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Niterói, Rio de Janeiro, Brazil
Estudante, professor e agente da História de seu tempo. Deformado pela Universidade Federal Fluminense, pela capacidade de resiliência em torno de causas justas, pela coragem e pela sinceridade. Dinâmico, espiritualista, intuitivo, libertário, imprevisível. A leitura de seus textos é recomendada a quem faz uso de covardias.

domingo, 12 de junho de 2011

O que deve ser dito

Assusta-me a hipocrisia de nossos tempos. Em toda a mídia, em todos os ambientes de trabalho, nas universidades e nas rodas de conversa, em uníssono, esbravejam farsas como essas:


1 – “O que faz as pessoas ficarem desempregadas ou subempregadas é a falta de qualificação do povo brasileiro.” (a grande mídia todo dia);

2 – “O problema da educação no país não se resolverá com mais recursos ou salários melhores. O problema é de má gestão, má formação dos professores e excesso de influência das ideologias protossocialistas na interpretação de mundo dos mestres.” (Gustavo Ioschpe, economista, acompanhando o Jornal Nacional em visita a diversas escolas pelo país);

3 – “A iniciativa privada preza pela competência e pela meritocracia.” (a grande mídia, os empresários, os políticos, os profissionais de RH, todo dia);
4 – “Funcionários públicos não gostam de trabalhar. Com a privatização, todos os serviços públicos melhoraram.” (a grande mídia, os empresários, os políticos, os profissionais das áreas de gestão, pessoas do povo oprimidas, todo dia);

5 – “Manifestação de protesto ou greve é coisa de vagabundo, vândalo, gente que não tem o que fazer. Atrapalha o trânsito, prejudica pessoas inocentes.” (a grande mídia, os empresários, os políticos, os profissionais das áreas de gestão, pessoas do povo oprimidas, todo dia).

Vamos por parte, desmentindo um a um estes argumentos, com a fragilidade que possuem em qualquer avaliação superficial da vida cotidiana e da realidade prática, ainda que sejam tão difundidos e reproduzidos sem maiores reflexões:

Em primeiro lugar, tudo o que existe no mundo é fruto de IDEOLOGIAS. Ideias humanas constroem mudanças, destroem perspectivas, selecionam opiniões segundo interesses, dos mais nobres aos mais mesquinhos, e influenciam na concretização dos sonhos que ostentam. A IDEOLOGIA CAPITALISTA tenta sempre se afirmar como NATURAL DO HOMEM, equiparando as suas defesas de 1776 (data de criação do liberalismo econômico, tendência da ideologia capitalista que abraça radicalmente as teses da livre iniciativa privada, do Estado Mínimo, da eficiência e da produtividade em função do lucro máximo de poucos, das desigualdades sociais, do individualismo, etc.) às necessidades fisiológicas permanentes (alimentar-se, evacuar, urinar, respirar, etc.). Sabemos que não é bem assim. O capitalismo se afirmou na História da Humanidade como ideologia, fez uma classe social (a burguesia) submeter outras que até então eram as poderosas (a Nobreza e o Clero), aliando-se com estas e as ressignificando, e enganando os trabalhadores em seu discurso de Liberdade, Igualdade e Fraternidade (lemas da Revolução Francesa) quando buscou se manter – frise-se, a qualquer custo! - no comando da economia, da política e da vida social no mundo.

Em segundo lugar, estamos em franca decadência do Neoliberalismo Econômico, tendência da IDEOLOGIA capitalista que, tal como as outras tendências, vai e volta, predominando em ciclos da história, sempre que são necessárias à sustentação e permanência do próprio capitalismo. Do fim do século XX até agora, recebeu o prefixo “neo”, que significa “novo”, novo liberalismo econômico. Ocorre que há uma grande resistência dos pouquíssimos seres humanos do planeta que vêm lucrando como nunca (BILHÕES E TRILHÕES) com esta tendência, de forma extremamente egoísta e inútil (como vão usufruir de tudo isso em vida?), sobre jogatinas do mercado financeiro que endividam pessoas físicas, pessoas jurídicas produtivas e o próprio Estado. É a força do individualismo no genocídio e no suicídio da humanidade.

Todas as empresas privadas que geram emprego e produzem riquezas estão submetidas a uma carga tributária violenta, a juros extorsivos em créditos que adquirem, e acabam fechando as portas ou, conforme a sugestão magnânima dos neoliberais, demitindo empregados, pagando pouco, criando disputas desumanas e razões imbecis de competitividade para justificar a exclusão de bilhões de pessoas do direito à comida, à moradia, à vestimenta, ao transporte e ao lazer. É onde entra a farsa da “competência individual” como motivação para a admissão, promoção ou demissão de empregados. Enquanto pessoas competentes e responsáveis são demitidas a torto e a direito por interesses privados mesquinhos (favorecimentos sexuais, graus de parentesco, intimidade subserviente etc.), o discurso é de que foram incompetentes, de que precisam se aperfeiçoar, de que dispõem de pouca qualificação etc.

