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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 14 de maio de 2011

A TV Comunitária de Niterói e a Radiola na Praça

No último “post”, prometi abordar o começo de minhas aventuras na Rádio Comunitária Núcleo Barreto (ou NB). Vou tratar disso em próximas oportunidades. Em tempo, não poderia deixar de falar de duas iniciativas fascinantes que rolaram ainda nos tempos de estudante na UFF e que colaborei entusiasmado em seus primórdios: A TV Comunitária de Niterói, canal 14 da NET na cidade, e a Radiola na Praça, veículos democráticos com formatos diferentes do habitual que refletiam (no caso da TV, que ainda está rolando, refletem) o desejo dos movimentos sociais de se fazerem ouvidos de verdade, sem as restrições ou armadilhas impostas pelos interesses políticos e econômicos covardes dos proprietários da grande mídia.

Considero ambas as lembranças importantíssimas, tanto pelo que presencio nas emissoras de TV e rádio comerciais em voga, quanto pelo que se noticia de episódios recentes envolvendo a Praça de São Domingos.  
   
O ano era 2000. Maurício Viviane e Eliane Slama formavam um casal revolucionário de postura bastante polêmica dentro da universidade. Maurício havia estudado Cinema em outros tempos mas não havia concluído a graduação. Criou uma produtora de vídeo (a TV Caos) que se incumbia de documentar diversas ações de movimentos sociais no país ao longo dos anos 90, uma tarefa que, ao meu ver, sempre foi digna de louvores. Eliane Slama, sua esposa, era (e ainda é) servidora técnico-administrativa da UFF. Na época, diretora do Sindicato dos Trabalhadores da UFF (o SINTUFF), sempre sensível e presente às demandas apresentadas pelo movimento estudantil local e pelos movimentos sociais do mundo. Parece-me que se candidatará às próximas eleições do sindicato neste ano.

Por mais que se discorde de métodos ou avaliações dos dois, ninguém pode deixar de respeitá-los pela ousadia e pela sensibilidade com que conduziram suas empreitadas por onde passaram. Aqui lhes rendo minhas homenagens. Maurício sempre esteve certo quanto à necessidade que os movimentos sociais têm de veículos de comunicação que lhes registrem as verdadeiras intenções. Pela conscientização política hoje, pelas revoluções sociais que almejamos e pelo registro histórico que amanhã servirá de debate aos que procurarem compreender o que pensamos, o que tentamos e o que fizemos em nosso tempo e espaço de ação coletiva.

A TV Comunitária de Niterói implementou inovações estéticas e de conteúdo significativas, ainda que os recursos fossem parcos e a disponibilidade de voluntários menor ainda. No começo, era difícil uma sede, equipamentos apropriados e profissionais da área de comunicação social que se dispusessem a colaborar, ainda que a Direção do Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS) da UFF da época fosse a primeira a permitir a utilização de uma de suas salas e algumas máquinas para os primeiros programas. Saudações aos professores Antônio Serra e Sérgio Santeiro por significativo empenho em um tempo em que discordávamos politicamente de uma série de posturas internas na UFF. Tiveram a sensibilidade de permitir o contraditório e, por tal, já merecem nossas honrosas recordações. Não é coisa que se vê em qualquer professor universitário por aí...

Lembro-me, por exemplo, das gravações na Praça Arariboia, onde fui diversas vezes repórter que entrevistava pessoas ou mediava debates em plena praça pública. Assim como eu, Rodrigo Santarossa, Fabiano (sempre polemizando com seu próprio partido, o PSTU, à frente do DCE), o próprio Maurício Viviani, a Eliane, Luisinho (estudante da Produção Cultural, hoje servidor da MultiRio), estes últimos já se revezando entre a condição de cinegrafistas, editores e repórteres.

Na verdade, uma característica do Maurício (não à toa, certamente a superação da divisão social do trabalho capitalista na prática) era promover o conhecimento e o revezamento de todas as etapas de produção entre todos os membros voluntários. Assim, quem fosse repórter um dia, aprendia e assumia funções de filmagem no outro e assim por diante. Difundir o conhecimento e compartilhar de funções variadas sempre evitou dependências e hierarquizações de indivíduos nos movimentos sociais, uma crítica que os libertários sempre produziram mas que, de uns tempos para cá, acabaram perdendo legitimidade, sobretudo quando carecem de uma proposição alternativa como a citada ou quando não exercitam a práxis destas mesmas alternativas que apontam. Observem como se construía a TV Comunitária e a Radiola na Praça, sempre atentas à participação horizontal compartilhada de atores e público nas intervenções causadas. Nem por isso, por arroubos e contradições, deixamos de ser acusados de vaidade, personalismo ou aproveitamento inadequado da coisa pública.   

