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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 7 de maio de 2011

A SENZALA e o costume docente de escravização estudantil

Em maio de 2001, há exatos 10 anos, nós, os estudantes do ICHF-UFF, fizemos uma ocupação diferente no canteiro em frente aos blocos O e N do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da UFF. Aproveitávamos o 13 de maio, data lembrada pela abolição da escravatura assinada pela Princesa Isabel em 1888. Dessa vez, optamos em não permanecer acampados. Resolvemos instalar uma tenda, um telão e promover manifestações por uma semana, aproveitando-se do hábito que se criou em torno dos palcos livres no Tablado Leandro Konder. A esta ocupação chamamos de “SENZALA”.

Era uma referência à data histórica mas também uma analogia contemporânea à relação entre professores e alunos na UFF, sobretudo ao exercício costumeiro do patrimonialismo no uso da oferta e seleção para contemplados em bolsas, na contratação de estudantes em espaços privatizados da universidade e também na manipulação de interesses políticos junto ao movimento estudantil. A proposta da SENZALA era denunciar que estávamos nos tornando escravos, ainda que remunerados (ou precariamente remunerados), o que levantou questionamentos conceituais à época, já que “escravo”, conceitualmente falando, não é condição de trabalhador que recebe qualquer remuneração pelo seu serviço. Mas a denúncia abordava o vínculo ideológico e pragmático entre professores-senhores e estudantes-escravos que estava subentendido à contemplação com bolsas ou contratos temporários na universidade, algo mais próximo da lógica patrimonialista que corrompe as relações entre servidores públicos e cidadãos diante do que a lei prevê para o uso democrático e igualitário do patrimônio público. Favorecimentos pessoais, conchavos, desvios ou privatização de atribuições e finalidades no serviço público, as formas mais comuns de manifestação do patrimonialismo brasileiro, também eram (e ainda são) praticados na academia brasileira e o escandaloso é que determinavam (e ainda determinam) desde rumos tanto do movimento estudantil, do movimento sindical, quanto da pesquisa científica e do ensino desenvolvidos pelas universidades públicas brasileiras.   

Sempre questionei – e não era o único - o excessivo poder dos professores na estrutura de funcionamento da universidade. Só eles podem se candidatar e se eleger aos cargos de chefia e direção dos órgãos executivos universitários (chefia de departamento, direção de instituto e de centro, reitoria). Por tal, ganham gratificações e comissionamento em seus salários. Nos cargos colegiados (consultivos ou deliberativos de normas internas), possuíam a prerrogativa de mandatos biônicos (quem já era diretor de centro, por exemplo, tinha cadeira cativa no conselho universitário) e o peso desigual de 70% das vagas, enquanto os outros 30% eram divididos entre servidores técnico-administrativos e estudantes. Não há remuneração a mais para docentes ou servidores que integrem mandatos nos órgãos colegiados, assim como os representantes estudantis são voluntários, ou seja, não recebem nada.
Não sei como está agora, já me disseram que, com a última reforma estatutária, houve a garantia da paridade representativa (as três categorias – docentes, discentes e servidores técnico-administrativos - têm hoje o mesmo peso).

Se assim vem sendo preenchido e efetivamente cumprido, trata-se de um avanço em relação às lutas que travávamos em 2001. Mas a qualidade da atuação política ainda é, sem dúvida alguma, comprometida pela omissão ou complacência da maioria dos estudantes. E uma das razões se situava – não sei se ainda podemos afirmar o mesmo nos dias de hoje -  justamente na relação, digamos, promíscua entre as condições subliminares (ou até objetivas) impostas por professores inseguros para o sucesso de seus próprios alunos na carreira acadêmica. Refiro-me a histórias de perseguições conhecidas ou veladas que fincam os tentáculos patrimonialistas nas avaliações corriqueiras de trabalhos acadêmicos, perpassam a oferta de bolsas e contratos temporários, a seleção de bolsistas e de novos professores por concurso público, chegando até a descartar inovações ou rumos importantes da pesquisa científica para a sociedade que nos financia. Isto perpetua, por exemplo, o expurgo de gênios e obras revolucionárias nas ciências, algo que costumamos atribuir apenas a caprichos de tempos remotos e autoritarismos passados, mas que se torna presente não tanto de fora para dentro quanto se manifesta, muitas vezes, de dentro para dentro da academia.

