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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O método científico como forma de controle das ciências sociais

                              "Os gênios são aqueles os quais   
                     nenhum professor conseguiu estragar."   
                                                                 (MOZART)




        Amo conhecer a História da Humanidade. Amo muito mais fazê-la acontecer em minha época, muito mais do que apenas passar por ela como estatística de boiada ou ficar esperando inevitavelmente o mundo acabar. Este amor foi construído por grandes professores que tive quando cursei os ensinos fundamental e médio, entre as décadas de 80 e 90 do século passado. Meu pai também tem sua parcela de contribuição, uma vez que me passou uma formação política substantiva, sempre associada a boas leituras do mundo. Eles me seduziram (no caso do meu pai, sem querer) para um curso superior que, infelizmente, não é (ou não é mais) o que eu achava que era. Pensava que estaria entre revolucionários anticapitalistas mas esta foi uma tendência que assisti a decadência: reduziu-se a partir do fim da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, há exatos 20 anos neste dezembro de 2011. Como os meus professores haviam se formado debaixo da porrada da ditadura militar ou do período de "redemocratização" nos anos 80, em que convergiam a euforia democrática local e os resquícios da Guerra Fria, tal reflexo se fez na minha formação e de boa galera que gira em torno atualmente dos trinta anos de idade. Não sei se ainda é assim mas tenho algo a dizer sobre o que o fim da ex-URSS trouxe de novo à produção historiográfica e ao ensino de História no Brasil. 

        Sim, nossos professores de História, aquelas figuras bem esquisitas e malucas (tirados como "sujos, cabeludos, mal-vestidos e inconvenientes"), de comportamento inquietante e politicamente engajado, cheias das críticas e das mobilizações coletivas por causas nobres, tornaram-se, em boa parte dos casos, pessoas de crítica ainda afinada mas com um novo limite, na prática, bem claro (além de mais arrumadinhos...): tudo está restrito a um discurso tão  prepotente o quanto raso da supremacia relativista que interessa no momento. Isto está se fazendo notar entre os alunos, entre a sociedade e é motivo de chacota das ciências exatas e dos donos do poder. Alguns dos novos professores, não todos é claro, foram formados depois da ascensão do culturalismo pós-moderno, tendência da produção científica em História que trouxe novas perspectivas em relação ao marxismo.          

          Enquanto a Guerra Fria estava fluindo no mundo e a perspectiva de concretização de um projeto socialista ainda era uma realidade em disputa eufórica, espécie de bússola para quem se opunha ao capitalismo nos países de seu domínio, muita gente boa acreditava na possibilidade de reverter este câncer social - ou, pelo menos, contê-lo nas desgraças que provoca - através da organização coletiva e da disputa do Estado ao lado da  "esquerda" contra a turma da "direita". Em dezembro de 1991, a União Soviética ruiu justamente por um erro básico e persistente de muitas tendências socialistas até hoje, sempre apontado pelos anarquistas: o apego ao poder e às disputas ególatras de lideranças e seguidores. O que o capitalismo sempre fez foi utilizar-se destas paixões, das tradições envoltas nelas, muito anteriores ao estabelecimento de sua existência concreta, para continuar se perpetuando na expectativa ideológica que alimenta no ganancioso, no vaidoso e no individualista a esperança de se dar bem materialmente. Ele nasce ideologia que ressignifica a tradição sobre o real, alimenta paixões difíceis de desapegar (embora muitos humanos tenham conseguido, o que demonstra que esta dependência das paixões não é "natural" do homem, mas "cultural", passível de reformulação) e potencializa, com elas ao auge, a injustiça e a desigualdade com as quais favorece poucos em detrimento de muitos. Em verdade, no capitalismo, o humano é sugado ao extremo, destruindo a si próprio na cegueira de quem destrói às pessoas em redor e o mundo em que vive, acreditando que se dará bem sozinho e sem eles. O socialismo é mais difícil de acontecer porque depende deste desapego fundamental da humanidade para superar o capitalismo. Tentou-se, por guerras, implantar ditaduras do proletariado que impusessem um domínio do Estado sobre as classes então existentes, além de uma lei forte e igualitária, onde o privilégio da burocracia estatal persistiu e a vaidade da corrida armamentista terminou por definhar os recursos. Estes métodos, que foram a tônica da experiência soviética, como sabemos, não deram certo. A consequência, um desastroso impacto ideológico sobre opositores do capitalismo no mundo, abalou a década de 90 em diante, fazendo-se crer que o capitalismo havia triunfado sobre qualquer alternativa. Mas não é assim que a banda toca... o sistema capitalista é sugador, genocida, suicida e inconsequente com a vida. Um  sistema assim não pode persistir de forma saudável, ainda que sua superação demande esforços culturais maiores que os militares, os eleitorais e os vanguardistas juntos. 

        O socialismo precisa de mudanças profundas de ordem cultural, no plano das mentalidades, dos interesses e dos vícios; na visão de mundo de quem procura o domínio e o controle do outro, a submissão aos seus caprichos, a concepção de privilegiado e malandro sobre os demais, sempre tirados como incapazes ou otários. Sem mudanças culturais, sem desapegos históricos, não temos socialismo nem anarquismo. Infelizmente, temos muitos socialistas assim. "Quem fala em revolução sem mudar o cotidiano, traz na boca um cadáver". A frase que exponho como subtítulo deste blog é dos muros pichados de Paris em maio de 1968. A contracultura sabia onde queria chegar.  

          O impacto ideológico do fim da União Soviética sobre socialistas e social-democratas do mundo foi profundo, aniquilando partidos "revolucionários", lideranças e fazendo outros assumirem a peleguice que encobriam. Quando predominava o manto da euforia que tomava conta de um grupo expressivo no Brasil, eram parte da "revolução". Quando a euforia foi frustrada,  rapidamente mostraram as garras vacilantes. Quem não lembra da virada brusca de posição do Sr. Roberto Freire (ex-PCB e atual PPS)? Ou mesmo do FHC sociólogo para o FHC presidente? O PT, então, nem se fala... Quando se viu socialistas históricos compondo alianças espúrias com a direita "para ganhar eleição" ou "pela governabilidade", roubando e maltratando todo o povo tal como a direita e os conservadores sempre fizeram, o golpe mais forte contra a perspectiva de esquerda foi dado. Por ela mesma! Como o povo poderia continuar concordando com a disputa partidária se ela, visivelmente, não espelhava mais mudança substantiva alguma no sistema em voga? Se a nível internacional havia fracassado? Se a nível local, o que se viu foi a ascensão dos métodos mais asquerosos de corrupção e privilégios praticados por quem mais os combatia?

          É desta circunstância que emerge o individualismo bárbaro de nossos tempos. A apatia, o desinteresse político, a descrença na mudança coletiva, todos estes elementos que compõem nossa cruel realidade cotidiana, tomaram conta junto com a errônea ideia do triunfo capitalista absoluto, que foi muito vendida e comprada a partir dos 90. Errônea porque as sociedades estão em movimento, a História está em permanente movimento, dependendo sempre das circunstâncias e das provocações dos humanos que atuam em seu tempo e espaço. Nada é imposto sem reação. Maior ou menor a reação dos bilhões de sugados do planeta, mais ou menos intensa aqui ou daqui a pouco, conforme a fé que dispõem e a consciência que ostentam, os meios materiais e as condições ambientais, sabem os capitalistas que é preciso destinar especial investimento em formação apaziguadora e alienante, assim como é necessário cada vez mais polícia e forças armadas para desunir, conter revoltas muito mais sangrentas e decisivas, espalhar o pânico e a fragilidade individual.   