Cabines de vídeo eram instaladas na praça, onde o cidadão comum tinha o direito de se expressar livremente por um minuto numa cabine fechada em que tinha ele, um banquinho e uma câmera, sobre o que lhe afetasse o juízo. Diversos artistas sem mídia, moradores de Niterói, profissionais de várias áreas e membros de movimentos sociais da cidade receberam destaque, foram entrevistados ou se apresentaram na programação sem cortes temerários quanto ao conteúdo.

Lembro-me do candidato a prefeito pelo PRONA, antigo partido do Enéas, vereador e delegado Renée Barreto, ter fugido de um dos debates que havia confirmado presença e seria realizado na Praça Arariboia. Pouco antes de começarmos, recebemos a notícia de que o candidato estava fazendo corpo-a-corpo em frente ao Terminal Rodoviário João Goulart no horário do debate. Logo ali ao lado, na barba da produção! Rodrigo com a câmera e eu com o microfone fomos imediatamente ao local tirar satisfações do candidato. Prontamente, ele nos atendeu e tentou se justificar numa tremenda saia-justa.

Este grupo, mais tarde, iniciaria outro projeto na Praça de São Domingos: a “Radiola na Praça”. Inspirada no modelo de radiolas de São Luís do Maranhão, a proposta consistia em garantir um equipamento de áudio na praça, semanalmente às noites de terça-feira (lembro que alteramos os dias da semana em alguns momentos, de acordo com a conveniência do público), que pudesse tocar sons gravados sugeridos pelo povo na hora (o sujeito trazia seu CD e entrava com sua proposta numa fila de sugestões, um modelo que chamávamos “música por demanda”). Um locutor apresentava a radiola como se estivesse em um autêntico programa de rádio comum e ao vivo, onde também eram apresentadas bandas alternativas, poetas, pensamentos e debates rápidos. Criávamos assuntos, levantávamos questões, informávamos eventos e provocávamos conscientização política, jamais deixando que apenas as músicas rolassem sozinhas. No começo, sempre de improviso, eu fazia a locução. Depois, para que evitássemos acusações de personalismo, Luisinho passou a realizá-la. Os ambulantes eram os nossos maiores patrocinadores enquanto os comerciantes, tomados por ódio da concorrência que começava a se instalar com suas barraquinhas na praça, queriam mais era nos ver pelas costas. Bêbados dançavam na frente do palco que era ao nível do chão, demonstrando que estávamos prontos para a ausência de hierarquia. Muitos tomavam o microfone e intervinham. A Barraca do Primo nos cedia o ponto de luz e o casal que mantém, até hoje, sua barraca de lanches na outra extremidade da praça, nos custeava x-tudo e cachorro-quente como apoio cultural. Outros, cerveja. E ainda outros, cinco reais. Os comerciantes, nada. Quando muito insistíamos, o Tombadilho ou o antigo dono do Pardal (hoje Bar Gay), também cediam uns cinco reais. Uma parte do equipamento era alugada e transportada com recursos próprios, o que arrecadávamos nunca era suficiente.

O incrível é que não presenciávamos brigas constantemente nem ninguém vinha querendo dar tiro, matar alguém na praça. Não me lembro de um público selecionado, de artistas, intelectuais e remediados que gravitassem em torno da UFF apenas. Lembro-me de gente muito pobre e humilde, de marginais e intelectuais convivendo, como toda boa praça pública sem grades deve ser digna de receber. O que acontece hoje é fruto da época atual, onde o egoísmo prevalece em tudo, até na universidade que deveria zelar pelo contraditório do pensamento único hegemônico, pelo menos na cidade em que está sediada. Não há local isento de violência quando a sociedade como um todo se encontra doente de egoísmo. Segregar/reprimir é ilusório e temporário sempre, pano que abafa mas não resiste aos enormes traumas que cria. Nossa proposta de comunicação era também uma proposta de envolvimento e convivência com os dramas que afligem nosso povo, buscando dialeticamente aprender e ensinar acerca das soluções cabíveis. Vejo que alguns setores da grande mídia vêm paulatinamente reconhecendo esta necessidade, menos pelo amor ao próximo (necessário, primordial, única saída para os dramas sociais) e mais pelas dificuldades cotidianas que a corrosão do tecido social vem causando a todos, com doses elevadas de depressão, insegurança íntima e violência.

