Quem sou eu

Minha foto
Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

sábado, 10 de março de 2012

Construções dialéticas e (des)encantamento(s) súbito(s)

                         A geração que hoje se apresenta na casa dos 30 anos foi a última a vivenciar, ainda jovem, um mundo sem internet. Talvez a última a percebê-la como ferramenta de comunicação poderosa, embora muito vigiada e incapaz de substituir contatos físicos. Digo isso porque é visível para mim, um de seus membros, o grau de influência da rede sobre comportamentos individuais e sociais. Uma influência que começa no ritmo de vida, de pensamento e de atitude diante dela, e segue sobre a interpretação do mundo no entorno, chegando ao cúmulo, em alguns casos, de se fazer crer no mundo virtual como algo soberano e/ou natural, ainda que paralelo, aos costumes e necessidades do mundo real. Dedicamos horas e dias aos contatos e feitos pela rede virtual sem refletirmos adequadamente em até que ponto somos acompanhados ou se estamos solucionando problemas reais.

             Pessoas que se conhecem ou se relacionam pelas redes sociais são chamadas de "amigos".  Assim, não raro, cada pessoa supõe ter mais amigos que qualquer outra de qualquer geração anterior. Ledo engano. Amigo tinha uma conotação de intimidade e de confiança que não se traduz no distanciamento eterno de teclados e webcams. Continua tendo, embora conviva com esta ilusão contemporânea. Aquele que se perde na ilusão contemporânea dos amigos virtuais fatalmente se perceberá angustiado de solidão. A explicação se situa no fato de que trocamos energias fundamentais nos contatos físicos e os contatos virtuais podem apenas nos oferecer uma parte reduzida das trocas reais. Se não oferecermos o equilíbrio necessário entre ambas, ou melhor, se os amigos virtuais não se encontrarem fisicamente nunca, não saberão discernir a ironia, a intenção e o sentimento de quem se comunica. Isto para ficar em três exemplos cruciais que pouco podem ser sentidos sem os complementos gestuais dos contatos físicos. Há outros aspectos.

           As redes sociais constituem o maior e mais eficiente banco de dados sobre os indivíduos de todo o planeta. Assim, de forma voluntária, pessoas se dedicam a deixar públicas todas as informações necessárias a qualquer outro que objetive o mapeamento de seus passos. Pode ser um amigo o interessado na sua vida mas também podem ser o Estado, o inimigo, o patrão e o bandido. Além das fotos e de cada detalhe sobre nosso passado e presente, apreços e desgostos, temos uma rede de contatos que também oferece um rastro magnífico sobre preferências e hábitos em comum de cada grupo social. Ligado nisso, o internauta consciente não publiciza o que  lhe oferece riscos reais ou, se o publicizar, é porque está disposto a encarar os riscos. Parece óbvio mas não é com essa preocupação que as novas gerações atuam na rede. 

            Quem não vivenciou ou estudou a respeito, tende a sofrer da ingenuidade sobre a histórica maldade humana, aquela que repete erros do passado por conveniência ou ignorância sobre os conhecimentos proporcionados pelas ciências sociais e a filosofia, mas que é fraca diante da força do conhecimento e da sensibilidade dos justos. A sociedade do conhecimento é também a sociedade do controle sobre o conhecimento. Trata-se de uma contradição muitas vezes imperceptível, noutras vezes um pulo para a esquizofrenia. Fato é que o sujeito racional e o sujeito sensitivo precisam caminhar juntos nesta matéria e buscar o equilíbrio entre percepções intuitivas e conhecimentos científicos quando navegarem na internet ou em qualquer ramo da vida social.

                Gerações que vivenciaram a ditadura militar ou estiveram um passo adiante, precisamente no período de "redemocratização" do Brasil, conviveram com o fato ou com os relatos e resquícios dos métodos nada democráticos de investigação e "justiçamento" cometidos por torturadores a serviço do Estado Brasileiro ou mesmo de organizações fascistas que o sustentaram antes,  durante e depois da carnificina, que ainda estão por aí defendendo-a, e que vez ou outra, de acordo com o interesse de sua classe social, fazem se firmar nos rumos da política vigente. Estes grupos cometeram toda a sorte de controle sobre o pensamento que puderam cometer com as tecnologias disponíveis à época. Grampos telefônicos, pessoas infiltradas fingindo-se de companheiros ou amigos, cartazes com rostos e associações destes com crimes comuns para justificarem suas prisões e assassinatos eram métodos comuns e sua divulgação, ou a divulgação de qualquer análise crítica a respeito, era proibida. 

               É muito grave quando se comete um crime comum contra alguém por ódio ou para tirar proveito individualista. É muito mais grave quando se inventa qualquer tipo de crime comum para justificar uma ação coercitiva sobre uma pessoa indesejada ao sistema politico-econômico vigente. Assim, aqueles que nos são apresentados pela grande mídia como ladrões, assassinos, terroristas, traficantes, estupradores, etc., podem sê-lo ou não o ser, e isto deve ser sempre analisado criticamente pelo espectador das mídias. Dada a velocidade com que as informações circulam no mundo virtual, dada a falta de apuração qualificada, dada a vigilância ostensiva e o impacto que geram todos esses elementos da notícia, de acordo com os interesses em disputa na sociedade, temos aí uma profusão de informações que pode caracterizar uma nociva desinformação. Formar-se quanto aos interesses em disputa na sociedade e enxergar a internet como veículo de comunicação destes trata-se de necessidade imperiosa a cada indivíduo que a acessa cada vez mais novo. Isto, infelizmente, não é trabalhado por nosso precário sistema de ensino nem mesmo pelas famílias, resultando numa formação autodidata que está, ao contrário dos autodidatas do passado, superdirecionada por fluxos de interesse que se impõem sobre nossas redes de relações. 

               Os mesmos interesses que formatam nossos jovens a só ouvir determinados lixos musicais são os mesmos que conseguiram transpor a tática do antigo jabá das rádios e TVs (grana por fora para difundir e repetir apenas artistas do interesse da indústria fonográfica) para o ambiente consagrado das redes de amigos virtuais. Se hoje há quem divulgue seu trabalho sem as gravadoras de outrora, há também quem só consuma o que aquelas gravadoras falidas e readaptadas ao novo cenário impõem. Sendo empresas capitalistas, estas gravadoras sempre tiveram o interesse maior no lucro mas nunca desviaram o foco da idiotização das massas, uma estratégia de perpetuação do capitalismo, que seleciona como descarta seus melhores e mais competentes "incluídos" dentre aqueles escravos mais obedientes.  

                Lembrando os ensinamentos das obras de Kafka, alguém pode dormir trabalhador ou estudante, acordar, ir ao trabalho ou à escola, e se deparar com reações adversas as quais nem imaginaria por que razão se manifestam. Contribui para este fato uma influência da internet a serviço do sistema capitalista: tornamo-nos mais isolados, individualistas e hipócritas nas relações reais. Há quem compartilhe no facebook, por exemplo, mensagens emblemáticas deste sintoma: "fale na cara o que você só tem coragem de dizer no facebook"; "saia do face e venha pra luta!", dentre tantas outras. Estas não são tão agressivas quanto o fato de você se tornar alguém que não seja, ter dito o que nunca falou, sentir indiretas no mundo real sobre aquilo que acreditava ter compartilhado de forma restrita e acabar desempregado, perdendo um grande amor ou preso por incitação ou prática de um crime qualquer que não cometeu.

                 Assim, a narrativa de um fato abandona livremente o fato em si, sua razão de ser, para se tornar cada vez mais versão propositadamente elaborada e repetida. As pessoas passam a interagir com esta perspectiva mental: inventam, distorcem, falsificam e propagam com a rapidez de um clique. Muitos já não conversam mais que dez segundos nos encontros reais, considerando enfadonho qualquer aprofundamento conceitual, de leitura do mundo e de relacionamento interpessoal. Isso é sujeição a determinando comando, prova cabal da manipulação de sentidos físicos e de pensamentos a teleguiar indivíduos e grupos. Tem o objetivo de desagregar a potência do encontro físico. Aos mais jovens, muitas vezes, trata-se de um mecanismo imperceptível ao ponto de considerarem-no banal. Se em toda a história da humanidade, as grandes criações exigiram tempo livre, contínuo e longo, que efeitos estamos alcançando com tamanha pressa? Perturbações de todo tipo estão aí como epidemia e a mercadológica do lucro incessante e ascendente triunfa sobre um manto de estupidez, alienação e quantidade como sinônimo de qualidade. Mas ainda há os que resistem, ou seja, as falhas na matrix que até agora se utilizam do mesmo instrumento para propagar a sociedade que vislumbram.