        A produção historiográfica, então, seguiu o caminho de se ancorar nas investigações culturais, no cotidiano das sociedades as quais anteriormente havíamos destinado exaustivas explicações econômicas marxistas. Marx e os marxistas estavam errados? Não, não estavam em suas análises econômicas, políticas e ideológicas do capitalismo. Sim, estavam em seus projetos políticos de sociedade, em seus métodos de organização para implantação do socialismo no mundo. Ainda assim, não podemos condená-los pelo que fizeram pois todas as experiências são preciosas oportunidades de aprendizado. O que podemos condenar é a insistência no erro. Não dá mais pra trocar uma ditadura por outra. Quem é o humano vaidoso que, se dizendo socialista, porá as mãos sobre os meus ombros e dirá que vai me governar porque tem a primazia e a vantagem da consciência correta de liderança a meu respeito ou a respeito do que todos precisamos? Isto não cola mais. Ou cola, quando o intuito não é promover socialismo, mas promover populismo barato e nada revolucionário.  

         A historiografia dos anos 90 seguiu o caminho de se compreender melhor o que nossa cultura, o conjunto de nossos valores, crenças, costumes e rituais, nos dizem respeito, para além do que já sabemos quanto à dinâmica da produção e da distribuição desigual de riquezas materiais. Este foi um reflexo do fim da experiência soviética no mundo que ganhou força e expansão a partir do momento que o triunfo do capitalismo desnacionalizou e desestatizou o poder de regulação econômica dos Estados Nacionais sobre as empresas capitalistas. Quais os interesses e paixões que sustentaram a ideologia capitalista e a ideologia de cada classe dominante antes e depois daquela? Poderia ser um rumo destas pesquisas, como fizeram Thompson e Hill, por exemplo, na História Social Britânica dos anos 60, a respeito das ideologias políticas de resistência da classe trabalhadora depois que estes autores se decepcionaram com Stálin. 

            Parte dos historiadores tomou este rumo. Outra parte, não. Há quem investigue a cultura no sistema, do sistema e contra o sistema econômico em voga, correlacionando o tempo histórico de seu objeto com a sociedade de hoje, suas permanências (ressignificadas) e mudanças. Estes assumem seu papel de historiadores que têm total influência sobre a História que contam (não vivenciada pelo próprio, ambientada no passado) no mundo em que vivem (para compor com a história de seu tempo, a que deve ser feita à luz das experiências narradas sobre o passado) e não se escondem atrás do método científico, do relativismo absoluto às prisões conceituais. Outros tachariam simplesmente a iniciativa de anacrônica e perigosa, talvez simplista. Eu prefiro lembrar da alegoria do pintor, aquele que emoldurou de tal forma a expressão do quadro, até que deste não resistisse mais nem a pintura, nem a parede que suporta o quadro, nada além da citação do autor, pomposa e referenciada sobre um toco que já havia sido feito, reconhecido e estragado pela natureza, ou seja, sobre um nada novo cujo valor de relíquia é inquestionável. 

            Mas também há quem acredite que há valores que não são determinados pelo sistema ou que até interagem com ele mas têm vida própria. Quanto a estes últimos, ou são ingênuos ou se julgam espertos demais. Nem tudo que foi criado no mundo e ainda existe, de fato, é capitalista. Mais difícil ainda é ser obra de um indivíduo apenas... Há criações coletivas anteriores e persistentes, que datam de muito além de trezentos anos. Mais difícil é saber o que o capitalismo, junto com seus parceiros cristãos, não assimilou, ressignificou ou incorporou (eu diria, reduziu a existência real) transformando a beleza extenuante ou o caráter amplo de sua essência numa mercadoria que tem seu valor restrito ao financeiro nos dias de hoje. 

         Acredito que temos uma responsabilidade dupla quando trabalhamos com História: a compreensão das peculiaridades do período histórico que se estuda e a preocupação com o que pretendemos para o tempo em que escrevemos, produzimos ou contamos a História, ou seja, a contemporaneidade do historiador. Não há razão coletiva em se sustentar historiadores no tempo presente que apenas contem coisas do passado sem que sejam capazes de apresentar nexos com o presente, em estilo e opinião próprios, assumindo assim seu posicionamento politico-ideológico na sociedade e na interpretação dos fatos. Não é suficiente ou não é claro ao conjunto da sociedade que aquele fato histórico passado é, por si só, contado e compreendido, avaliado pelos contemporâneos como relevante origem das heranças que temos. Não temos atualmente, pelo conjunto da sociedade brasileira, bagagem que possibilite compreensões elaboradas, restando ao conjunto o desprezo pela importância da História quando esta tem e muito peso sobre sua vida particular e coletiva. 

        Estes historiadores do segundo grupo (aqui definido por "pós-modernos"), em geral, fogem da explicação econômica classista, realçam aspectos particulares que ganham sobrevida e autonomia nos processos históricos coletivos. Também têm o seu valor quando revelam negociações ocultas e subversões ao que esperamos de uma conjuntura de disputas classistas generalizantes. Mas não estão isentos ideologicamente de um posicionamento político, tal qual gostam de transparecer, a exemplo dos liberais. Quando enfatizam aspectos que descaracterizam a luta de classes, querem, de fato, superá-la no relato da condição de existência quando a própria existência capitalista anda viva e ululante a favor do que Marx preconizava.

        O que não consigo é aceitar o papel do método científico eurocêntrico que utilizamos para legitimar a História enquanto ciência. Estamos engessando a criatividade, a inovação, o posicionamento político do historiador em relação ao seu objeto, com esta "república das citações" que vigora como único caminho válido para se expressar com reconhecimento. Como minhas opiniões a respeito de qualquer processo histórico não devem ser consideradas se não forem repassadas pelo recurso "copia e cola" de impressões fragmentadas de outros autores? Isto, para mim,  só serve à lógica do direito autoral, da reserva de mercado inerente (do autor e dos professores que se perpetuam no entorno de sua corte) e, portanto, da limitação ao novo, uma vez que devemos repetir o que autores, em geral os das históricas metrópoles, sustentam e orientam. A historiografia marxista nem cogita a hipótese de alterar as bases deste aprisionamento conceitual, prefere a tradição que a sustenta, inclusive, seguidora de alguém para contar sobre tudo. A historiografia pós-moderna aponta para a superação desta necessidade mas ainda se encontra temerária, espera que a França faça isso antes do Brasil para então podermos copiá-la. Em ambos os casos, uma desgraça em comum: não podemos avançar no que Annales se propôs a fazer a respeito da relação do historiador com o seu objeto quando temos uma oportunidade histórica de fazê-lo. 

       Na época, definimos um paradigma novo e necessário, que correspondia aos anseios da categoria, para produzir História sem o condicionamento do nacionalismo e do memorialismo. Ainda que o distanciamento do historiador em relação ao objeto, o conceito de anacronismo e a necessidade de referência às fontes tornassem, a partir daquele momento, consensuais, Marc Bloch e Fevre pensavam adiante: pensavam na autonomia do pensamento e da expressão em plena década de 30 quando se referiram à importância de resguardar a interpretação do sujeito que pesquisa e também pode fazer a História em seu tempo.  Não conseguiram naquela época e levamos todo o século XX aprimorando a submissão a um método científico que nos oprime, em nome de um projeto de sociedade que se propunha libertador das opressões. Hoje, precisamos libertar o historiador  do que se tornou contraditório em seu ofício por respeito ao método científico: há toda uma doutrinação em torno da escrita da História, de sua interpretação, das regras para conceber qualquer inovação. Isto afasta diversas pessoas capacitadas que não conseguem ou não concordam em lidar com regras que reduzem a riqueza semântica de seus textos, a liberdade de se propor novos conceitos sem a referência anterior que oprime e reduz até a aniquilação da tentativa. Não defendo que  se faça do plágio a regra, que se recuse a citar de onde extraiu suas leituras e observações numa bibliografia adequada mas refuto veementemente as diversas limitações do método científico à escrita livre porque, de fato, ele se tornou hipócrita, trabalhoso e impeditivo à renovação. Escrever o que se pensa do assunto é o que define a diferença do autor, não o excesso de citações de outrem, numa apelação que mais parece esforço de um sujeito que sofre de complexo de inferioridade para se legitimar perante os demais. Ou que lembra nossa submissão intelectual aos europeus, ainda que estes tenham construído obras significativas, as quais não recomendaria a falta de leitura. 

