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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Entre o conhecimento e a reserva de mercado

            A produção do conhecimento, como todas as demais atividades humanas, está submetida aos interesses de mercado. Isto quer dizer que nada que não sirva à lógica restrita do "vale o quanto vende", à lógica da mercadoria, é digno de resistir no mundo, nas conversas, no interesse cotidiano das relações nem muito menos às políticas públicas ou metas de desempenho privadas. Como consequência natural, sofremos de uma perda enorme de cérebros, ideias e inovações com tudo e mais um pouco para deslanchar a humanidade de sua parcimoniosa ignorância desesperadora. É o que acontece com tudo, não seria diferente com o método científico e a produção acadêmica de nossos tempos. Mas se podemos rever tal postura, por que não tentaríamos? Este é um desafio para os professores, para os libertários e a todos que, indistintamente da ideologia embasadora (obviamente alternativa ao capitalismo cristão), apostam que não ficaremos eternamente valorizando os mortos pelo que fizeram em vida quando, em vida, tratamo-os como malucos débeis, alucinados e desprezíveis.

               Podem me chamar de louco ou imbecil mas não vejo razoabilidade nas prisões conceituais a que somos submetidos para produzir conhecimento. Afora o interesse na preservação do direito autoral e, com ele, na restrição do acesso ao conhecimento, de que nos serve a obrigatoriedade das citações de autoria, as referências as quais temos de obedecer para tratar de qualquer diagnóstico banal? Pode-se argumentar que ninguém deveria plagiar ideias alheias, apropriando-se delas como se fossem inexistentes ou desconhecidas, e que, por tal, justificaríamos a necessidade de citarmos nossas referências bibliográficas sobre qualquer argumento. Mas será que, restringindo-se de tal maneira a abordagem sobre qualquer objeto de estudo, favoreceríamos a criatividade, a inovação, o salto qualitativo de que tanto necessitamos nas ciências em geral? Será que não estamos deliberadamente mais propensos a justamente repetir, copiar e acomodar olhares já sustentados no passado, reduzindo de tal maneira a capacidade dos sujeitos de elaborar livremente?


                 O exercício da crítica sobre as diversas leituras que acostumamos a lidar possibilita uma intuição viva e eloquente sobre rumos e propósitos que anda asfixiada pelo método científico. Refiro-me às leituras que se processam sobre os registros escritos mas também aos orais, aos iconográficos, aos sonoros, aos táteis, etc., da experiência alheia ou da própria, a vivenciada. 

                Por muito tempo, desconfiei do medo academicista de se expressar livremente. Minhas reflexões sempre misturavam duas tendências explicativas para o fenômeno: uma de foro íntimo dos pesquisadores e professores, atribuída a melindres oriundos de vaidade, carência e insegurança daqueles que alimentam os nossos debates para depois reprimi-los e enquadrá-los ao ponto de servi-los como bem lhes prouver. Outra explicação, esta mais sistêmica, tratava de nossa condição de colônia no cenário internacional. À medida que lutamos - enquanto sociedade - por melhores escolas e universidades, cederam-nos o direito de frequentá-las desde que não produzíssemos nada mais substantivo que a cópia autorizada pelas matrizes. Não sei lhe dizer em qual medida um fato determina o outro, vejo-os como suplementares. Ambos servem a um propósito comum: a pauperização existencial imposta pelo capitalismo, que reduz a existência de tudo que é rico em seu Ser, da poesia ao magistério, do amor à liberdade, da natureza à criação humana, a um valor único, universal e supremo: só existe se for capaz de se tornar mercadoria. Sem este valor, sem valor mais nenhum. E claro: só quem poderá lucrar com esta mercadoria serão os escolhidos por critérios personalistas, como os de berço esplêndido ou intimidades outras. O critério de mérito ou competência individual, como tanto apregoa o sistema, este é apenas propaganda ideológica, vendida como a razão suprema da lógica capitalista, que, para sustentá-la, serve de exemplos de exceções os quais assegura brechas de acesso. De resto, a regra é a mesma: os costumes nos remetem aos mesmos privilégios herdados daquela  nobreza parasitária que tanto a burguesia um dia derrubou para se firmar como hegemônica no mundo.

           Entendo que a ciência no Brasil, na América Latina, tem que superar sua fixação por se legitimar europeia ou estadunidense. As ciências humanas, então, estas que lidam com um objeto sem causa e efeito mecânicos e automáticos, deveriam ser as primeiras a ousarem. Só podemos interpretar da maneira que um francês, um alemão, um britânico, um italiano, um russo, um norte-americano, um dia ousou interpretar? Se são preciosas e prestimosas suas contribuições à humanidade, podem igualmente o serem aquelas que virão da liberdade de um cientista latino-americano! Este poderá concordar que a melhor forma de se expressar será através da escrita e de suas prisões cartesianas ou positivistas como também poderá simplesmente compor argumentações audiovisuais, pictóricas, escritas porém romanceadas, teatralizadas, enfim, dentre tantos e tantos exemplos e possibilidades de linguagem, o que achar conveniente. Sem ser reprimido, contido, tratado como desprezível, submetido em importância porque não se utilizou de uma tradição que virou obsessão pela legitimidade de se compor cópia da matriz.