Afirmo seguramente que sacrifiquei minha passagem pela academia por propor, denunciar e fiscalizar costumes patrimonialistas na universidade que tanto amei e defendi pública, gratuita e de qualidade. Ora, se só vai ter bolsa, nota, contrato ou aprovação em concurso público, aquele que agradar ou atender interesses particulares de professores, a universidade se nivela por baixo, fica comprometida pelo que ensina a criticar e a transformar na sociedade, torna-se aristocrática e reprodutora de heranças equivocadas e injustas, descumpre a lei e os princípios democráticos, extermina diferenças, perde moral. Na minha avaliação à época, caminhávamos para uma fábrica de diplomas que em nada se diferenciava da qualidade das instituições privadas.  

A proposta da SENZALA aconteceu em meio a uma percepção empírica que tive quando percebi que não bastava me opor e criticar nossos governantes, sem dúvida alguma parceiros e patrocinadores de privatistas e desagregadores das instituições públicas, sem apontar e cobrar quem são os seus aliados, os seus adesistas que não se contentam ou temem mesmo o status quo com a estabilidade dentro do funcionalismo público. Subservientes com garantias diferenciadas no mercado de trabalho do país? Nunca aceitei professores que rejeitam alunos por elaborarem críticas ou propostas inovadoras, aquelas que seu intelecto conhecia ou intuía ou aquelas que nem sequer passassem pela sua cabeça, por pura vaidade, insegurança ou interesse político mesquinho. Estes se tornaram exemplos do que jurei não ser enquanto professor. Rechaçaram comentários, menosprezaram minha capacidade, negaram-me notas justas diante da turma, quiseram cassar minha representatividade enquanto estudante, negaram-me bolsas, tentaram oprimir convidados de semanas culturais organizadas, agendadas e autorizadas, mandaram recados por bolsistas de que estavam dispostos a tudo para me perseguir e assumiram até um jubilamento arbitrário, tendo que anulá-lo por recurso à PROAC, o que me conduziu de volta mas sem a mesma empolgação pela academia.

Talvez estes professores (que não são professores) contassem com a minha punição pelo mercado de trabalho, do qual não previa nem mensurava tamanho o laço de dependência ou subordinação às suas certificações. Isto sim, uma autocrítica concreta. Fui longe, dei aula por nove anos sem o diploma, virei lenda mas reconheço que isto me limita sobretudo pela impossibilidade de prestar concursos públicos na área. Sou fruto de um sistema completamente perturbado por governantes e profissionais inseguros, além de um povo individualista e moralista, indiferente ao que verdadeiramente lhe libertaria de suas próprias opressões. A escola brasileira ficou tão hostil aos bons professores quanto aos bons alunos, tornou-se uma instituição esvaziada de seu sentido originário, mantida mais por culpas moralistas da sociedade e necessidades financeiras de seu corpo do que pelo propósito de construir grandes cidadãos e excelentes profissionais. Quanta irresponsabilidade! Foram as brechas deste caos que me oportunizaram ser professor sem diploma ao mesmo tempo em que presenciei a evasão de diversos diplomados por divergências políticas, falta de pagamentos, salários aviltados, violência urbana e desinteresse de alunos. Muitos, aliás, tentam voltar para a carreira acadêmica, onde prorrogam um pouco mais sua existência nas bolsas de mestrado, doutorado, pós-doutorado, etc. É claro que tentei fazer o melhor mas, por diversas vezes, fiquei pensando: se formados e pós-graduados passam pelas mesmas condições humilhantes as quais enfrentei, que me adianta tamanho esforço? Parece que lutamos contra nós mesmos.

Como não conseguimos uma mínima identidade enquanto professores, como não nos respeitamos e nos afirmamos perante à sociedade à altura do que representa e necessita um bom professor, terminamos disputando migalhas na academia, procuramos um bom casamento de suporte ou mudamos de profissão.    