         Eu quero ter o direito de não ser marxista, de não ser pós-moderno e, ainda assim, ser um grande historiador, referenciado não em outrem mas naquilo que investigo, observo, escrevo, debato, ensino e aprendo. Do jeito que caminhamos, estamos obtendo um custo alto para sustentar o método científico que, a priori, nos legitimaria ciência. É tão necessário assim à História que esta seja ciência? Que assim sendo, assimile e reproduza apenas a ideia de ciência que os franceses, os alemães e os britânicos determinaram? Por que não libertamos o historiador para seguir quem quer que seja, inclusive a ninguém, para pensar sobre o que já foi pensado e poder propor o que ainda não foi pensado? Ficará a Área de História na América Latina eternamente condicionada e colonizada, lendo o mundo como se fôssemos europeus? Ou aceitaríamos a proposta libertária que vos faço, ciente de que outros já fizeram, de libertar a História do aprisionamento conceitual, fazendo-a tão rica quanto as artes em geral, que se propõem a ler o mundo com liberdade, provocando transformações significativas em nosso tempo? Haverá um dia em que nós poderemos assumir a identidade dos sujeitos historiadores sem que estes se tornem meros copistas, pupilos medievos, de professores padres que se comportam como catequizadores e disciplinadores da reprodução e perpetuação eternas de seus interesses? 

        Espero que cheguemos a um consenso mínimo, porém melhor do que temos hoje. O respeito às fontes dar-se-ia pela citação bibliográfica ao final de qualquer obra, acadêmica ou didática, artística ou científica, mas apenas enquanto referência às leituras que o sujeito-historiador teve, não determinando a autonomia de toda a sua obra ou a legitimidade pelas universidades daquilo que foi produzido enquanto História. Torna-se História, a partir de então, toda obra que construa argumentos convincentes sobre o passado e seus reflexos no presente, definindo um papel objetivo e subjetivo entre os novos historiadores: quem escreve sobre a História deve se posicionar claramente quanto ao que faz para a História de seu tempo, seja o quanto há de relevância em cada objeto neste sentido, seja num redimensionamento completo da incrível arte de ensinar e de aprender sob as inúmeras linguagens existentes e possíveis no campo social.     

               

sábado, 3 de dezembro de 2011

Os assessores do advogado mineiro

         - Pode levar a chave! Se quiser, fique com ela, por favor! Minha mulher é toda sua!
         - Que isso, doutor!? [ajoelhado] Eu sou de menor, juro! Não faça nada comigo, por favor!
         - Levante daí, maluco! Você já não pegava minha mulher? Eu tô dizendo que estou te dando aquela desgraça! Não quero te prender, te matar, nada disso. Espero que você tenha sorte!


        [passam-se os dias... pessoas do povo param Sr.K na rua, impressionadas com o que souberam]


        - É verdade?
        - Sim, é verdade.
        - Mas você também está pegando?
        - Não, eu não. 
        - Vocês da cidade são muito doidos!
        - Nada, a gente costuma ajudar amigos. Se precisarem de uma casa pra cair, por que não? Não é o que Cristo nos ensinou?


        [pausa para reflexão...]


        - É mas... o marido dispensou a mulher no bar, parecia saber do amante, entregou as chaves da casa para ele e ainda deixou o senhor morar com ela? Isso aqui a gente chama de putaria, sem vergonhice, não é coisa de Deus não, uai!
        - Me explica uma coisa: pegar criança de 11, 12 anos, não é putaria não, sem vergonhice? E parente? Tem tanto filho de parentes que se pegam... aliás, noutro dia, dei um mole danado. Perguntei para um senhor se ele era pai de um menino aí e ele ficou brabo comigo, disse que só tem uma filha, de onde que inventei essa história... ora, disse pra ele que achava o moleque a cara dele.
        - Vixe!!! Nunca mais faça isso, carioca esperto!
        - Por que?
        - Porque, se ocê fizer, ocê perde a mulher do advogado na mão dos fiote aê...
        - Mas eu não tenho nada com a mulher do advogado! Ela é apenas minha amiga, já disse isso.
        - Sei.


        Passam-se os dias, os meses, uns três meses. Não aguentava mais. Desde que havia resolvido morar com a mulher do advogado, não pegava mais ninguém. Não queria a mulher do advogado nem o advogado! Eram simplesmente meus amigos. Ninguém acreditava. Pergunto a ela o que estava acontecendo.


        - Esperam você sair escondidos no mato. É você sair que aparecem. Insistem em me pegar, já fiz alguns. Outros parecem mais preocupados em saber se você está na casa, por perto, se volta cedo ou tarde. Dizem que têm medo da sua reação. 
        - Porra, mas eu não tenho nada contigo!!! Essa gente não entende... O engraçado é que insistem em fazer escondido! Comigo, apareceram umas mulheres assanhadas... não quero, porra! Onze maridos vieram com um papo torto pra mim. Disseram que vão me enfiar a porrada se souberem que eu estou com as mulheres deles. Quero os caras e os caras acham que eu virei hetero por sua causa! PQP!
        - Tá foda pra você, né amigo? Mas tem um que eu duvido que não te quer...
        - Não é só um. Mas tem que ser escondido de você, os mineirinhos são assim... fazer o quê? Vamos fazer o seguinte: durante esta semana, quem vai sair para resolver as coisas na rua vai ser você. Eu vou ficar em casa, à espera dos bonitinhos escondidos do mato. Ainda tem aquela peruca de carnaval que parece com o seu cabelo?
         - Sim, tenho. 
         - Ótimo. Eles não usam binóculos. 
         - Fechado, amigo. Vamos tentar.
         - Pois é, não dá mais pra ficar nessa seca aqui...
         - Tudo bem, faço isso pelo amigo.
         - Fechado?
         - Fechado.


         No dia seguinte, conforme combinamos, eu fiquei em casa e ela saiu. Ele apareceu. À distância, o cabelo era o dela, ele teria esta certeza. Mas eu não sabia: ele já a tinha encontrado no mercado. Sabia, portanto, que quem estava na nossa casa era eu.


