o então candidato a governador Garotinho, indicando como vice Benedita da Silva. A história mostraria, tempos depois, que estávamos certos. Este episódio foi o ápice da insatisfação do “Núcleo do Barreto do PT” também, que já se incorporava à frente de esquerda “Reage PT” e ao “Coletivo de Ambientalistas” dentro do PT de Niterói, quando decidiu pelo rompimento. No nosso caso, o grupo independente foi quem cresceu e prosperou, institucionalizando-se mais tarde, mais precisamente em 2001, quando tornamos o NÚCLEO BARRETO – GRUPO DE FORMAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL – na ONG NÚCLEO BARRETO – Associação de Formação Social, Cultural e Ambiental do Barreto.

A formalização enquanto ONG atendia plenamente o que precisávamos para concretizar um veículo de comunicação comunitário mais eficiente que os diversos jornais, panfletos e boletins impressos do grupo. Poderíamos nos adequar melhor para receber recursos captados oficialmente, tanto do poder público quanto da iniciativa privada, desenvolvendo e divulgando outros tantos projetos de intervenção cultural. Além disso, estaríamos devidamente protegidos pela composição dos sócios, evitando a ingerência de políticos locais como acontecia numa associação de moradores. A ONG NÚCLEO BARRETO foi fruto de um amadurecimento político quanto à realidade da comunidade, do país, nossa (a financeira do grupo constituinte) e de estudos que levaram um ano entre discussões, levantamentos e sugestões várias para que pudéssemos levar adiante nossos objetivos históricos. Não constituímos uma ONG para que ela fosse a razão de ser do nosso movimento espontâneo mas sim seu braço institucional, seu suporte jurídico e sua forma de lidar com um mundo que nos exige determinadas formalidades para permitir a materialização das coisas vislumbradas.

Sendo assim, seria de vital importância o caráter participativo e inclusivo de nossas intervenções na comunidade. Em regime exclusivo de voluntariado por muito tempo, perseguindo com insistência a efetivação de projetos sociais elaborados, que previssem a contratação e a remuneração por serviços prestados anos depois das primeiras ousadias, desdobramo-nos em mutirões, doações, empréstimos pessoais, permuta de imóveis cedidos e muita dedicação de quatro diretores e um  corpo de quase cento e cinquenta sócios. Os diretores eram Igor Martins, Fernando Calado, Marcelo Silveira e Rodrigo França. Mais novo do grupo, eu tinha 21 anos de idade na época.



CONTINUA NO PRÓXIMO "POST"

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