             Particularmente, encanta-me a popularização do saber científico. Minha função enquanto professor é esta. Se o que estudo torna-se inacessível aos ouvidos e olhos de meus estudantes, o que estou promovendo pode ser rico e profundo porém restrito a um "gueto" e diminuído em importância por aqueles que deveriam justamente compreendê-lo. Se antes, quem não compreendesse um professor ou qualquer humano culto, ainda assim, tratava de respeitá-lo ao ponto de obedecê-lo, hoje, isto não ocorre como regra. O que se revela da relação é uma reação raivosa da parte de quem não compreende a relevância daquele conhecimento, podendo iniciar-se no desinteresse e extrapolar no desenvolvimento de mágoas, ressentimentos e violências. Para tal realidade, muitas vezes observada mesmo entre estudantes universitários, não basta que se xingue o desinteresse, a apatia ou manifestações aparentemente alheias ao que se pretende na academia, na escola ou na rua. É preciso envolvimento de todos e, desta forma como estão estruturadas e cristalizadas, as ciências que apreciamos com coquetéis em Paris têm servido mais ao comportamento de um europeu mediano, em seus usos e costumes, que a de um brasileiro. 

                  Temos um traço cultural místico que atribue um valor à estética, à sensualidade, à malícia, à magia, ao encanto da malandragem que encontra nas regras as próprias receitas para serem burladas. Estamos tentando civilizar e higienizar este povo à luz do parâmetro do hemisfério norte não é de hoje. E o que estamos obtendo desta empresa se não um baita complexo de inferioridade que determina e angustia o acesso de poucos às brechas proporcionadas pelo sistema das matrizes? Se denúncia ou levante deste porte já havia sido tratado pela Semana de Arte Moderna de 1922, com o seu "Manifesto Antropofágico", por que só o invocamos para enfeitar o pavão como algo restrito a uma época, a pensadores específicos, às artes ou a qualquer outra forma de reverenciá-lo à distância, quando deveria perpassar o nosso fazer cotidiano, nossas obras e nossos objetivos pedagógicos de revolução em todos os sentidos?

             A produção de monografias (ou trabalhos de conclusão de cursos) tem servido às pilhas de arquivos que sequer são catalogados, disponibilizados ao público ou consultados por pesquisadores. Há todo um ritual para sua confecção, um ritual que perpassa doutrinação do modo de ser, pensar e escrever dos estudantes que objetivam um diploma de graduação. Este ritual é potencializado nas disputas acadêmicas por bolsas de mestrado ou doutorado, transformou-se em gratificação por desempenho quando associado ao número de artigos publicados, vira desbunde quando narrado a partir de congressos e colóquios intra-castas. Ao fim e ao cabo, pouco ou nada servem ao que estes próprios estudantes exercitarão em seus respectivos ofícios, caso estes sejam, por exemplo, o destino da maioria no varejo das insanidades por um dinheiro qualquer. O sistema só avalia o quantitativo de trabalhos feitos para avaliar, sob outro número sem razão de ser, ou melhor, para inglês ver, a quantidade pela quantidade. Não precisamos seguir o que não nos serve mais. A não ser que o único objetivo, distante do saber, seja garantir alguma reserva de mercado a qual nem sabemos onde foi parar. 

          Boa pergunta: onde foi parar a reserva de mercado dos direitos autorais e das peculiaridades científicas? Pelo que venho observando, pode ser encontrada na repetição e na concordância aos doutos, na diminuição da crítica e da liberdade de expressão entre os pares. Vale mais o elogio da loucura que a própria, quando ela já difundiu mais valor à humanidade por seus feitos que toda a caretice reunida?

               Penso que não. Penso que um bom argumento pode se servir de conceitos alheios (quiçá anacrônicos!) pois o que mais importa é o argumento, a ideia, o exercício do pensamento, aquilo tudo que nos enriqueceu a filosofia para ser diminuído posteriormente pela economia política: a divisão social do trabalho, a mais-valia e as ciências especializadas a seu serviço. O pensamento restrito obedece a lógicas restritivas quando nossas demandas são infinitas, nossa capacidade de superação surpreendente e o que estruturamos de parâmetro está aberto à transformação. Acredito que, ao defender ideias já defendidas por outrem, ou mesmo ao aplicá-las a um caso concreto, preciso fazê-lo com a liberdade, o olhar e a argumentação necessários e próprios, fazendo valer o organismo vivo da minha existência e dos limites da mentalidade coletiva a qual pertenço. Sendo assim, jamais produziremos meras cópias. Não há que se temer o plágio do argumento ou conceito que encontra dialeticamente o outro. Há que se temer aquele que deixou de Ser por subtração contínua de sua potência. Este copia quem mata.                 

                           

                               

                  

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