          - Sr. K? Tudo bem?
          - Tudo. Chega mais!
          - Onde está a senhora?
          - Foi na rua, deve demorar.
          - Sei...
          - É que...
          - Fica à vontade!
          - Posso te pedir uma coisa?
          - Fala!
          - Huumm... [pegando a bunda de Sr. K., roçando o pau...]
          - Sabia que você me queria.
          - Não fala! 
          - Por quê? 
          - Porque eu sou macho. 
          - Entende uma coisa: falou que rola, acabou. Tudo na vida da gente pós-moderna aqui é assim: as grandes novidades são o cinismo e a covardia. A gente sabe qual é a verdade, a gente tem horror de falar dela. Então, a gente desvia. Dá foco na bobagem, levanta que é o que não é, dá uma certa volta pra chegar onde quer. Chora e jura o que quer e o que não quer! É quase assim o trabalho de um advogado, o senhor me entende? Ou a gente inventa o fato ou compra a justiça.
         - Entendo, mas acho uma derrota. Dá muito mais trabalho inventar bobagens desviantes, negar, mentir o tempo todo, lembrar do que mentiu pra cada um... sei lá, curto mais a energia da verdade, do papo reto, do sexo livre de paranoias.
         - Desse jeito, o senhor vai ficar sem ninguém. Agora, posso te pedir uma condição?
         - Sim, fale.
         - Ponha a peruca. Eu quero você mas tem outros no mato... sabe como é, né? Depois os caras me chamam de viado, viram tudo testemunha... 
         - Sei... fechar a janela e a porta não são suficientes?
         - O senhor tá antigo mesmo, hein? Sua casa tem câmera pra todo lado, Sr.K. Ninguém esconde mais nada. Quando você menos imagina, você já está no DVD da casa de um, na internet da casa de outro, e por aí vai. Nunca sentiu os comentários das pessoas? Jogam verdes inacreditáveis, parecem sempre saber o que rolou com você. Até aquilo que você fez sozinho, absolutamente sozinho.
         - Como cagar, por exemplo.
         - Sim, como cagar.
         - Deixa eu ver se entendi: ninguém esconde mais nada, todo mundo vigia todo mundo. Mesmo assim, temos que nos esconder do outro, de nós mesmos, se não falam mal da gente. Se falarem, a gente perde. Perde a moral, perde tudo. Se não falarem, é porque têm rabo-preso. Um joga pro outro o ônus de ser feliz, é isso?
       - É mas... quem dá o ônus é o senhor, né? Eu sou macho!
       - Sei...
       - Mas se o senhor gostar e me der um dinheiro aí, tudo bem. Posso dizer pra todo mundo que foi por dinheiro. "O viado me pagou". Prostituição não é problema, o problema é ser viado. Se as pessoas souberem que eu ganhei uma grana, elas me perdoam. Além disso, é costume: o senhor é mais velho que eu, tem que pagar.
       - Faz o seguinte: some daqui!
       - Por quê? 
       - Este contrato me broxa. 
       - Mas são as leis!
       - Fodam-se as leis!
       - Mas o senhor não é assessor do advogado? 
       - Sim, sou assessor do advogado. Escrevo mentiras para salvar pessoas da cadeia. Para fazê-las ganhar uns trocados de indenização. Adianto a vida. Mas agora estou pensando: tem gente que quer viver na cadeia. Você é uma delas! Portanto, não vai sair daqui tão fácil.
        - Isso é uma ameaça? 
        - Não, não é uma ameaça. É um fetiche sexual. Você está preso!
        - Mas o doutor jurou que eu não iria preso por comer a mulher dele...
        - De fato [já passando as algemas na cama e o braço do rapaz], você não vai preso por ter comido a mulher dele. Você está preso por alimentar o ônus do prazer que tanto curte e tanto condena! 
         - Nossa... e o que faço agora?
         - Chupa! 


         Conta o registro popular que este rapaz ficou preso por três dias, passando por diversos "tratamentos de choque", na casa do Sr.K e da esposa do advogado. Só saiu com o documento assinado, carimbado e fotocopiado. Dizia assim o papel burocrático: 


      "Dei, comi, chupei, beijei e senti todo o carinho dele sem lhe pagar um tostão. Sou viado também. Assino e dou fé." 


      Depois dessa, o rapaz se mudou da cidade. Precisava recomeçar a vida em um lugar em que a sexualidade, o desejo, o prazer, não eram crimes caros, rolos gigantescos ou demandas tão graves. 


        Foi pro Rio de Janeiro achando que iria encontrar a liberdade que não tinha no interior de Minas. Ficou assustado. As pessoas da cidade também estavam cabreiras demais, cheias de melindres... sentiu que a prisão ideológica estava grande. Fazia parte de um ônus cultural da época, espécie de avanço careta sobre o passado recente de conquistas no campo da liberdade do Ser. 


          Observando a realidade, não se fez de rogado: decidiu virar marinheiro. Sentiu que, se era pra ser maltratado, pelo menos deveria ganhar bem do Estado e passar batido em cada porto. Entre um porto e outro, o navio, pelo menos, seria uma festa à parte! Quem seria o louco de dizer que iria acabar com a sua carreira? O rabo- preso que um dia o torturou, de repente, virou sua principal arma contra os inimigos. Sem querer, estes, por cinismo e covardia, lhe deram um poder incomparável. Hoje é agradecido ao assessor do advogado e dizem que relê os contos libertinos do Marquês de Sade como se fossem hinos nacionais.           
          
              
          
  


         

domingo, 20 de novembro de 2011

Quem é que vai pagar por isso?

        Tem gente que tenta me convencer ainda de que é necessário votar melhor. Eu digo a estas pessoas que, cada vez mais, é necessário lutar melhor. Da maneira como estamos sendo conduzidos no Brasil e no mundo, já deu pra perceber que a velha democracia representativa sucumbiu ao poder de banqueiros e especuladores, bandidos menos afortunados (milícias, traficantes, xerifes locais, etc.) e até mesmo à casta política, que pouco se alterna no poder mas não passa de subalterna aos grupos anteriores. As organizações locais é que efetivarão a saída da atual ditadura do capital, uma fórmula de luta e resistência que conta mais com a imprevisibilidade como método que com a tradicional busca pelos caminhos institucionais reconhecidos.

           Não recomendo às pessoas que reneguem benefícios ou brechas ainda proporcionados pelo Estado. Muito menos que deixem de reivindicar aos governantes seus direitos de cidadania, sem os quais a sobrevivência cotidiana, já tão ameaçada, torna-se inviável. Esta contradição, infelizmente, deve continuar enquanto estivermos no capitalismo porque este sistema não oferece dignidade mínima a ninguém mais que à meia-dúzia gulosa. Se possível, mata um por um conforme o grau de ameaça que promove - da fome à bala. Temos de ser, ao contrário dele, cada vez mais solidários com a vida humana. Inclusive com aqueles com quem nutrimos desavenças menores. Não estamos juntos na propaganda enganosa, na disputa eleitoral para perder e negociar vantagens outras ou na negociação arranjada e oculta com patrões para obter resultados aparentemente favoráveis aos movimentos sociais. Isto é engodo puro e todo mundo acaba igualando a esquerda partidária no mesmo saco de gatos com razão. Não precisamos sacrificar o socialismo desta maneira.

         Estaremos juntos na defesa de espaços públicos, de direitos mínimos à dignidade, ou seja, em lutas específicas que convirjam propósitos anticapitalistas e de sobrevivência dos militantes e das pessoas em geral. Estaremos juntos quando as circunstâncias históricas exigirem um levante unificado, por solidariedade de classe ou por interesse pontual, ainda que cientes de que diversas destas lutas não resultam na derrubada imediata do sistema mas objetivam contê-lo no avanço sobre o próprio Ser. O que resultará na derrubada do sistema capitalista será a atitude socialista cotidiana, a superação da necessidade de acúmulo e roubo da dignidade alheia, o fim da necessidade de domínio, e isto não é defesa do socialismo utópico, é antes a consciência da importância que a reprodução ideológica tem na sustentação de algo que agora resolveu submeter o mundo ao capital virtual, por exemplo. 