                Há quem apenas tenha se tornado mais imagético no mesmo uso ideológico que se fazia com as antigas táticas de comunicação. Percebendo-se do quanto a sociedade está submersa aos comandos da velocidade e do encantamento que se  desencanta subitamente, alguns exploram seus interesses transformando qualquer atividade humana contínua em eventos distintos oferecidos num contínuo. Assim, uma causa que mobilizaria multidões hoje é prontamente substituída por outra amanhã sem que ambas tenham encontrado resultados satisfatórios no que se fizeram crer. O único propósito destes é assegurar visibilidade publicitária do autor, seja com fins eleitorais, seja com fins comerciais, pessoais ou de manutenção de certo status quo. Outro grupo pretende mais. Adentra o mesmo ambiente de fluxos intermitentes para posicionar seu fluxo de conteúdos e propósitos enquanto prática pedagógica da sociedade libertária. Esta frente pressupõe a liberdade na internet mas também a de todos os seres em existir, pois sabemos que só podemos nos consagrar livres exercitando contatos físicos e mudanças reais. Desta forma, a sociedade libertária tem na internet um fluxo de atuação e construção mas não se restringe a ela, prezando a ferramenta e não a exclusividade de seus fluxos. Não interessa aos libertários transformar lutas e conquistas humanas importantes em mercadorias descartáveis ou eventos que mais se assemelham aos interesses da "sociedade do espetáculo", pois estes estão a serviço da disputa de poder quanto ao controle da sociedade, coisa que não pretendemos.  Queremos, antes de mais nada, o acesso livre à informação e ao contraditório mas também queremos a materialização de relações humanas mais intensas, sinceras, autônomas individualmente, ainda que coletivamente exercitem um poder horizontal. 

          O sexo virtual não nos satisfaz porque não consegue suprir nossas necessidades de troca de afeto. Precisamos dos olhos das pessoas, da pele, do cheiro, do gosto, dos gestos diante dos comentários, impressões vivas de seus afetos concretos em múltiplas linguagens, para que possamos também ceder os nossos e realizar a ousadia e a criatividade que despertam. Libertários têm matrizes energéticas na natureza, na liberdade e nos encontros físicos, de forma que reprimi-los ou reduzi-los é algo tão insensato o quanto inócuo. Se não delegamos a ninguém a autoridade sobre a nossa existência, nosso movimento no mundo não depende de líderes que, uma vez corrompidos ou mortos, acabam levando consigo toda a coletividade que lhes inspirou. Podemos até nos fazer presentes em eventos mas não tememos nenhuma continuidade, pelo contrário, aprofundamos a continuidade na mudança tática que se fizer necessária. É uma forma de ser imprevisível, desapegado deste controle social habitual que acredita estar no comando quando não está vinte e quatro horas por dia nem consigo mesmo. Sabemos da relevância da prática pedagógica libertária em qualquer lugar, sob qualquer circunstância ou condicionamento do capital. Assim, matam um de nós e emergem cinco. Assim, a internet não contem nem dez por cento de nossas intenções ou feitos no mundo. Assim, podemos ser personagens de nós mesmos quando precisarmos estar próximos do inimigo, ainda que este nem desconfie de quem supre todo o resto de informações, realizações e afetos reais. Assim, todo o aparato de repressão é quase um combustível para nossa sede de justiça. Com amor, Liberdade do Ser.       


                      

                  

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Barcas S/A: privatização e destruição de um transporte público

            Em tempos de profundo mal-estar provocado por uma concessionária de serviços públicos no Rio de Janeiro, nenhuma nota da grande imprensa consegue alcançar o nível de realidade e a comparação inevitável entre passado e presente de uma boa matéria a respeito. O serviço de transporte marítimo de passageiros na Baía de Guanabara foi privado, estatizado e privatizado novamente desde sua criação no começo do século passado. Não importando o gestor do momento, sempre quem financiou embarcações e investimentos em geral fomos eu, você e todos os contribuintes através dos impostos. As passagens são apenas parte do sistema de arrecadação que sustenta a máquina da concessionária da vez. Sem o Estado, nenhuma barca foi construída ou reformada, nenhuma estação posta de pé, poucos empregados foram pagos. Justo que a população reivindique o direito de pagar passagens justas e ter um serviço adequado. As barcas sempre encantaram pois, além da necessidade do transporte, há todo um prazer e toda uma contemplação existencial nas travessias, algo difícil de se imaginar em outros transportes coletivos. Mesmo neste quesito, Barcas S/A opera uma má gestão sufocante, destrutiva e simbólica da opressão sistêmica sobre as liberdades individuais e coletivas neste século XXI.

          Conheci as barcas quando eram operadas diretamente pela Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro (CONERJ), estatal, ainda criança. Lembro de suas roletas mecânicas (como as de ônibus) que sempre eram liberadas ao povo gratuitamente quando em jogo de final de campeonato de futebol no Maracanã, quando em dia de Iemanjá para levar oferendas até o meio da baía e quando em dias de protestos e manifestações populares na Cinelândia. Impensável isso hoje em dia, não? Há quem critique fervorosamente por só ver nestas atitudes algo tipicamente perdulário por parte da máquina estatal. Eu vejo de forma diferente. Quando criamos benefícios que respeitam nossas tradições culturais, nosso lazer e nossa liberdade de manifestação, construímos sociedades mais saudáveis. A diminuição dessas oportunidades é proporcional ao crescimento da depressão e da violência no mundo atual, onde tudo só pode existir se der lucro sobre lucro.

                Entrava na barca, ainda criança, com um olhar que só cresceu e aprimorou durante todo o meu desenvolvimento. No começo, a travessia na Baía de Guanabara era um desafio para o infante niteroiense! Nossa, ir ao Rio era uma prazerosa  e instigante aventura. Adorava correr de um lado para o outro e gostava mais ainda da varanda de trás, localizada no segundo andar, onde podia ver a linda vista do pôr-do-sol e o balanço das ondas provocadas pelo motor da embarcação. A brisa era algo que só contemplava quando meus pais ou parentes mandavam eu ficar quieto e sentado diante daquele janelão de madeira que levantava pela metade e fazia um barulho enorme! O janelão tremia, fazia barulho, mas eu, quando criança, ainda podia ver a vista através dele sentado. Hoje em dia, nem pensar! Uma criança tem que ficar quieta numa poltrona macia (a da época era de madeira sem almofada) em que a única vista é a outra poltrona ou o adulto repressor por todos os lados. Isto porque a janela da barca atual é uma janela de ônibus, muito mal colocada para o ambiente em si e para o passageiro sentado. Ela fica alta, é pequena e corre pouco, o que evita a entrada da chuva mas também do vento. 

              Lembro que camelôs e pregadores de todos os tipos, mercadorias e ideias se apresentavam nas barcas sem repressão. Era possível presenciar pastor evangélico pregando, palhaço fazendo palhaçadas, socialistas e anarquistas chamando para protestos, grupos teatrais surpreendendo, músicos e artistas em geral abrilhantando a efervescência dos anos 80 por democracia. Eu era criança, não entendia como entendo hoje, mas tenho essas memórias na cabeça. Talvez alguns leitores mais velhos sejam testemunhas mais eloquentes do que tento narrar. Tudo isso foi sendo duramente reprimido dos anos 90 para cá até chegarmos ao ponto de ficarmos presos a equipamentos de TV instalados na embarcação que só fazem propaganda de produtos e encerram notícias rápidas e amestradas produzidas pela produtora do jornalista Sérgio Rezende. Quando a população ensaia manifestação pacífica com cartolinas e faixas, seguranças chegam para expulsar. O retrocesso e a opressão sistêmicos são nítidos e produzem seus efeitos. Acho que, no Brasil, os poderosos ainda podem se gabar de que a mentalidade conservadora enraizada ainda é uma vitória deles sobre o povo oprimido... encontram apoio entre aqueles que eram para se sentir ofendidos! Nada que, de 2011 para cá pelo menos, possa perdurar sem confrontos. À medida que se torna mais insustentável, mais protestos acontecem e os investimentos em repressão só denunciam a intenção de matar todos aqueles que contrariarem o óbvio. Ou o que se pensa que é óbvio.

               Já adolescente, as travessias das barcas foram ganhando outras nuances. A CONERJ só viria a ser privatizada em 1998, quando eu completaria 18 anos. Portanto, entre os 12 e os 18, minhas descobertas sobre a travessia das barcas ganharam impulso quando fumar só era um grande problema na frente dos meus pais. Fumávasse livremente em qualquer lugar menos na minha casa. Hoje é mais fácil fumar em casa do que em qualquer outro lugar, uma inversão que só aumentou minha tendência ao vício. Como o adolescente adora transgredir o proibido, já não era suficiente o ambiente interno ou da varanda das barcas. Subir no teto e ficar ali do alto sentado, mesmo que inalando a fumaça preta da chaminé junto, aquela que ninguém repara a poluição, era uma tentação que sempre curtia. Sozinho ou acompanhado. Isso se tornou impossível com as novas embarcações. Sem a varanda que tínhamos, ficamos também sem a escadinha que levava ao teto. Consequentemente, fomos privados da paisagem do teto. 