A SENZALA aconteceu em meio ao seguinte ambiente do ICHF: crise no departamento de História levava professores a acusarem-se mutuamente pela forma como ingressaram no próprio departamento. Alguns manifestavam oposição ao direito do estudante da graduação de se representar nas reuniões de departamento porque havíamos conquistado vitórias importantes. Vitórias contra propostas de privatização do espaço público pelos professores. Uma empresa júnior, de nome Analítica Consultoria, havia sido criada e instalada no ICHF pelos professores da Ciência Política. Fazia pesquisas de opinião, contratada por grandes veículos de comunicação privados. Utilizava-se do espaço físico da universidade e da mão-de-obra barata de alunos necessitados nas pesquisas de opinião mas os professores, além de restringirem ou omitirem satisfações à comunidade acadêmica pelas práticas, pelo custeio e pelos lucros da empresa “incubada”, pareciam exigir, de forma velada, determinadas contrapartidas dos alunos contratados pela empresa. Esta empresa acabou incorporada como órgão institucional da UFF – o Instituto DataUFF -, deixando ICHF e ganhando sede própria no centro de Niterói. Inúmeros foram os casos de bolsistas custeados por verbas públicas ou de contratados temporários como prestadores de serviço pela Fundação Euclides da Cunha (uma fundação pública de direito privado, criada pelos professores como de apoio institucional da UFF) que atuavam no lugar de servidores técnico-administrativos, em número cada vez menor pela ausência de concursos públicos.  Eu mesmo, certa vez, me surpreendi quando me deparei com um desafeto político, estudante como eu, trabalhando na secretaria do meu curso com acesso amplo, geral e irrestrito aos meus dados enquanto estudante. Conheci gente que fez graduação-relâmpago com direito a pacote que incluía bolsa de mestrado garantida, propostas sexuais em torno de seleção de bolsistas, dentre outros absurdos corriqueiros que desmerecem qualquer reconhecimento meritocrático.

A reunião do departamento de História com tamanhas revelações, digamos, íntimas fora filmada e gravada por um de nossos companheiros. Exibimos seu teor na íntegra em um telão montado na SENZALA no período noturno. Acontecia um Encontro Nacional de Estudantes de História no Campus do Gragoatá naquela mesma semana e muitos colegas que estudavam em diversas faculdades do país puderam assistir às cenas deprimentes. A área de História da UFF detinha, ao lado do grupo da USP, uma certa louvação por professores, pesquisadores e estudantes do país inteiro. Por tradição, os nomes mais famosos e renomados na área vinham da UFF ou da USP. Imagine a repercussão negativa que deu depois que colegas da área, vindos do país inteiro, assistiram ao vídeo com aquele professor famoso, que enchia a boca para falar de sua própria luta contra a ditadura militar, que escrevia tantos artigos de jornal contra o autoritarismo de setores da esquerda, defendendo que estudante não podia ter direito a voto, que estudante da graduação não pensa? Ou um outro, aos gritos, apontando para uma renomada professora: “vê lá, hein! Você sabe como foi que entrou neste departamento, professora!” Em seguida, a professora é vista se calando!? Inacreditável!

A SENZALA marcou História na UFF mas foi também a minha despedida. Assim que fui presenteado (este me parece o termo apropriado para uma expulsão arquitetada) com a minha “carta de alforria” da UFF, pude me dedicar a um projeto coletivo ambicioso: a rádio comunitária do Barreto, sobre a qual tratarei no próximo “post”. No ano de 2001, eu estava lecionando para a minha primeira turminha de 5a série em uma escola particular do Cafubá, Região Oceânica de Niterói, na condição de estagiário indicado pelo CIEE. Paralelamente estava trabalhando na Assessoria de Meio Ambiente da Presidência do CREA-RJ, montando uma rádio comunitária e uma ONG na comunidade em que havia nascido e sido criado. Foi um ano extremamente rico em experiências. Tornei-me espírita a partir dele e de vivências concretas com o outro plano. Certamente não era um bom aluno de História e não devia merecer ficar lá azedando a festa dos outros. Mais à frente, voltaria e tentaria cursar História sem o mesmo apreço  que sentia enquanto aluno em movimento no passado e, agora, professor por autodeterminação. Faria um novo vestibular para Letras – Português/Latim – e deixaria novamente em função de uma outra experiência riquíssima em Minas Gerais.

A primeira saída, em 2001, foi quando eu comecei a construir a História de meu tempo em outros ares, pois um libertário não se apega nem se cansa com as mais absurdas adversidades ou a mais tentadora proposta de coletivo eterno. Muda de estilo, muda de estratégia, começa de novo sempre, sabe reconhecer os limites de sua atuação sem rancores nem mágoas no espaço e no tempo. Tem muito o que fazer, ensinar e aprender, no mundo que não é dele mas precisa dele para ser melhor. Estamos em diversas frentes e não reivindicamos para nós, individual nem coletivamente, nem a posse material, nem a condução eterna de nenhuma das nossas obras pelo mundo. Isto nos diferencia dos capitalistas e também dos socialistas, faz de nós um pouco mais cristãos – pelo desprendimento e pela caridade - do que a média e ainda causa impactos que, revisitados no futuro, parecem ter logrado algum êxito.

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