        Você pode deflagrar uma guerra e sustentá-la por mártires, impor uma ditadura do proletariado e nada disso superará a essência do que sustenta a mentalidade capitalista. Você pode eleger políticos de esquerda na democracia burguesa - o que considero cada vez mais difícil -, pois é mais fácil fazer o cara de esquerda ter de esquerda só o discurso, pois se trata de uma condição tácita para o seu patrocínio eleitoral e até mesmo para a sustentação de seu mandato. O que vai, de fato, superar a crueldade de nossos tempos é a deflagração de uma guerra ideológica, estabelecida na coerência entre discurso e prática cotidianos, coragem no propósito desta luta que é coletiva mas também individual: não posso mais querer tirar do outro a felicidade dele em busca da minha. Não conseguirei nem a minha e ainda destruirei a do outro, gerando violência sobre violência. Do contrário, teremos o engodo vencendo a realidade eternamente. O resto fica por conta da barbárie individualista, que já deu no que deu e está rolando sem pena: só vítimas, de uma maneira ou de outra.    

       O apego à ocupação perpétua de aparelhos institucionais é um fenômeno que tornou engessada e subalterna parte de nossa esquerda partidária. Temos de aprender com os nossos erros, saber superá-los e saber também traçarmos alianças pontuais que nos assegurem certa força política na resistência. Existirão, numa sociedade complexa como a nossa, pessoas dispostas a atuar dentro e fora da institucionalidade sem que, para tal, apenas reduzam suas passagens ao jogo amestrado dos poderosos de sempre. Em outras palavras, sei discernir o companheiro partidário que age por motivação ideológica, que sabe separar a necessidade de marketing e supremacia dos seus pares em situações específicas que exigem solidariedade de classe, de outros que somente se aproveitam da fachada, que demonstram suas garras corruptas e vacilantes no instante mais difícil das contradições. 

           É por essas e outras que alternei minha militância em diferentes ambientes, grupos ou espaços. Emergi do movimento comunitário, passei pelo movimento estudantil, ocupei cargos públicos ao lado de pessoas da esquerda partidária, busquei a condição autônoma de servidor concursado, fui professor e sindicalista da categoria na rede privada, radialista no subúrbio, diretor de ONG. Enfrentei prefeitos, governadores, professores universitários, vereadores, presidentes da república, donos de escola, policiais e companheiros corruptos em diversas situações. Esta participação em diversas frentes tornou-me ainda mais convicto da contribuição relevante do anarquismo na minha mentalidade política particular, o que não me fez sectário. Ao descobrir como funciona o Brasil e seus amálgamas sociais complexos, tive de corresponder uma sobrevivência arrastada aos posicionamentos políticos necessários em cada momento e circunstância colocados. Quando a aceitação da atitude alheia (humilhações, roubos, esculachos e situações inacreditáveis a que somos submetidos por aqueles que dizem defender a qualidade e o mérito) comprometia substancialmente princípios básicos do meu Ser, toquei o "foda-se" necessário, ainda que relutasse bastante em torno da melhor forma em diversos momentos. Era a condição de escravo que estava posta sobre meus ombros, a anulação de minha existência que dinheiro algum poderia comprar. Quanto mais o mínimo que sempre me pagaram! 

        Estes obstáculos não foram poucos nem tiveram limites tão óbvios, como a lei, o respeito mínimo, a lógica racional, ou até mesmo, pasmem, a melhor forma de lucratividade do patrão!!! Sofremos de uma permanência aristocrática, como já tratei diversas vezes neste blog. A condição de privilegiado é oposta à condição de indigente, sendo o meio termo uma dádiva que nem sempre dura o quanto acreditamos ou precisamos que dure. Os métodos de nossa elite em nada se equivalem à racionalidade que propaga em discurso: sua fundamentação e norte habitam o domínio do outro, a afirmação desmensurada de poder pelo poder, o exibicionismo, a carência que resulta desta mesma ignorância e a hipocrisia das relações. Numa sociedade assim, as reações são as mais inesperadas. A mínima harmonia - se é que podemos chamar esta relação desta maneira - só é alcançada no agrado e no elogio sistemáticos do vaidoso que lhe comanda o trabalho, a família, a máquina. O que diziam ser uma prerrogativa do serviço público, é comum também na iniciativa privada, em todos os lugares. O tempo todo são as relações de proximidade, parentesco, amizade, sexo, intimidade, cumplicidade no desvio, que determinam o funcionamento e o pagamento do que deve ser feito para a sociedade se manter. Imagine o resultado catastrófico deste procedimento nas mãos de um médico, de um chefe, de um professor, de uma dona de casa, de um pai, de um eletricista, de um policial, etc., etc., etc.? É a bagunça que vivemos. Cheia de propaganda enganosa e moralismos inúteis.

          O anarquismo me ofereceu dois fundamentos básicos para lidar com esta insanidade coletiva: um é que o capitalismo é um câncer social; outro que o Estado é apenas seu serviçal, que não é quem o ocupa hoje, ontem ou amanhã o seu grande problema ou o triunfo para as políticas públicas necessárias. O Estado é uma entidade parasitária da sociedade em que a própria  sociedade foi conformando a manutenção por interesses mesquinhos. O sujeito bem intencionado ou será sugado por sua lógica ou será repelido. Isto não quer dizer que deixar o mercado agir livremente, acreditando que a iniciativa privada seja mais eficiente e competente, seja certo. Também não pois ela consegue ser pior, ela é o verdadeiro comando do Estado que tanto critica. O que temos de fazer é agir pelo que precisamos em comum durante o tempo de tarefa árdua que ainda levaremos para nos ver livres destas chagas. Não votar ou votar nulo é um começo. Não fazer campanha para candidato nenhum, assumir logo que não estamos elegendo ninguém, que está tudo acordado: quem vai ganhar e quem vai perder é definido antes, pelos mesmos, e toda a democracia representativa não passa de uma grande farsa. Não tenho mais como bater palma para palhaço num teatro caro em que o grande palhaço sou eu. Se não temos como resistir ao pagamento de impostos, devemos então sugar o máximo que pudermos do Estado, das empresas, de todos que tiram onda com a cara de quem trabalha e dá duro. 

      É imperioso sugar mas não para benefício individualista ou de pequenas panelas (como é próprio do jeitinho brasileiro): temos de elaborar e praticar estratégias de ocupação ou sugação da máquina capitalista para que seus recursos garantam uma ampla rede de apoio mútuo, capaz de colaborar na sustentação do maior número de pessoas possível. Temos que ousar sustentar o militante combativo, por exemplo, sem adestrá-lo à subordinação dos que comandam o Estado,  os partidos ou o capital. Socialistas deram este passo na ocupação de sindicatos, federações, confederações, mandatos parlamentares, etc., mas acabaram por entrarem no jogo perigoso das tentações que os privilegiados lhes ofereceram. Hoje, muitos lutam, na verdade, para se perpetuarem na exclusão de outros companheiros, o que em nada lembra o princípio socialista nem constitui estratégia revolucionária. Isto levou-os ao descrédito popular, sedimentando as garras do próprio capitalismo a partir de um descrédito coletivo na possibilidade de mudança. É a grande contribuição do PT ao capitalismo mundial, por exemplo. Este proceder afetou ideologicamente nosso povo e esta experiência tem de ser superada.               

             Comecemos pelo micro, outro ensinamento dos libertários. Pra que desafiar proporções nacionais ou internacionais se não damos conta do micro-espaço, das microrrelações do cotidiano, como tanto insisto? Se estamos engendrando esforços descomunais para garantir sobrevivências individuais em frangalhos, arrastando-nos uns sobre os outros para vender mais barato nossa força de trabalho sob o risco de um pé na bunda a qualquer título ou espírito, por que não engendramos esforços por relações humanas diferenciadas com o trabalho, a produção e o lucro? Mesmo que a nível local, mesmo que inicialmente sejam tentativas insipientes ou contraditórias, mesmo que as organizações locais de sustentabilidade anticapitalista exijam laços e fluxos variados, estas seriam fundamentais à imprevisibilidade como ingrediente da luta. 