                Fumávasse e fudia-se muito nas barcas. Os banheiros públicos separados por gênero, objeto de um outro artigo meu aqui neste blog, ganhavam um fetiche particular nas embarcações. Eram os mais democráticos em termos de faixa etária dos frequentadores! Era possível entrar para dar uma simples mijada e sair com a cueca gozada, beijar muito e nunca mais encontrar o(s) parceiro(s) muito antes do advento hedonista de nossos tempos. Dizia-se que todo homossexual niteroiense começava ou vivenciava boa fase de sua vida sexual no banheiro das barcas e disso não duvido não. Preto, branco, pobre, classe média, jovem, adulto, idoso, feio, galã, sarado, gordo, magro demais, todo tipo e para todos os gostos, só saíam de lá mediante a repressão bem esporádica de seguranças que, em alguns momentos, nem queriam reprimir nada, queriam até curtir junto. Era aquele "espalha-brasa" momentâneo e prontamente tudo voltava ao normal. Hoje, com a localização dos banheiros não mais na parte de trás das embarcações e sim de frente para um público sempre, haja vista que a nova barca tem frente dupla e assentos correspondentes, o movimento dos banheiros caiu vertiginosamente. Conta para este fato a diminuição dos banheiros também. Ficar dentro deles fingindo que está mijando ou que está lavando o rosto ou o cabelo na pia por muito tempo acabou significando um estresse para quem quer fazer apenas suas necessidades. Fora as câmeras, onipresentes e oniscientes, que nunca sabemos se estão ali devidamente postas a vigiar.

        As barcas da madrugada eram sensacionais. Não apenas pela necessidade do transporte como também pelo fato de que a vigilância, na época bem eventual ou esporádica durante o dia, praticamente não existia nas madrugadas. Logo, fumar e fuder de madrugada nas barcas, subir no teto ou ficar no banheiro durante toda a travessia, era algo muito mais fácil e confortável. Quem voltava da curtição, noitada, ou como chamam atualmente na gíria importada de São Paulo, "balada" dormia tranquilamente e, não raro, fazia diversas viagens de ida e volta do Rio para Niterói e vice-versa. Era simplesmente esquecido ali até que aquela embarcação fosse trocada por outra e viesse um marinheiro para te acordar e avisar do fato. Hoje em dia, não existem mais as barcas da madrugada porque o governador cedeu às Barcas S/A o direito de não mais executar o serviço, considerado um prejuízo para a empresa.

                Sobre as viagens gratuitas para se ofertar a Iemanjá a devoção do dia 02 de fevereiro, vale ressaltar que foram proibidas por determinação da ex-governadora evangélica Rosinha Garotinho. Jogos no Maracanã não existem desde as reformas infindáveis para a Copa do Mundo e as finais de campeonato de futebol são sufocadas pela polícia em todo o trajeto das torcidas. O único protesto recente em que as barcas tiveram gratuidade assegurada oficialmente foi aquele que interessava ao governador, no caso o da batalha para se manter os royalties do petróleo tal como a legislação sobre o tema desenhava ao Estado do Rio de Janeiro. Neste dia, foram oferecidos bilhetes de graça para a população lotar a manifestação dos bandidos por verbas públicas.


                  Uma das promessas da privatização era construir a estação das barcas de São Gonçalo e, assim, desafogar o trânsito de veículos em Niterói e na Ponte Rio-Niterói. Não construíram e o trânsito só piora. Construíram o terminal de Charitas, uma forma de assegurar o transporte às pessoas mais abastadas, com tarifa caríssima de um transporte "seletivo". Custa R$12,00 para atravessar a baía entre Charitas e a Praça XV. Mesmo assim, sempre lotados, os catamarãs atrasam constantemente e já incomodam até mesmo aqueles que pagam quase quatro vezes a passagem no Centro de Niterói. Com o reajuste previsto para 01 de março de 2012, já autorizado pelo Governo do Estado, as passagens devem subir de R$2,80 para R$4,50 e, mesmo com estes indecentes 61% de reajuste, as barcas continuarão recebendo subsídios estatais. Um na passagem de quem usar o bilhete único (30% do valor serão subsidiados pelo Estado) e outro na construção de embarcações novas, já que a empresa, sempre alegando prejuízos em 14 anos de operação, nunca deixa de ganhar mais e mais.           
                  
                Este pensamento único de que tudo deve servir apenas para dar lucro, sabendo-se que o lucro é apenas para poucos, cria mal-estar generalizado. Não apenas pelo fator econômico da acumulação injusta de recursos nas mãos de poucos, algo cada vez maior à custa de trabalhadores cada vez mais escravizados, motivo que já seria suficiente para protestos diários aqui como vemos na Grécia. Mas também porque quando o capitalismo oferecia acessos livres ou vistas grossas, ainda que restritos a momentos especiais, mostrava respeitar outras formas e possibilidades de felicidade que o ser humano desenvolveu para além de sua lógica restrita. Como libertário, minha defesa é a de que o acesso livre seja permanente e irrestrito, uma idealização que norteia minhas intervenções no mundo com o qual tenho que lidar. Sei que se trata de algo a construir na sociedade antes de exigi-lo de forma limitada a um transporte público apenas. Mas o fato é que as barcas já foram muito mais baratas, eficientes e prazerosas durante o período de administração direta estatal.

               Se havia um cabide de empregos pesado, quem o determinava eram os mesmos políticos impunes que hoje transferem recursos públicos à iniciativa privada. Se o custo econômico, social, cultural e afetivo da iniciativa privada é gigantesco e insuportável, não vejo razões maiores para mantê-la administrando aquilo que de forma enganosa julga ser sinônimo de eficiência. Sabemos que boa parte desses recursos públicos destinados a ela, enriquecem seus empresários, os próprios políticos, não representam melhoria salarial dos funcionários, de manutenção ou de infraestrutura do serviço. Para quê continuar defendendo algo que se tornou uma dor crescente, que começa no íntimo de cada um que se utiliza do transporte, perpassa o custo de vida de famílias e empresas com o valor das passagens e tributos ali embutidos, e chegará, se assim permanecer, à morte de milhares de pessoas por negligência e economia dos custos de manutenção das embarcações?

               É por essas e outras que todos os protestos, ainda que contem com confrontos diretos, são necessários e justos. Em algum momento de nossas vidas, passamos a ceder vida demais a uma lógica que nos sufoca sobremaneira. Parar com essa máquina de homicídios cotidianos é uma determinação que simbolicamente está representada na luta pela cassação da concessão das Barcas S/A e a consequente constituição de uma sociedade de trabalhadores do setor com passageiros e usuários do sistema em torno de uma gestão que não seja simplesmente estatal, na mão dos políticos, nem simplesmente privada, na mão de empresários gananciosos, enganadores e incompetentes. Uma gestão coletiva e socializada, cujo parâmetro seja a qualidade do serviço, o baixo custo e a garantia das liberdades individuais e coletivas devidamente acordadas para o espaço público, num resgate necessário e urgente da dignidade da pessoa humana.               

domingo, 29 de janeiro de 2012

Desenvolvimentismo Autoritário do Rolo: uma análise profunda da Era Lula

             Ligo a TV e assisto aos telejornais do dia. Sim, sou das raras pessoas que curtem assistir a todos os telejornais possíveis, além de ler os impressos ou os digitais e, se der tempo, ouvir o Boechat do rádio. Acompanho blogs, leio o que os sites das principais correntes ideológicas em disputa no mundo têm para nos apresentar. Não satisfeito, ainda leio livros! Claro, não apenas o que os meus professores ou companheiros querem mas aqueles que aparecem e chamam minha atenção também. Como sustento certa preocupação excessiva em popularizar o conhecimento das ciências sociais, algo que me libertou de tantas manipulações e, se eu desse mole, acabaria me aprisionando em outras tantas, revezo-me atualmente entre leituras, certa dose de interatividade virtual e conversas francas com nosso povo na rua, no bar, nos espaços sociais de convivência. Como um professor-estudante brasileiro que se faz de bobo às vezes mas não é idiota que se acha malandro, sinto-me no dever de tecer considerações sobre o que vejo desses tempos de Era Lula. 

      Talvez fosse mais apropriado a História um dia cunhar este período histórico que se arrasta sobre o começo do século XXI no Brasil como "Era  do Desenvolvimentismo Autoritário do Rolo". O leitor vai entender por que chego a essa conclusão. Todos nós fazemos parte de um contrato social imposto e aceito simultaneamente que vem nos assegurando uma cadeia de ineficiência, desespero e fingimentos de todo o tipo e para tudo. A figura mitológica do Lula, não o passado que o projetou na vida pública mas o que fez dele para justificar sua guinada da social-democracia ao híbrido populista-liberal, sintetiza exatamente o que nós, enquanto sociedade, estamos sustentando ideologicamente na confiança de que nos tornaremos privilegiados de alguma forma no meio do caos.