Muitos exemplos de aplicação dos métodos de aproximação  e identificação dos sujeitos com sua realidade concreta, essência que constitui a razão de ser das mídias alternativas, já podem ser vistos na grande mídia, como os programas sobre a periferia da Regina Casé ou o quadro “Parceiros do RJ”, apresentado pelo RJ TV, ambos da Rede Globo. O que não existe – porque não é propósito das grandes mídias alcançar - é a aproximação e a identificação com lutas, utopias e sonhos alternativos ao câncer social do capitalismo. Eis a segunda razão de ser, intrínseca aos movimentos de comunicação independentes, que jamais poderão abordar uma greve ou um protesto democrático como “criadores de dificuldade para o trânsito de veículos automotores”, por exemplo.                 

Tanto a TV Comunitária de Niterói quanto a Radiola na Praça surgiram com ambos os propósitos: 1) Olhar e abordar o povo como ele é e sem inculcar na cabeça ideais consumistas de vida, moralistas ou padronizados por reprodução de estrangeirismos, inalcançáveis à maioria ou alcançáveis apenas ao custo de métodos criminosos e da hipocrisia nas relações;  2) trazer nossa população para a consciência do absurdo em que naufragam milhões de vidas submetidas à exploração de poucos, ou seja, que há uma razão maior para tamanhos retrocessos históricos no respeito às diferenças e ao próximo. Que esta razão se acomoda sob construções mentais patrocinadas por covardes. E que tudo isso não é natural e sim uma opção política construída coletivamente.

Espero que, um dia, sindicatos, partidos de esquerda, ONGs, libertários, associações de moradores, associações de classe e todos que lutam em instituições sérias e inspiradas pela mudança do paradigma “dominadores X dominados” possam se juntar e financiar projetos ousados de comunicação alternativa acima de suas peculiaridades e interesses mais imediatos. Por uma causa maior, a luta anti-capitalista, a necessidade de conter o câncer social deste modelo econômico que não se sustenta sem mal-estar profundo, todas as entidades e indivíduos com capacidade de financiamento deveriam se unir, reivindicar concessões públicas de TV e de rádio e estruturá-las de verdade, debatê-las e planejá-las a fundo, quanto aos propósitos, aos conteúdos, às abordagens e às estéticas. No dia em que tivermos um canal de televisão não-estatal aberto, dirigido e financiado pelo conjunto dos movimentos sociais revolucionários, bem trabalhado e atraente, apresentando cotidianamente ao povo nossa visão de mundo sobre todos os acontecimentos e temas da vida social, certamente teremos uma sociedade mais saudável. Nossas lutas serão mais legitimadas e nossos governantes, se continuarem existindo, ainda sim, serão outros. Menos herdeiros do poder, aliviando nossa república de ser tão monárquica.

O que não dá mais é falar para poucos quando os nossos inimigos falam para muitos. Todo dia, suas versões dos fatos sociais, selecionados entre o que se pode ainda citar, são repetidas nas esquinas, nos locais de trabalho, nas escolas, nos órgãos públicos e até nos movimentos sociais. Vejo uma tendência desigual para o tratamento de desgraças e não acho que isto seja apenas “reflexo da realidade em que vivemos” ou “porque é o que dá audiência, é o que o público gosta”. Onde há espaço para o contraditório? Que democracia é esta? Será que não há uma propaganda generalizada da insegurança íntima? Será que isso não é interessante para os covardes e suas covardias - mais gente frágil, mais gente com medo, mais delatores, mais individualistas? É por essas e outras que nem lideranças políticas novas emergem, sobram herdeiros em todas as áreas profissionais que não largam o osso e nem sei se são tão competentes assim como se carregassem excelência no sangue. A comunicação de massa é flagrantemente nazi-fascistoide. Que fazer? Na hora que o Governo Dilma começar a discutir concessão pública de canais de TV e rádio, essa turma poderosa que já acusa tentativa de censura pelo governo e tenta reduzir o debate, não terá alternativa nem concorrência entre o seu próprio modelo privado e o modelo estatal.
 
Cadê nós?        

Um comentário:

  1. Valeu apena Calado! Tanto as intervenções feitas na Praça de São Domingos, quanto a prisão pela polícia e a ocupação do Gogó da Ema, Belford Roxo junto ao MTD. Hoje alem da saudade existe a comunidade Carlos Lamarca - Belford Roxo...fomos sujeitos desta história. Abração irmão!
    Manoel Evangelista.

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