    Neste novo modelo de organização, a institucionalidade ou o reconhecimento estatal não se daria como mola-mestra mas talvez como parte de um arcabouço de sustentabilidade amplo e diversificado. Sob a fachada de uma entidade assistencialista banal, permitida e financiada, por exemplo, esconderíamos uma rede de apoio mútuo vibrante que em nada se assemelharia ao ritual típico da caridade interessada em gratidões eternas. Penso que precisamos mesclar o que é possível fazer angariando recursos e o que é necessário fazer enquanto atitude revolucionária. Para tal, egos e vaidades são os grandes desafios. Como fomos criados dentro de uma lógica de disputas e competições mesquinhas, o desafio maior de grupos assim sempre foi a coesão mínima do próprio grupo. Experimentei grupos que se dispuseram assim e posso dizer que foram bons enquanto duraram. Não são eternos, têm prazo de validade. Mesmo assim, isto não quer dizer que devem ser menosprezados ou desqualificados: na obsolência de um, ergue-se outro sob novos desafios, ambientes, desculpas e propósitos. As ações libertárias não são feitas para se sedimentarem no tempo e no espaço enquanto estruturas sociais estanques. Ela se permitem ao aprimoramento, à dissolução, à inovação, à criatividade e à imprevisibilidade. Isto não é pouco. Só poderemos saber se é isso o melhor caminho se tentarmos. O que temo é a naturalização de uma proposta ideológica que só se perpetua na aceitação ou no acovardamento. Processos históricos têm sementes, exigem água, cuidados e energizações, proteções e carinhos. Não caem do céu por obra dos homens. Muitas obras humanas também provocam os céus e a proposta apocalíptica anda tentadora porque há um numeroso contingente implorando por isso. Não tô nessa nem desejo que você esteja. Vamos pensar, para além de 2012, "quem é que vai pagar por isso?". Nas palavras do próprio Lobão, está acesa a chama da insatisfação humana e de sua incrível capacidade de reelaboração.                       
               

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Longe ao longe

                  Homenagem de Caio di Palma, poeta e grande amigo, sobre minha passagem por Minas Gerais e o atual "exílio" ou afastamento. Obrigado, Caio, por suas palavras 
que transcrevo neste blog. Nem imagina o quão oportunas! Chegaram em momento substancial, de saudades da roça e crises com o humano urbano inconstante, híbrido e orgulhoso de egoísmo, que não sabe viver sentimento profundo. Desconfia. Maltrata.
Finge que nada aconteceu porque dormiu e acordou diferente. Como se nada tivesse dito, feito ou desconfiado. Tempos difíceis. Saudades da minha verdadeira terra, Santo Antônio do Rio Grande.


Segue o poema de Caio:


"Longe 'ao longe',
Diz-me Textos, varão Calado,
Rasgados na urgente noite
A sozinhar como queiram os astros
A difícil canção do exílio

Alardeado, largado,
Inicia o rito báquico a seduzir touros pelo caminho
Erra o tíaso por tendas e desertos
Na mão crispada ab-sinto enluaradas noites

Dos cavaleiros errantes, lidera a matilha selvagem,
Fazendo nascer encantos e filhos na pele ardente
A ladrarem juntos o canto suado
Das bacantes masculinas

Enganado, solta o ar no fim do dia,
Empunha o ardente texto paixão
Perde a vida ou quase nada,
Rasga brâmanes na fúria dos cantos
Encanto duro ou flor de cactos

Longe 'ao longe',
Diz-me o homem que amo,
Difícil canção do exílio

Foi-se quem acostumei-me a ser,
Nunca vacilante em ereções
De farras aposento tantas tramas,
Chamas sacanas no oeste foram o norte

Julgo amar, julgo não amar,
Desejo falar não sobre o amor,
Sobre tudo, muitos devaneios!
Saberei desinstrumentalizar-me?

Arco com o discurso alheio
Mas quanto ao nome próprio,
Alheio-me no tempo e
Caio distante do sujeito EU

Marginal da ordem, perde o tino
No passo incerto do Zagreu Dioniso
Revelado na luz sob o sol

Só sei o que não digo
Preso às lexicografias do deserto
Sou engano ou paixão?
Fraco ou divino?
Perdi a conquista?

Lá se vai a noite cangaceira,
Dizem os lobos, loucos à flor da pele!
Dos finos bagos de romã aos acalentos
Miro urgente necessidade de ser,
À beira da janela, um beija-flor

Chovo fácil, enlameio ou minhoco a terra
Onde faço amor no chão com a língua
Uma necessidade vertigem flor do dia.

Quanto tempo falta para dizer sim?
Quanto tempo para se reconciliar?

Longe 'ao longe',
Diz-me ele, pedra de alquimia,
Difícil canção do exílio."

sábado, 5 de novembro de 2011

Concursos Públicos na Era do Capitalismo Financeiro

                   Estou acumulando uma experiência em concursos públicos e acredito que posso compartilhar com os leitores sensações e impressões valiosas. Desde a decisão de estudar e concorrer, passando pela seleção criteriosa de quais concursos participar, os métodos das provas em si, a classificação, a posse e a experiência em um concurso público municipal, até o que observo de experiências correlatas e alheias, das políticas e politicagens envolvidas, da obstinação em se tornar servidor público de parte considerável de nosso povo enquanto a iniciativa privada expulsa e elimina grandes quadros como descartáveis. Tudo que experimento reforça o que pressinto, sinalizando êxitos e fracassos meus, individuais, e nossos, enquanto sociedade. Convido a uma reflexão como poucos ousaram estabelecer.

            Assusta-me a quantidade de gente que procura, cada vez mais, os concursos públicos nos grandes centros urbanos do país. Trata-se de reflexo da incapacidade da iniciativa privada de absorver um contingente humano que julga necessário descartar como lixo. Desde que vislumbrou a capacidade inventiva do capital virtual e fez deste uma referência de acúmulo mundial que não necessita da produção pelo trabalho, nossos "experts" do mercado financeiro instituíram a falência múltipla dos órgãos do próprio sistema capitalista tradicional.

          De que adianta produzir, empregar, ter um todo trabalho para vender e para pagar impostos, se é possível faturar muito mais na jogatina de ações privadas e títulos públicos, empréstimos a juros extorsivos, refinanciamentos e endividamentos eternos? Identificaram custo desnecessário em produzir. Logo, o que resta à maioria da humanidade é a disputa acirrada pelas migalhas que sobraram do setor produtivo. Temos migalhas nas bolsas-esmolas oficiais, temos migalhas dentre empregos temporários (uns que pagam, outros que não pagam, deixando o trabalhador numa incerteza inquietante quanto ao dia de amanhã), temos migalhas que são de setores marginalizados (prostituição não declarada, tráfico de drogas, contrabando, venda de muambas, de sentenças, de sistemas de proteção e favorecimentos instituídos por corruptos, etc.). 