         Sim, é uma sociedade de indivíduos que disputam ferozmente a expectativa do privilégio a qualquer custo, quando, em verdade, estão submersos no desespero da sobrevivência. Ninguém engana ninguém e todo mundo se engana quando tira onda que tem o que não tem, quando cobra do outro o que não é ou sequer tem moral para cobrar, quando pede ao jovem de hoje o foco em atividades que não lhe rendem mais o que rendiam antigamente. A mídia corporativa insiste em vender o peixe de um grande desenvolvimento econômico que vem assegurando empregos em massa. Você anda pelas ruas e avista facilmente um número cada vez maior de moradores de rua, pedintes, trabalhadores informais, desempregados, prostituídos de todos os pedigrees, bandidos e "malandros". Nas famílias da dita "classe média", o que mais tenho visto é idoso sustentando com suas aposentadorias e pensões quase todos os parentes. O que chamam de "classe C", ascendente e vigorosa, é um grupo que se apoia financeiramente em um pacote de rolos complementares: bolsas estatais que deveriam ser emergenciais e não eternas, aposentadorias e pensões de idosos que trabalharam em época de maior estabilidade, imóveis de parentes ou ocupações de áreas urbanas abandonadas para moradia, empréstimos, dívidas em excesso, pequenos roubos, redes religiosas de assistência e apoio mútuo, negócios sexuais que se travestem de amizade, atividades marginais paralelas (como a venda de pequenas quantidades de drogas, produtos contrabandeados, acessos "por amizade" a órgãos públicos ou instituições privadas, etc.). Ah sim, muitos são trabalhadores e estão empregados! Que maravilha, não? Perguntem quanto ganham em média e se sustentam plenamente todo o consumismo que ostentam as estatísticas apenas com esses salários. Nem  falo do consumismo, a sustentação do básico depende cada vez mais de "ganhos complementares" ou rolos! Você pode me achar radical em expor dessa forma mas sabe que estou tratando das coisas exatamente como estão fluindo.

         De fato, quando estes indivíduos conseguem crédito para montar seu próprio negócio lícito, o que nem sempre bancos ou financeiras estão dispostos a oferecer aos mais pobres, encaminham-se para este rumo de trabalho honesto. Isto só demonstra o quanto nosso povo quer trabalhar, quer viver honestamente, quer se livrar dos patrões escravocratas, das dependências familiares ou das atividades marginais que muitas vezes foram coadjuvantes na conquista do capital inicial para fazê-lo. Assim pipocam salões de beleza, lan houses, pequenos comércios, prestação de diversos serviços que exigem pouco estudo além do executável e operacional de pouca sofisticação intelectual. Isto é um outro retrato do desenvolvimentismo autoritário do rolo: quais as opções que restam a um povo com baixa escolaridade? Que desenvolvimento é esse que não tem como mola-mestra o investimento maciço em educação pública, em professores, em ciência e em tecnologia? Certamente um desenvolvimento enganoso, só para inglês ver.  E os ingleses, que não têm nada de bobos, veem claramente que o PT e aliados fazem um jogo populista que serve mais ao repasse da maior quantidade de verba pública aos mesmos privilegiados da história brasileira, enquanto massageia o ego dos mais pobres com benefícios que são verdadeiras esmolas. Que potência econômica é esta que se julga emergente no cenário internacional mas que não consegue oferecer dignidade real ao seu povo?  

             O PT defendia - e continua defendendo - políticas públicas que estimulem o crédito oficial e a assistência social aos mais pobres mas o abismo entre a propaganda oficial e a realidade de quem precisa é enorme na prática, o que faz os poderosos de sempre, aqueles que outrora tinham medo do PT no poder, serem os principais aliados políticos da tática do fingimento de esquerda. Da burocracia às exigências de comprovação de renda, da dificuldade em lidar com regras e acessos por conta da falta de estudo do povo, vai um leque de bloqueios na ponta que inviabiliza muita coisa. É mais ou menos assim: finge-se que se aplica a saída real para a miséria enquanto se administra, na verdade, um pacote de rolos para manter o povo na expectativa do privilégio. Àqueles que, mediante tal conhecimento, não se corromperam nos acessos disponíveis da máquina autoritária, duas medidas estão claramente postas: asfixia econômica até a submissão completa ou polícia para reprimir suas manifestações. 

       Quem se deixa enganar pela expectativa do privilégio, não luta para ter o que lhe é seu por direito.  Não se faz a riqueza das novelas de TV da noite pro dia nem trabalhando honestamente: o que temos, de fato, é um estímulo enorme para o sujeito se tornar bandido ou malandro. Uma espécie de malandro que, na real, é um grande otário porque procura tirar proveito do próximo em igual estado de dificuldade. Este é o ladrão de ônibus, o sujeito de classe média com vícios de cleptomania, o colega de trabalho que inventa ou cria caso para queimar o filme do outro para ascender na bajulação do patrão. Quem quer trabalhar de fato, não raro, não recebe pelo que trabalha ou é enrolado exaustivamente até alcançar uma esmola diferenciada nas próximas eleições, nos contratos temporários (mesmo os da iniciativa privada, cada vez mais hostil a direitos trabalhistas mínimos), nos projetinhos do terceiro setor, nas mais diversas espécies de "subemprego", trabalho servil ou semi-escravo, que constituem as estatísticas grosseiramente manipuladas do desenvolvimentismo autoritário do rolo. 

         Há um grande contingente de trabalhadores que orbitam a Corte com estes préstimos, muitas vezes vendendo a janta para comprar o almoço, comendo ovo e arrotando caviar, vivendo de "arte-do-faz-de-conta-do-que-se-é-ou-do-que-se-pode" combinada com pequenas atividades marginais (drogas, prostituição e revenda de roubos são exemplos típicos), dependência   familiar e dívidas sobre dívidas.

              O despertar de consciência do nosso povo quanto à sua realidade de opressão, sem expectativa de privilégios mas sim expectativa de direitos em comum, e a coragem de encarar projetos coletivos de apoio mútuo por causas que elevem todo mundo a condições mínimas de dignidade é a única saída para o que vivenciamos. No desenvolvimentismo autoritário do rolo,  poucas categorias profissionais estão sendo contempladas com salários razoáveis. À exceção do serviço público, nenhuma com a mínima estabilidade necessária para o sujeito pagar suas contas em dia ou planejar minimamente sua vida. Outro retrato da realidade de nossa "era de esplendor" é a quantidade de pessoas que disputam concursos públicos hoje em dia, deixando claro que tem muita gente insatisfeita, subempregada ou desempregada pela iniciativa privada, sem capacidade real de captar crédito para desenvolver um próprio negócio.

          Todo o incentivo que hoje é maciçamente abordado pela mídia corporativa e pelo governo federal no sentido de se formar mais técnicos de nível médio está no mesmo caminho que outrora se trilhou no sentido de formar graduados. Se hoje há poucos técnicos, o que eleva a procura por profissionais e seus respectivos salários no mercado, esta não será a realidade amanhã quando formarmos uma quantidade tal que sirva ao capitalismo como mão-de-obra barata. O desenvolvimentismo autoritário do rolo é ciclo capitalista do momento e, como tal, não valoriza seres humanos. Valoriza o lucro de poucos. Sem alterar a base de sustentação dessa lógica de mercado mesquinha e sem nenhuma referência na qualidade dos serviços que tanto propaga enganosamente, continuaremos bonitas marionetes, ora privilegiadas e metidas nesta condição que só cabe uma minoria, ora mal pagas, desempregadas ou subempregadas, sendo parte da maioria de novo. É de  uma burrice inquietante do trabalhador alimentar disputas entre trabalhadores que determinam quem vai comer, morar, sustentar seus filhos ou quem não vai. Defender repressão ostensiva a pobres que incomodam aos que estão na classe média hoje trata-se de uma visão de mundo limitada, incapaz de resolver o problema social. É tão desumano e tão míope que desconsidera o fato de que não estar na condição de privilegiado é quase a regra deste sistema para todos nós. Há toda uma pressão de poucas pessoas poderosas para submeter milhões de pessoas cada vez mais e é contra estes poderosos (e seus privilégios constituídos a partir do roubo de todos nós) que devemos lutar. O sujeito que fica reproduzindo o discurso que interessa aos poderosos, como aquele que atribui culpa individual simples, como se as pessoas desempregadas ou subempregadas em geral não quisessem trabalhar, ou fossem apenas incompetentes, não quer ver a realidade de um mercado de trabalho que não paga quem trabalha ou paga cada vez menos.

            Eu desafio cada um que se encontra em condição privilegiada atualmente a contar a verdade de como conseguiu tal feito. Preferem falar de amenidades, perguntar sobre a vida alheia, fazer disputas de quem tem mais propriedades, carros, bens os mais caros e modernos. Ou então elencam histórias heroicas de esforço pessoal que precisam de uma análise mais acurada.  De cada dez nessa situação, asseguro um que seja exceção de fato, que ganhou trabalhando muito e aproveitando a oportunidade de profissões mais bem remuneradas. Que aproveitou até a condição maior de estabilidade do passado e aí é um recado aos mais velhos que veem nos jovens de hoje um bando de gente vagabunda e incompetente: quero ver  trabalharem como trabalhamos, mostrando cada vez mais serviço e tomando cada vez mais voltas, portas fechadas na cara ou abusos de todo tipo. Os outros nove bem-sucedidos da estatística invariavelmente contaram com um dos elementos a seguir: herança de bens ou nome profissional; acessos privilegiados ao poder por conta de laços de parentesco ou amizades; ganhos com corrupção ou outros tipos de atividade marginal (nesta lista, incluo favores ilícitos, tráfico de drogas, roubos, prostituições não assumidas, contrabandos, revendas de roubos, etc.); casamento com gente de situação privilegiada; financiamento direto da família. Sem estas possibilidades citadas, as mesmas que os capitalistas chamam de "competência individual" porque sonegam a verdadeira fonte do capital ou do prestígio inicial, o desenvolvimentismo autoritário do rolo reserva aos demais a miséria quieta ou a revolta inerente. Na opção desta última, a polícia para dar porrada, expulsar, prender ou matar, a cadeia, o cemitério...