             O que não temos mais é a certeza de que estudar gera um trabalho digno, que ser digno no trabalho gerará a retribuição de outrora, que produzir e ter uma empresa, por menor que seja, durará mais que um ano. Pouquíssimos faturam muito, mas muito mais do que faturaram os ancestrais ricos. Da classe média, o Estado extrai os recursos para a demagogia que promove entre os pobres e os donos do mundo em proporções desiguais. Quando falamos em combate à corrupção e aos desvios de recursos públicos, esquecemos que o maior desvio não está no agente público, servidor comum ou político eleito, e sim na grande contribuição que sustenta os poucos donos do mundo. Sugam quase 50% de tudo o que o Estado Brasileiro arrecada em impostos, sobrando dos outros 50% tudo o que o Estado gasta para manter serviços, pagar pessoal e roubar entre políticos.

             Protestos ecoam em todo o mundo em função de quem, já percebendo a disparidade, não aceita mais o jogo desfavorável ao ponto em que chegou. Assistimos a uma Grécia afundada em dívidas, reduzindo salários e demitindo 30% do funcionalismo público, ou seja, cortando e destruindo a própria economia, para manter em dia o pagamento de juros extorsivos a banqueiros e organismos multilaterais. Quando o primeiro-ministro ameaçou fazer um referendo para que o seu povo dissesse se aceita ou não o acordo com a União Europeia, os donos do mundo chiaram, fizeram pirraça, derrubaram bolsas, ameaçaram falir países em cascata. Cada vez mais gananciosos, dispostos a tudo por um dinheiro incalculável que jamais curtirão em vida (porque não terão vida para gastar tanto, ainda que de forma perdulária e consumista), submetem o resto do povo, lá quanto cá, aos seus comandos autoritários de extorsão e roubo institucionalizado. 

           Assim, diversas pessoas no Brasil, cientes de que o desenvolvimentismo nacional propalado na mídia é uma falácia porque não distribui riqueza ou, pelo menos, não sustenta a maior parte das profissões existentes e necessárias a qualquer sociedade, inflam a concorrência por vagas no serviço público. Há, de fato, uma máquina que ganha fortunas sobre esta tendência. Um grupo seleto de cursinhos preparatórios, jornais direcionados, empresas e fundações organizadoras dos processos seletivos, gráficas, escolas e universidades que cedem suas dependências para a realização das provas, servidores que recebem gratificações por participarem de comissões internas organizadoras dos certames, e, na ponta, ganhando muito menos, trabalhadores temporários contratados para corrigir provas, aplicá-las, transportá-las, etc. Mas esta máquina pode ser eficiente e colaborativa, como pode ser perniciosa e frustrante.

             Com a péssima formação acelerada de nosso ensino superior - cada vez mais moldado pelo princípio estadunidense da pressa, da quantidade de títulos para inglês ver, da redução drástica de disciplinas e conteúdos a serem estudados -, estamos assistindo a uma procura inacreditável de formados em nível superior disputando vagas de nível médio. Isto se deve também, é lógico, pelas razões de mercado que reduziram vagas na iniciativa privada. Gradativamente, como forma de excluir o grande contingente que procura por sua dignidade mínima (não chamo mais de privilégio, embora saiba que ser servidor público acabou se tornando; chamo de dignidade mínima em função das barbaridades que vejo praticarem os gestores da patifaria demagógica nas empresas particulares), o Estado Brasileiro vem ampliando a oferta de concursos públicos de nível superior específico, a saber: Direito, Administração, Comunicação Social, Ciências Contábeis, Engenharias, Economia, e, na rabeira, Arquivologia, Biblioteconomia e Tecnólogos específicos (cursos tecnológicos de 2 anos). Estas preferências revelam uma tendência ideológica de quem vem gerindo as políticas de Estado. 

           Ao reduzirem as antigas vagas de nível médio, passaram a exigir dos candidatos deste segmento conhecimentos que se direcionam pelo interesse das áreas de nível superior descritas acima. Não é raro observar a exigência de legislações específicas para cargos de nível médio. Sabemos nós que o Direito não é ensinado nas escolas brasileiras deste segmento, muito menos a Informática, tal como é exigida, tem respaldo na Formação Geral (modalidade de Ensino Médio generalista) ou mesmo na funcionalidade a qual o servidor irá atuar caso seja classificado e empossado. O que dizer, então, de provas com os seguintes conteúdos: Técnicas Comerciais, Conhecimentos Bancários, Noções de Contabilidade, dentre outras? Aquilo que exclui o sujeito de nível médio, na verdade, visa favorecer profissionais de nível superior nestas áreas. E o que é pior: não se trata de menosprezar conteúdos que podem ser, de uma maneira ou de outra, úteis ao servidor em questão (o que acho raro em diversos casos) mas se trata de criticar o crescimento forçado de espécie de servidor doutrinado por determinada perspectiva ideológica interessante aos donos do mundo.

            Os servidores públicos têm tarefa muito relevante em uma sociedade que destina à maioria a condição de pobreza espiritual e material. Ricos não precisam de seus serviços ou, caso sejam vítimas de descaso, têm os recursos necessários para acelerarem a justiça a seu favor, podem continuar vivendo sem o serviço público, pagam o que for necessário e seguem a vida. Pobres e remediados fatalmente precisarão mais do serviço público em diversos momentos de suas vidas. Logo, o profissional a qual se espera estar servindo ao público; este que, na verdade, é o seu patrão, deve ter sensibilidade social e compromisso público com o que faz. Deve saber que é sustentado pelos impostos que pagamos para uma finalidade muito nobre, qual seja a de transformar este país da selva em que se encontra, onde os indivíduos têm que recorrer a malandragens e a exceções para alcançarem direitos mínimos, num país decente, que respeita a dignidade humana, os direitos e deveres de cada um. Logo, o processo seletivo para ingresso no serviço público tem que priorizar esta perspectiva. Não entendo, por exemplo, a histórica e exclusiva importância dos conteúdos de Português e Matemática nos certames, assim como continuo sem entender as recentes inovações que trataram de incluir Direito, Informática, Economia, Contabilidade, etc., nas provas de nível médio. O mesmo posso dizer que não entendo, como critério de qualidade prioritário, a exigência de nível superior específico - das mesmas carreiras - em diversos casos.

             O que aconteceu com a exigência de qualquer nível superior? Lembro-me da comemoração que foi a liberdade de se comprovar qualquer graduação mínima para o ingresso no Instituto Rio Branco, órgão de formação dos nossos diplomatas que antes exigia exclusivamente a formação superior em Direito. Possibilita uma diversidade de concepções daquela carreira que só enriquece o serviço público da sensibilidade social e estratégica que deve possuir na formulação e na execução de políticas públicas. O mesmo não exigiria de carreiras específicas do Direito, como os cargos de juiz e promotor, que poderiam permanecer como reserva de mercado da área. Agora, analistas em geral, já penso que podem ser profissionais diversificados. 

              Quanto aos conteúdos das provas, acrescentaria a História do Estado Brasileiro como prova obrigatória. Poderia esta prova ser mais direcionada para a História das Políticas Públicas Setoriais no Brasil, abordando aspectos relevantes já experimentados e reflexos na população-alvo. Poderíamos somar a esta, provas de Sociologia ou de Geografia, ao invés de investirmos em provas esquisitas de Ética no Seviço Público que, na verdade, dizem pouco sobre o efeito a que se propõem. O Português deveria ser mantido sim para todos mas a Matemática acredito que somente para setores dos quais se torna imprescindível. Não vejo razoabilidade em se aferir conhecimentos de trigonometria ou de equações e inequações a sujeitos que atenderão o público, por exemplo. 

             Alguns conhecimentos específicos deveriam ser alvo de cursos de formação aos servidores classificados e não de provas de seleção geral. Determinados conhecimentos a quem não atua na área sequer podem ser avaliados sem a concorrência da práxis. Como diagnosticar um bom bancário da Caixa Econômica Federal? A sensibilidade social deve estar acima de técnicas específicas que também serão úteis mas não com a prioridade de primeira etapa classificatória que adquiriram. 