            Neste sentido, não há outra saída para o perigoso engodo do PT no poder que a consciência cada vez maior da maioria de que não deve lutar mais para ser privilegiado às custas da humilhação do próximo. Paralelamente, também não devemos ficar conformados com esmolas e assistências sociais de emergência, com rolos e promessas quanto a empregos que nunca chegam ou que, quando chegam, duram pouco ou nunca pagam o combinado. Temos que parar de fingir que estamos um melhor que o outro, assumir nosso papel na mudança da condição de todos, brigar unidos por direitos mínimos à dignidade humana. 


          Todo mundo tem que comer, morar, vestir, estudar, ter acesso à saúde, ao transporte público, se divertir e ter liberdade para pensar, se manifestar e ser tudo aquilo que não prejudique o outro. Um sistema econômico que não garante isso não nos serve. Produz mais desespero, conflitos e doenças, instabilidade física, psíquica e emocional. Até quando vamos ficar transferindo culpas a indivíduos quando há algo em comum que à grande maioria aflige de igual pra igual? Até quando vamos ficar atribuindo a epidemia de câncer ou de depressão a causas vinculadas a um comportamento individual, à    genética do indivíduo, à fraqueza, à falta de Deus no coração? Aprendi que um fenômeno humano deixa de ser individual para ser coletivo ou social quando se percebe uma grande quantidade de pessoas manifestando, sofrendo ou vivenciando o fenômeno. É o que ocorre entre a gente no que se refere a dificuldades econômicas que tornam a vida insuportável: elas vêm gerando consequências visíveis na qualidade de vida.


              Ora, se não temos educação de qualidade,  temos cada vez menos profissionais de qualidade em todas as profissões. Que importa? Temos que crescer! Ora, se temos cada vez menos profissionais de qualidade em todas as profissões, temos mais pilantras atrás de dinheiro sem garantia de serviço bem feito. Que importa? Temos que crescer! Se temos mais pilantras atrás de dinheiro fácil e qualidade zero em todos os serviços prestados, temos médicos que não sabem tratar pacientes, professores que não sabem ensinar, engenheiros que não sabem fazer conta, advogados que não sabem escrever, e por aí vai em todas as necessidades que temos por serviços em geral. Que importa? Temos que crescer! Se então temos pessoas irresponsáveis praticando toda a sorte de irresponsabilidades, deveríamos recorrer a justiça e processá-los, correto? Não, eles também estão lá na justiça, na polícia, nos governos, nos parlamentos. Que importa? Temos que crescer! É assim que estamos vendo a escalada de serviços mal prestados, contas e impostos cada vez mais caros, gente se matando de trabalhar para pagá-los e todo  o retorno que se precisa é malfeito, é feito sem cuidado, é feito sem conhecimento, é feito sem a preocupação com a punição se houver qualquer tipo de problema. Estamos num país de gambiarras, jeitinhos, emendas e muitos, mas muitos curativos, para dar conta das consequências de tanto pedantismo e mediocridade. Senhores, não adianta privatizar. O problema não é de gestão pública ou privada. O problema não é de metas quantitativas, pois estas não provam nada e só agravam as deficiências. O problema é de mentalidade. O desenvolvimentismo autoritário do rolo ensina que tudo deve ser feito de forma a se tornar um privilegiado imediato de qualquer mínima ação ou esforço. Em outras palavras, o bem-sucedido é o que se acha mais malandro, é o que tira mais do outro e, sem saber o quanto perde numa escala de ação e reação, já que todos precisam um dia do serviço do outro, é o que acaba sendo o mais otário porque perde o que tem de mais precioso quando mais precisa. Faz o quê diante desse trauma? Mais um rolo? Depende. Há situações definitivas, como a morte por exemplo, que não oferecem alternativa. Outras situações são impactantes, como ser injustiçado e acabar culpado pela injustiça que sofreu. Outras são corriqueiras, como perder sempre o que se custou tanto suor para ganhar.      


             É bom que se diga antes que pensem que estou aqui defendendo o PSDB ou "a direita": não, não defendo nenhum que defenda o mesmo modelo econômico com retoques diferentes. Para mim, na ditadura atual, PT e PSDB rivalizam como Arena e MDB rivalizavam durante a ditadura militar, ou seja, buscam o mesmo bipartidarismo estadunidense que só serve a uma fachada grosseira de democracia. Cada um fez e faz seu papel no capitalismo internacional, de acordo com a conjuntura necessária, de maneira que se o PSDB hoje chegasse ao poder daria continuidade ou até fortaleceria os princípios do desenvolvimentismo autoritário do rolo. Talvez privatizasse uma coisinha a mais aqui ou outra acolá...    

          Não adianta mais fingir, ocultar, inventar flores. Temos que ter flores reais! Nenhuma polícia pode deter o desabrochar das rosas de Recife, Vitória, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Teresina, Pinheirinho, Anonymous, Stop SOPA, Stop ACTA, Movimento Ocuppy, Professores e Bombeiros do RJ, estudantes do país inteiro. Convido você a construir esse jardim para contemplarmos e não mais esperar que governantes egoístas e mesquinhos o façam por nós! Questioná-los sempre, exigir e apontar suas irresponsabilidades, mas não perder tempo e gerações com uma colaboração indireta no projeto genocida: aquela que não enxerga o seu próprio papel na História. Não mais acreditar que a iniciativa privada representará qualquer qualidade maior que a visão míope e obtusa da usura de poucos sobre a existência de tudo. Vamos compreender um ao outro com menos disputas e mais apoios mútuos, vamos valorizar a sensibilidade e o prazer de elaborarmos juntos: está aí um caminho para aniquilar a mentalidade capitalista. Parece cristão mas nem os cristãos estão dispostos a executá-lo! Parecem mais preocupados em fazer o jogo da discriminação das marionetes, outra faceta do desenvolvimentismo autoritário do rolo: desunir, desunir, desunir para então manipular melhor. Uma esmola para um, um cargo para outro, 50% da arrecadação de impostos para especuladores... porrada nos gays! Estes padres e pastores preconceituosos prestam um bom serviço ao capitalismo e às dificuldades humanas. Eu não quero mais rolo, não quero mais gratidão eterna, eu quero solução digna! E a solução digna, eu sei, não habita no programa "Minha Casa, Minha Vida", mas sim no projeto de sociedade "Nossa Casa, Nossa Vida".                     

             

               
                      

                

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Guerra cibernética: do virtual ao real

    O grupo de hackers/crackers conhecido por "Anonymous" ou, em português, "Anônimos" é uma novidade significativa na organização coletiva de pessoas que atuam no mundo virtual com o conhecimento de tecnologia de informação (TI) suficiente para fazer bons estragos no sistema em nome de boas causas. Sabe-se das dificuldades que representa agir neste meio mantendo-se em sigilo absoluto, uma vez que para cada um que age na clandestinidade existem dez profissionais capacitados pelo sistema para defendê-lo contra ataques cibernéticos. Há, porém, um aspecto louvável entre aqueles que atuavam de forma individual e estes que buscam uma atuação coletiva: a consciência política libertária associada à formação tecnológica estão construindo uma nova ética no meio até então plenamente manipulado pela ética empresarial ou das grandes corporações econômicas. 

              O sistema capitalista tem se utilizado dos avanços tecnológicos ao longo de toda a sua história de trezentos anos de hegemonia crescente com dupla conotação politico-ideológica:  por um lado, convence a população dos novos recursos que adiantam cada vez mais suas vidas cotidianas. Este seria o aspecto positivo das novas tecnologias, desde aquelas primeiras máquinas que substituíram o trabalho humano exaustivo por uma produção em série, em quantidade e tempo recordes, até a era digital. Diminuir o esforço humano, as barreiras da condição física humana sobre a natureza, sobre as distâncias, sobre o tempo, sobre a sua própria capacidade de produção e consumo. Nisto, de fato, avançamos muito nestes últimos trezentos anos de história, sobretudo nos últimos cinquenta. Incomparável, aliás, o avanço tecnológico da humanidade nas últimas décadas sobre todos os milhares de anos antecessores. Isto é um ponto. Alguns creditam simplesmente ao capitalismo, outros veem nele um meio por onde se processou o que a humanidade conseguiu desenvolver a partir de sua própria experiência e conhecimento acumulados ao longo de um milhão de anos. 

           Para este segundo grupo, o qual integro, não há por que comemorar a glória do capitalismo nos feitos tecnológicos. Isto por que houve uma evolução contínua e uma involução permanente. É aquele ditado popular que diz "deu com uma mão e tirou com a outra". Experimentamos e alcançamos evoluções tecnológicas contínuas tendo na lógica capitalista as bases econômica, filosófica e moral por onde direcionamos erroneamente o sentido das descobertas. Para e pense: se era para que trabalhássemos menos e desfrutássemos mais dos avanços tecnológicos, todos nós enquanto espécie, por que vem ocorrendo justamente o contrário? Quanto mais tecnologias dispomos para nos esforçar menos em trabalhos insalubres, exaustivos, repetitivos, desumanos, podendo deixar tais tarefas para as máquinas, e assim darmos um salto coletivo de qualidade de vida, mais estamos tendo que trabalhar ou nos sujeitar a esmolas, desmandos, abusos, doenças, manipulações, depressões e toda a sorte de escravização moderna. A esta resultante, que é de ordem cultural e move o mundo por interesse econômico no domínio e no privilégio de poucos sobre muitos, é que atribuo a involução permanente que representa a manutenção do capitalismo sobre os avanços tecnológicos.  

               Cabeças geniais não são construídas de forma individualista, dependendo de pai, mãe, comida, educação, saúde pública, ambiente saudável, trocas de experiências com os diferentes humanos e, ainda, humildade para ler e compreender as contribuições de todos, dos mais estudados aos analfabetos de pai e mãe. Perceba que os maiores CDF´s ("cus de ferro", expressão que qualifica os "nerds" no Brasil, ou seja, os estudantes mais aplicados) e mesmo os adultos mais cultos e sábios sempre foram e sempre serão os mais humildes no jeito e no trato com os outros, não se importando com exibicionismos materiais ou de domínio. 

            Quem tira onda e pisa no outro é 171, aproveita-se muitas vezes da habilidade com a comunicação para dizer que conhece profundamente o mundo e não conhece. Paga por isso. É um erro que só interessa aos mesquinhos o patrocínio de determinadas biografias como se fossem exemplos de heroísmo porque construíram impérios materiais à custa da exploração de muitos. Para todas as religiões existentes no mundo, não à toa, o desapego material é chave para a libertação da condição humana. Só não vê quem se aproveita da fé, do desespero e da ignorância dos outros. Só o capitalismo, criador de tanto mal-estar social, baseia-se no acúmulo de dinheiro nas mãos de poucos, na superficialidade das relações e na estranha crença de que é a luta do indivíduo sozinho que pode torná-lo superior. O Ser humano é maior do que sua prisão mental ao Deus Mercado, pode ser maior e será maior, aproveitando-se, inclusive de tecnologias e paganismos criados durante sua fase histórica de passagem. É o que acredito. É o que vejo acontecer com a guerra cibernética em curso. É o que também observo nos crescentes protestos contra os malefícios causados pelo egoísmo, pela vaidade, pela hipocrisia e pela ganância.

              A história nos conta que Santos Dummont, criador do avião, teria entrado em depressão e se suicidado após ver sua descoberta sendo utilizada para a guerra. O avião deveria servir à humanidade para transportá-la em tempo menor a distâncias maiores, de forma segura e sensata. Não para carregar bombas e munições capazes de exterminar milhares de vidas por domínio e ganância. Steve Jobs, fundador de um império como a Apple, é idolatrado no mundo por sua criação da era digital - os computadores cada vez mais portáteis. Mas sua empresa, aquela que ele administrava ou ao menos supervisionava até bem pouco tempo antes de sua morte recente, já se utilizava de mão-de-obra infantil escrava na China para produzir e vender a preços baratos. Isto tira o mérito da descoberta, desqualifica os donos irresponsáveis, rebaixa o Ser humano que deveria ser beneficiado pela tecnologia da espécie. A tecnologia pertence à espécie humana e não ao indivíduo que a criou, que a produz ou que só tem o direito de consumi-la por possuir dinheiro num mundo que ainda não remunera a maioria trabalhadora dignamente. 

            Se era para que muitas pessoas se beneficiassem com uma comunicação instantânea e globalizada, os IPads ou IPods não poderiam sacrificar crianças ou adultos que os produzissem, deixá-los sem comida, sem saúde, sem direito de usufrui-los. Isto, na minha visão, tira da Apple e da Foxccon o direito de existirem na China ou em qualquer lugar do mundo. Será que sou radical? E quem defende a propriedade privada de uma meia-dúzia sobre o sacrifício de muitos é o quê? 

             Todos que lucram ou consomem produtos feitos à base de escravidão são eticamente comprometidos com a sustentação dessa distorção. Ultimamente eu tenho boicotado produtos chineses em geral, pois aquele precinho baratinho e aquela qualidade vagabunda são proporcionais ao desespero máximo de muita gente chorando no meu ouvido quando durmo. Não quero, choro em lembrar, em ter a consciência disso e fingir que sou alheio. Não sou, alienação ou alheamento são construções culturais dos que dominam àqueles que se permitem dominar achando que estão (ambos) tirando onda com a desgraça alheia que retorna. O modelo chinês não está restrito à terra que faz isso sendo governada pelo Partido Comunista (!?). É modelo internacional, é dinâmica própria do sistema capitalista na fase atual de desenvolvimento, de maneira que buscar mão-de-obra barata (ou escrava), subsídio estatal e matéria-prima onde eles estiverem disponíveis no mundo inteiro, tem sido verdadeira obsessão covarde. Na China, na Malásia, na África, ou mesmo aqui, na sexta economia do planeta (à frente do Reino Unido!!!).

                A briga virtual é uma subversão a este sistema por dentro, com conhecimentos tecnológicos avançados e consciência política de que o capitalismo passou dos limites. Se a internet nasceu livre foi um equívoco sistêmico proveniente da contradição dos poderosos ou da capacidade dos estudiosos que trabalham para eles mas que não concordam tanto assim com seus abusos. Permitiram em meio ao discurso de liberdade que o capitalista liberal enche a boca pra dizer que defende mas que, em verdade, abomina se chegar ao ponto de ameaçar sua propriedade privada e seus privilégios. O limite entre ciclos autoritários e ciclos democráticos sempre foi justamente este: recorria-se ao autoritarismo dos regimes de exceção sempre que a classe trabalhadora passasse a se organizar mais, a lutar mais por seus direitos, a exigir mais divisão do bolo. Estamos em um momento de esgotamento da expansão global da exploração máxima e esta é a razão da crise econômica mundial, baseada na pretensão dos exploradores de que sempre dá pra tirar mais um pouco. Logo, a pressão por limitar a circulação de dados e informações na internet invocando o direito autoral e o necessário pagamento pelo uso das obras à esta altura do campeonato, em que uma geração inteira já ficou habituada a baixar música, vídeo, livro e tudo o mais, sem pagar porra nenhuma, e, mais que isso, habituou-se a estudar a coisa, como circula e como funciona, ao ponto de derrubar sites de importantes instituições públicas e privadas, chega a ser cômico.

               A internet é anárquica por sua natureza e o estudo da Tecnologia da Informação, a formação política de profissionais vinculados à área, uma realidade cada vez mais presente e cada vez mais ameaçadora a um sistema econômico que se subordinou à informática para transmitir informações de toda a espécie e que não contava em perder o controle da situação a tal ponto. Agora, querem recuperar a censura e o pagamento de direitos autorais para que empresas capitalistas de mercado superado pelo avanço tecnológico sejam protegidas ou resgatadas. Tarde demais, senhores!        

              

sábado, 7 de janeiro de 2012

Banheiros e motéis públicos

        Uma sociedade decente cuida das necessidades fisiológicas de seus cidadãos. É uma questão sanitária importante, está vinculada à eliminação de focos de doenças e tem na manutenção de certo odor razoável às calçadas, ruas e bancas de jornal um importante argumento. Ouvi sempre que não deveria urinar na rua. Mas, como tudo no Brasil, a gente ouve da mesma pessoa que não deve quando esta está na frente de outra. Quando a situação obriga e ninguém está por perto, o discurso muda, a interdição é até incentivada, denunciando que vivemos uma grave tradição histórica moralista. Pois assim é para um mijo banal, assim é para tudo que se faz por aqui. 

           Eu defendo a oferta e a manutenção de banheiros públicos gratuitos. Limpos, conservados, como devem ser os banheiros de nossas casas particulares. Se vejo que é obrigação do usuário fazer o possível para não sujar de forma absurda, quebrar ou tornar insuportável o uso por capricho pessoal, acho igualmente um absurdo ter de pagar por isso e ver como os comerciantes em geral nas grandes cidades tratam aqueles que têm necessidade mas não são (ainda ou naquele momento, pelo menos) seus clientes. Quando assisto a discriminações do tipo, mesmo que não sejam comigo, costumo deixar de ser cliente do estabelecimento na mesma hora. Banheiros de graça nas ruas e praças, em quantidade suficiente para o público e limpos, são a única solução para se evitar xixi e cocô na rua, ou ainda, filas indesejáveis aos comerciantes nos banheiros de seus estabelecimentos. Enquanto não temos isto, trata-se de gesto humanitário e de lei a obrigação de se permitir que qualquer um use banheiros disponíveis ao público sem serem discriminados por razão alguma. Muito menos financeira.