            Outra possibilidade a ser experimentada é a de assegurar acesso aos autodidatas em geral. Com a profusão de informações a que estamos submetidos no século XXI, não é difícil atestar conhecimento a quem não possui titulações específicas. A categoria dos professores pode resistir a esta proposta, acreditando que, sem a obrigatoriedade de titulação, o sujeito estará se livrando do ganha-pão dos mestres. Eu responderia que, se o importante é saber, conhecer do que fará em serviço, não estão nossos diplomas atestando isto de forma automática. Pelo contrário, do jeito que há perseguições a alunos por carência, vaidade e conveniência política de professores, diretores e donos de escolas (os privilégios, por força desta mesma contradição, também existem), estamos então disfarçando que temos os melhores profissionais em função dos diplomas que ostentam. Existem mecanismos no sistema educacional brasileiro para atestar conhecimentos e conferir titulações a quem não necessariamente passou por toda a trajetória escolar obrigatória. Refiro-me, por exemplo, ao caso do ENEM para quem quer provar a capacidade quanto ao Ensino Médio, ao caso dos EJAs (Educação de Jovens e Adultos, antigo supletivo, que reduz o tempo de formação no fundamental e no médio) e ao caso das provas de proeficiência, mecanismos aceitos para substituírem a frequência em disciplinas de ensino superior e que são omitidos nas respectivas faculdades.

             Outra questão me irrita bastante: estas provas de múltipla escolha apresentam, por diversas vezes, opções de resposta truncadas. Há bancas que adoram anular questões. Não é possível que respostas idênticas sejam diferenciadas apenas por um tratamento privilegiado do gabarito oficial a uma delas. É equivocado que recursos não sejam deferidos em casos extremamente absurdos. Por mais trabalho que represente a correção, defendo que as provas discursivas assumam imediatamente o lugar das provas de múltipla escolha. Poderão dizer que estas são mais subjetivas e que acabarão caracterizando expressões de preferência ou vantagem pessoal daquela banca mas o que vem ocorrendo com os resultados absurdos das questões de múltipla escolha que encontramos por aí? Pelo menos, com o direito de se expressar livremente, o sujeito poderia escrever o que sabe sem incorrer no exercício angustiante que significa escolher a "menos pior" das opções. Devidamente publicizado o resultado de um julgamento coletivo de professores, não estaríamos sendo mais justos e conferindo certa razoabilidade a argumentos legítimos? Sem contar que a correção gramatical e a coesão textual também poderiam ser exigidas das mesmas respostas discursivas de qualquer conteúdo.

             Precisamos tomar conta de perto dos concursos municipais. Estão muito mais propícios à manipulação política antes, durante e depois da realização dos mesmos que os de outras esferas do poder público. Isto é gravíssimo! Além da Constituição de 1988 ter deixado clara a necessidade de concursos públicos para todas as esferas, órgãos e empresas estatais; muito além da cobrança do Ministério Público sobre as prefeituras e câmaras municipais, há uma insistência das autoridades políticas em nomear e contratar temporários que sejam aliados políticos no lugar de fazer concurso público. Há perseguições inadmissíveis ao servidor concursado, sobretudo em cidades do interior do país. Eu mesmo fui vítima disso e conheço diversos casos no mesmo sentido. Além de uma cultura de protecionismo local aos nascidos e criados ali, o que legitima uma perseguição insistente ao concursado que veio de fora da cidade e tentou concurso público, como todo brasileiro, alcançando o legítimo direito de ser servidor público em qualquer lugar do país, há uma política de transferências e de mecanismos de assédio moral que tentam fazer o servidor desistir. Com a desistência, não é costume puxar alguém da fila de classificados. É costume contratar temporariamente outro cidadão aliado, que votou no político e, portanto, jamais o fiscalizará como deveria. Em geral, as autoridades municipais se aproveitam da lentidão do Judiciário no julgamento dos feitos, assentando seu mandato de quatro anos numa impunidade que, não raro, perdurará uma década ou mais. Com a vitória do servidor, assistimos a um prejuízo financeiro do Erário, que acaba arcando com indenizações vultuosas pelo tempo que levou a sentença judicial definitiva para acontecer. E o prejuízo é duplo ou triplo: durante este período, o servidor afastado arbitrariamente não prestou serviços ao povo, este contou com um substituto que naõ sabia ou não queria fazer o serviço adequadamente e, por fim, acabamos todos tendo que indenizar o servidor maltratado. Uma dica que posso oferecer aos concurseiros de plantão é que resistam ao máximo a prestarem concursos municipais, sobretudo os que acontecem no interior do país, fora das regiões metropolitanas, porque o que vemos é toda a sorte de abusos que atentam contra o Estado Democrático de Direito nas barbas de um Judiciário fragilizado por leis brandas, mecanismos recursais de monte e corrupto, muito corrupto. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por exemplo, tornou-se uma das piores piadas de mau gosto do país pela forma como protege as autoridades municipais mais escandalosas.


              A reforma administrativa implementada pelo Governo FHC foi uma das mais desastrosas contribuições à deficiência do serviço público no país. Por ela, já era suficiente que nenhum servidor público votasse no PSDB mais pelo resto de sua vida. Como o PT manteve diversas modificações, ainda que tenha estancado a sangria realizando mais concursos, também não é digno de louvores. Fernando Henrique Cardoso ampliou o prazo mínimo para o servidor alcançar a tão sonhada estabilidade (de 2 para 3 anos), esticando o tempo em que o servidor fica na mão do político. Destruiu a possibilidade de transferência ou promoção em diversos casos. Aviltou salários e estendeu o prazo para se aposentar, argumentando que teríamos de economizar para sustentar os juros que os banqueiros impõem à dívida pública brasileira. Privatizou diversas estatais e fez com que os antigos servidores perdessem a estabilidade da noite para o dia, resultando no elevado nível de precarização daqueles que trocaram a condição de estáveis pela de terceirizados que podem receber ou não. Como consequência natural, nossos serviços públicos pioraram com a política em vigor. Ainda assim, PSDB e PT (empregados dos donos do mundo) conseguiram dificultar tanto o bem-estar mínimo do trabalhador da iniciativa privada que a péssima condição de muitos servidores públicos virou privilégio na sociedade em que estamos. 

               É por isso que, mesmo com todas as críticas aos concursos e à imagem negativa construída, vou continuar tentando meu lugar ao sol no funcionalismo. Ciente de que, uma vez me tornando servidor público de novo, terei ainda de lutar muito ao lado dos verdadeiros colegas, aqueles que se interessam pelo nosso povo, para manter meus direitos mínimos de existência. Toda vez que ouço alguém falar que funcionário público é vagabundo e não trabalha, lembro ao sujeito que vagabundos que não trabalham e só enriquecem são os nossos patrões, sejam eles os políticos, sejam eles os donos do sistema financeiro internacional. São eles que determinam procedimentos, desviam verbas, alimentam a ingerência e gostam de fulanizar a culpa. Do jeito que está, todos nós perdemos. Durante a década de 90, as promessas da iniciativa privada eram de valorização da  eficiência, da agilidade, da competência e do mérito. Na prática, ao tentar fazer tudo isso, o trabalhador sério acaba punido. Como não gosto muito de ser escravo nem tenho tentações capitalistas ambiciosas, daquelas que precisam estabelecer a ascensão social pisando nos outros (à custa de depressão ou câncer), não vejo outra forma de sobrevivência que não o caminho do serviço público. E vou vencer este desafio.