           Fico triste quando assisto cidades como Niterói e Resende, no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, serem, dentre as cidades que conheci até hoje, as piores no trato com as necessidades fisiológicas alheias. Niterói constrói rampas e caminhos delimitados para deficientes mas não suporta que seres humanos em geral façam xixi e cocô em seus comércios. Não investe em banheiros públicos, a não ser que sejam pagos. Com efeito, é campeã no mau cheiro urbano. A cidade que se diz padrão classe A de renda per capita segura chave de banheiro de bares e restaurantes com unhas e dentes. Exige grana, tem horror de quem faz xixi na privada. Não à toa gasta bilhões de litros de desinfetantes e criolinas em calçadas e bancas de jornal todos os dias. A contaminação do ambiente passa a ser dupla: primeiro, pelo excesso de micro-organismos lançados sobre áreas calçadas; segundo, pelo excesso de produtos químicos utilizados sobre as mesmas calçadas onde diversas pessoas passam ou dormem, respiram ou encostam. Os males provocados pela má intenção são cultivados no sistema do mal-estar profundo e coletivo nos mínimos detalhes do cotidiano e não há curandeiro, igreja ou remédio que dê conta das razões por que atravessamos modismos como depressão generalizada, fobias, cânceres e tantas esquisitices patológicas.        

           É termômetro de evolução da espécie permitir e sustentar o uso de banheiros gratuitamente. Se sabemos que todo o saneamento básico foi importante para evitar uma série de doenças onde ele já existe (outra  dificuldade no Brasil), como vamos proibir ou criar dificuldades financeiras para impedir pessoas de usar banheiros???? Então, estamos diante de mais uma triste contradição do sistema do mal-estar profundo e coletivo.  Temos a tecnologia para se evitar um mal maior mas, por ganância, optamos em continuar fabricando o mal maior, ainda que todos possam um dia necessitar de soluções rápidas para o que, em verdade, é inevitável e natural. O que esperar de quem está proibido de usar uma privada por longo percurso? Não apenas uma sujeira na rua mas também um constrangimento pessoal, um fator de diminuição da potência alheia, uma vez que somos uma espécie que um dia julgou possível administrar seus excrementos, isolá-los, oferecer-lhes destino salutar. Quando criamos dificuldades ao próximo a este ponto, estamos contribuindo também com revoltas que são frutos de mágoas desenvolvidas pelo capital. Ou pela ausência dele, impeditivo que justificou o fato do sujeito não ser cliente do comércio ou não poder utilizar o banheiro público pago quando precisou.

           Citei no tópico outra defesa que talvez gere mais polêmica que a dos banheiros: defendo também a manutenção de motéis públicos, sendo que nestes toleraria a cobrança de R$1 (um real) de taxa simbólica por duas horas de uso. Seria o "motel popular". Justifico a importância pelo fato de que considero fazer sexo algo extremamente relevante para a saúde pública e individual também. Sexo seguro, sem dúvida. No ambiente formatado de pequenos quartos com camas, poderíamos acoplar os banheiros públicos e oferecer camisinha gratuitamente. Uma máquina que vendesse produtos de sex shop seria opcional. O sujeito não poderia dormir ali, algo mais adequado a albergues e abrigos. A ideia seria utilizar o espaço para dar aquelazinha(s) fundamental(s). Logo, não haveria discriminação por sexo, sendo apenas o limite da maioridade estabelecido para o acesso. Nada que adolescentes não conseguissem burlar mas que estabelecesse um regramento mínimo e a oferta do espaço.

           Digo isto porque há uma outra limitação ostensiva (e histórica) colocada nos poucos lugares em que existem banheiros públicos: a de se fazer sexo neles. Por tal, não vejo a manutenção de banheiros dissociada da manutenção de motéis populares em espaços públicos. O público homossexual, por exemplo, tem nos banheiros públicos uma espécie de iniciação ou fixação sexual, cultura decorrente do sexismo moralista que separa os banheiros em masculino ou feminino. Veja bem, não estou dizendo que esta separação determina o sexo de ninguém, longe disso! Mas há fatos interessantes que se impõem pelo costume e ninguém questiona. Ninguém separa o banheiro de casa para uso exclusivo de cada sexo mas, em público, como o mundo heterossexual parece bastante tenso, convencionou-se dividir banheiros dessa forma a pretexto de que homens não abusassem de mulheres. Foi uma festa para os gays e ninguém até hoje julgou que tal medida tenha favorecido o sujeito a se tornar um. O mesmo argumento que é utilizado para combater escolas de gênero único, quartéis e seminários não se aplica a banheiros. 

        Nosso mundo, de fato, é curioso. Depois de reprimir uma violência (no caso, a sexual, de homens sobre mulheres nos banheiros), construímos um metiê para marginalizados sexualmente (os homossexuais) nos mesmos espaços e, depois, como se tudo pudesse ser disciplinado por ordenamentos idealistas de nossos irmãozinhos conservadores, também viramos para os homossexuais e dissemos para eles que não podem fazer isso ali. Sem alternativa. 

          (Não podem, não podem e não podem! Bem, isso no Brasil é o mesmo de dizer que podem daqui a pouco, esperem só eles saírem...)

            Os motéis populares serviriam para desafogar o fascínio exclusivo que banheiros públicos exercem por serem espaços onde destinamos, de forma privilegiada, o direito de nos aliviarmos das tensões fisiológicas proporcionadas pela autorrepressão no tempo e no espaço. Seriam ambientes a mais de diminuição do mal-estar social, individual e coletivo, causado pelo abuso de interdições moralistas e financeiras desnecessárias que só repercutiram até os nossos dias em mágoa, rancor, violência e doença. Muita gente se exibe e explode todos os dias em decorrência de proibições e restrições   estúpidas. Não apenas pelos banheiros, mas também pelos banheiros. Não apenas para se fazer "o que não deve" quando muito se deve. É uma tese que defendo: quem caga, mija e trepa melhor não causa tanto transtorno social. 

        Desculpem-me se ofendi com palavras chulas ou se atrapalhei a refeição dos senhores com tema tão escatológico. É que venho pensando em falar de banheiros públicos e motéis populares não é de hoje. Vivendo uma era de capitalismo financeiro tão sugador e imoral, ao ponto de assistir a TV Globo fazendo proselitismo de figuras tão criminosas e escrotas quanto o Sr. Eike Batista, me senti à vontade para defender o direito de quem precisa viver com uma pele mais bonita sem plásticas que estourem por dentro. O silicone francês está em decadência. Ir ao banheiro e fazer sexo sem constrangimento ou dinheiro podem fazer uma grande revolução. É oferecer pra ver.         
   

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

"Todo amor que houver nesta vida pra vocês"

      O bar é um santuário para alguns. Para outros, a casa do capeta. No bar, assim como nas igrejas, alguns rezam a oração dos solitários e encontram bênçãos; outros o procuram por desespero e encontram perigos. Há quem se sinta melhor com o álcool, mais à vontade, despossuído dos bloqueios mentais. Há quem se revele e fique melhor do que o habitual! Porém, há quem não possa beber também. Fica chato, agressivo, inconveniente. No bar, os amantes se encontram e os apaixonados brindam. Amigos de bar existem aos montes; amigos no bar nem sempre são encontrados. Muita política já foi feita em bar. E desfeita também! As torcidas de futebol gostam da TV no bar e todo o resto prefere a música. O bar é o templo dos artistas, dos marginalizados pelos moralismos em geral, daqueles que buscam um prazer na vida perturbada. Como todo local de encontro social, é espelho e caixa de ressonância da sociedade em que está situado. Às vezes, é mal aproveitado porque a função social das coisas existentes não se resume ao que aparenta ser.

           Queria falar  de Natal e festas de fim de ano mas as experiências de bebum acabaram martelando a cabeça. Têm razão de ser: nunca estive tão longe dos bares em épocas afins. Sou daqueles com larga vivência no assunto e vejo confraternização como algo que não deve se limitar a efemérides e feriados. Ademais, já encontrei Jesus no bar e o aniversariante, juro pra vocês, é muito menos careta do que rezam as cantilenas religiosas! Costuma habitar na boa intenção e na boa atitude, coisas que não têm lugar designado para acontecer. Passar o Natal num bar pode ser muito mais interessante do que ficar entre parentes que fingem que se amam uma vez por ano. Desde que se conceba a oportunidade humana nos desconhecidos, aproximar-se de um bar sozinho pode render inacreditáveis e maravilhosas experiências. O Natal, por exemplo, que toma corações os mais diversos para certa atmosfera de bondade, é capaz de fazer juntar gentes que não abarcariam tamanha tolerância e receptividade em outros momentos. Recomendo.

          Fiz muito discurso em bar. Fechei compromissos valiosos, alguns cumpridos e outros não. Neste ponto, sou coerente com o que julgo ter valor; amenidades ficam restritas ao bar mesmo. Tenho uma capacidade incrível, talvez magnetismo, de atrair as figuras mais insanas. Durante boa parte da vida, quando não entendia dos fluxos energéticos, quando a dinâmica espiritual ainda me soava engodo, fetiche ou superstição barata, julgava mal este tipo de atraído. Hoje não julgo mal, o que também não significa que tenha paciência sempre. 

        Tento aproveitar a ocasião para fecundar um mundo melhor. Quando não alcanço um êxito mínimo, pelo menos, não fico de vítima das circunstâncias: puxo um assunto, provoco um debate, evito uma briga, levo alguém pra cama, alcanço uma amizade, desenrolo aliados, construo ou desconstruo valores. Lembro com carinho de pessoas que nunca mais vi, que não são meus parentes ou amigos, mas que compuseram um grande enredo em parceria. Alguns enredos não duraram mais que aquele instante; outros construíram grandes obras! Isto é extremamente significativo. Saber dar valor ao ser humano tem mais retorno do que toda a propaganda sistêmica, inclusive a narrada por experiências ruins, ousa assumir ou enxergar.

          Adoro quando flagro um irmão evangélico, cheio de melindres, bebendo escondido. Pedindo para não ser revelado. Vou ao êxtase quando flagro pessoas buscando sexo ou amor nos bares da vida, ainda que o ato lhe seja proibido em função de um compromisso monogâmico ou de um moralismo inútil perante os que espreitam com olhares enviesados. Observo os incoerentes da moda, aqueles que condenam toda a sorte de comportamentos, tomam alguns goles e passam imediatamente a praticá-los. Estes me deixam entristecido mas lembro que a conta não vai ser minha e, desde que não me coloquem no rolo, sigo em frente e distancio-me tentando, pelo menos, não perder o aliado.

            Em Minas, por diversas vezes, utilizei o bar como aparelho revolucionário. Não me aguentava de ver os absurdos do prefeito local, tendo sido, inclusive, vítima de suas arbitrariedades. Discursava e me expunha publicamente na defesa dos direitos mínimos que a douta democracia apregoa. Entre derrotas e vitórias, angariei, numa balança sincera, mais aliados e amigos que desafetos e inimigos. As músicas que gostava de tocar no aparelho de DVD, videokês da vida ou naquelas máquinas com ficha que são odiadas por alguns frequentadores eram cuidadosamente escolhidas dentre aquelas que ilustravam uma preocupação social, uma crítica política ou uma reelaboração afetiva e íntima de valores arraigados pelas tradições. 

     Quando produzimos vídeos sobre a luta dos 50 servidores municipais concursados e expulsos pelo prefeito, fui pessoalmente em diversos bares e casas para assistir coletivamente e debater com as pessoas da cidadezinha do interior o que estava acontecendo. Esta atividade política foi de fundamental importância num lugar que não tinha acesso à internet nem ao celular até o ano passado. No povoado onde eu morava, não há sinal de celular até hoje e o da internet, via rádio, foi uma luta da qual me orgulho também de ter travado e conquistado. Destes debates, obviamente, como em tudo que acontece no cotidiano do interior, vimos uma repercussão estonteante em torno do Estado Democrático de Direito, uma novidade que parecia ainda bem difícil de acontecer a quem não fosse rico entre 2008 e 2011. Em um ambiente de coronelismo da República Velha, onde pouco havia espaço para a diferença, confrontei com costumes e práticas arriscadas, não muito distantes daquelas também vivenciadas nos centros urbanos brasileiros da contemporaneidade. O que diferencia a atuação no grande centro para uma cidade pequena é que, no grande centro, há a possibilidade de você encontrar sua própria tribo, dar repercussão ao caso e continuar tocando a vida particular mais ou menos em certo grau de liberdade.  Fazer este tipo de formação política no interior do Brasil não é desafio simples para quem se propõe a fazê-lo sem anteparos institucionais, como partidos políticos, imprensa, Ministério Público ou sindicatos. Lá, nada disso existe e a lei maior é, de fato, feita por quem manda porque "quem manda" compra a polícia, a justiça e qualquer outro que se ponha no caminho. E se não quiser se vender, morre. A lei é simples. 

           O bar foi ambiente não apenas deste movimento de servidores públicos mas também onde prestei consultoria jurídica, conselhos espirituais, reforços escolares e aulas sobre qualquer assunto. Não raro, alguém se aproximava de mim e iniciava assim a conversa: "como ocê é um cara estudado, que sabe das coisa, eu quero te fazê uma pregunta..." Daí poderia vir de assuntos complexos sobre política e direito trabalhista até questões afetivas íntimas, fazendo-me lembrar sempre do personagem principal da grande obra de Malba Tahan, "O homem que calculava". 

          Nesta obra clássica, o homem que calculava era um sujeito que aparecia nas mais remotas comunidades árabes diante das mais diversas intrigas e querelas humanas, fazia uma proposta de acordo ou esclarecimento às partes em litígio ou que careciam de informações, e conseguia alcançar um consenso. Deste consenso, o homem que calculava, célebre por saber fazer contas complexas e argumentos convincentes, ainda retirava uma parte para si como forma de pagamento pelo serviço kaosístico. E assim ia vivendo. Seu conhecimento e sua lábia eram sua profissão. 

         Diferente, porém, de querer tirar proveito dos outros, minha atuação em Minas contou com ajudas do tipo, mediante esclarecimentos e apoios tácitos. Muito contribuiu para isto o fato de que as pessoas da região  não confiavam nos advogados - o que é bastante razoável. Queriam ouvir sempre a opinião de alguém que, se apresentando mais estudado e honesto, pudesse orientar a respeito. Também pudera! Quantos casos em que advogados tomaram terras de pequenos proprietários pela simples manipulação de procurações e documentos diante da falta de instrução do povo! Pude testemunhar relatos bárbaros de trabalhadores rurais que diziam ter ficado sem nada após um litígio qualquer. Fui assessor de advogado, um de meus malabarismos de sobrevivência, e tive acesso a casos escabrosos sobre a questão fundiária em Minas Gerais.

              Outra atuação paralela, também muito feita em bar, era a defesa das liberdades individuais em contraponto ao moralismo católico. Reconheço riscos nesta proposta, menos por sofrer retaliações físicas ao meu comportamento de homossexual assumido, e mais por confrontar com uma hipocrisia em que a esfera do público deveria ser totalmente poupada dos acontecimentos em quatro paredes (ou em quatro matos). Não foram poucas as vezes em que os homens fizeram gracinhas públicas, piadas e até insinuações descabidas, provocações... à noite, bêbados, invertiam esta lógica querendo sexo. Nos bares, não raro, mediante o grau etílico, convidavam e faziam aquilo que muito condenavam. Nas minhas participações, não jogava o jogo dos hipócritas de ficarem falando mal de gays, exaltando mulheres entre rodinhas e, depois, ficarem submetidos àquelas paranoias típicas, àqueles avisos ameaçadores, àquele trato doentio para não serem revelados após uma noite de muito sexo. Nada contra os discretos. Tudo contra os que falam mal e fazem. Total apoio aqueles que se assumem. Essa era (e ainda é) a minha política: o ideal é a sinceridade, o menos pior é o silêncio e o erro é o falso moralismo.

           Acredito que o amor ao próximo é possível, que é preciso ceder e se afirmar para construir relações humanas mais saudáveis. Não concebo o bar em si como uma mera propriedade privada, feita para produzir lucro aos seus donos ou diversão superficial àqueles que perpassam suas instalações. Este é um reducionismo existencial exemplificado de que tanto tratamos acerca da dinâmica capitalista. Ao reduzir o que se passa no mundo, as criações, sentimentos e necessidades humanas ao valor supremo de mercadoria, o capitalismo promove um desserviço à humanidade. Pior ainda quando, além de reduzir o sentido existencial de tudo que pode, não satisfeito, faz das coisas mercadorias inacessíveis à maioria. A pior parte de um bar não está no encontro e no desencontro que promove, ou nas consequências do álcool na vida de muitos, mas justamente no fato de que o sistema capitalista restringe as experiências do sujeito sem dinheiro. Retira-se boa dose de prazer e liberdade necessários ao convívio com os próprios problemas e com a humanidade. Esta experiência sufocante inspira mágoas e rancores muito piores, que serão descontados adiante, não se sabe em quê nem em quem. Um sistema que causa mal-estar profundo na humanidade tem que dar conta de válvulas de escape, como são os bares e os acessos às drogas em geral, ainda que seja complicado comparar o prazer de estar num bar do outro acesso, que é estar numa boca de fumo. A proibição do comércio da boca leva à militarização das relações, a um jogo que envolve armas de fogo, e ainda piora o que só seria um mal-estar do excesso ou da falta de dinheiro. 

       É preciso pensar em novas relações. O povo mineiro de onde eu morava até que lida bem com isso, uma vez que ninguém que não tenha dinheiro fica sem beber. É mais fácil o sujeito beber do que ter outra felicidade. O sistema de fiado, muito interessante, também era um grande adianto na vida dos clientes confiáveis. Este é um outro segmento. A camaradagem entre bebuns, às vezes, conseguia ser maior do que entre fumantes. Eu espero que o ano novo mude isso: temos de pensar na felicidade global e parar com essa besteira moralista de que o sujeito pobre tem que ter só comida. Comida para o corpo, tudo bem, é claro que é fundamental mas... e a comida para o espírito? Fica aonde?

        "Todo amor que houver nesta vida pra vocês!" - diria Cazuza. Todo amor? Sim, amor não pode ter limites de consideração. Amor é entrega, é desejo de alteridade. Que, em 2012, a gente reflita e pratique o amor de Cristo com mais coerências filosóficas e menos dramas de controle. Beijos e até!