Esta instabilidade racional e emocional, este distanciamento entre os métodos alardeados de competência e meritocracia que a turma do RH midiático adora elaborar pomposamente e vender como verdade e a realidade concreta das admissões, promoções e demissões na iniciativa privada são tão acintosas, comprometem de tal maneira a inteligência emocional, os valores e os princípios cristãos e democráticos da maioria, que o uso e abuso da malandragem tornaram-se táticas usuais e obrigatórias de sobrevivência, causando profundo mal-estar individual e coletivo, altos índices de depressão, corrupção e violência, que se retroalimentam na brutalidade das instáveis condições de empregabilidade.

O que o trabalhador deve fazer se tudo aquilo que sempre foi pregado como correto e justo, desde a construção de conquistas pelo mérito do esforço no estudo, na melhoria de suas relações interpessoais, na responsabilidade quanto a horários e no comprometimento quanto à eficiência de seu trabalho, na preservação do patrimônio patronal quanto a roubos ou desvios vários, de nada adianta para garantir seu emprego por mais de alguns meses ou um ano? As contas são mensais, as despesas cada vez maiores, ou, como dizia um amigo, “todo dia dá meio-dia”.

Existem dois efeitos quando se enxerga ou não as verdadeiras causas da sua demissão, da ameaça permanente ao cumprimento de direitos trabalhistas, nos salários aviltados e na sempre adiada promoção: depressão profunda, fruto da sensação de incapacidade individual, desta excessiva culpabilização dos indivíduos por seus destinos, que, não raro, também descamba em problemas vários de saúde, ou tendência forte à criminalidade, à corrupção, ao jeitinho brasileiro que nada mais é que um eufemismo para malandragens de todos os tipos. O uso de falsidade e de recursos violentos como forma de reação à violência sofrida, muitas vezes direcionada a pessoas que nada têm a ver com o peixe, também é muito comum. Logo, o fenômeno individual da depressão, da malandragem ou da criminalidade, uma vez disseminado em tantos e tantos lares e espaços de convivência, torna-se uma chaga social perceptível de raiz comum e galhos diferentes, exigindo profundas reflexões e mudanças de rumo do modelo econômico individualista e brutalmente desigual que não interessa à humanidade porque é suicida e genocida ao mesmo tempo.

Em terceiro lugar, o descaso cultural e endêmico com a educação tem a ver com essa ausência de perspectiva segura que os esforços no estudo outrora garantiam e não garantem mais. Como um estudante respeitará o professor se QUASE NINGUÉM na sociedade o respeita mais? Se todos o acusam sistematicamente pelos problemas da educação no país, quando a definição de recursos e rumos é dada por políticos e empresários? Se alguém que vive com milhares de reais mensais e sabe os custos mínimos da sobrevivência humana digna, vai à imprensa e diz que salário não é o problema para um professor que ganha SETECENTOS REAIS, este alguém está agindo com profundo desrespeito à classe dos professores. Está incitando a convulsão social a partir de um argumento egoísta – uma vez que dependeu um dia, como todos os profissionais de todas as áreas, do professor para entender o que minimamente entende e conta como instrumento – e ainda falseando as verdadeiras intenções do descaso à população mais pobre. Que dizer da tão propalada necessidade de qualificação da população brasileira se a educação pública (eu ouso dizer que, hoje em dia, mesmo a privada) é submetida, desmotivada, limitada ou destruída?

Não vai haver qualificação da população mais pobre assim e isto é proposital sim. É fruto da covardia elitista que, no Brasil, insiste mesmo é na hereditariedade aristocrática dos talentos, dos acessos e das promoções sociais. O mesmo neoliberal que afirma de forma contundente a necessidade da meritocracia no mercado de trabalho em geral é o que favorece explicita ou implicitamente seus próprios parentes, seus amigos íntimos, seus parceiros sexuais ou aquela seleta casta de puxa-sacos (ou “bobos da corte”) que se submetem a todos os seus caprichos ególatras cotidianos numa busca insana para, na hora da contratação, da permanência ou da promoção nas empresas, não serem preteridos. Ora, para isso não é preciso estudo. Nem competência ou mérito. Aos excluídos, só restam as mesmas desculpas esfarrapadas geradoras de tamanho mal-estar profundo já analisadas neste artigo.

Com as privatizações de diversos setores públicos, milhões de trabalhadores foram desempregados. Trabalhando hoje em diversas empresas terceirizadas, uma parcela subempregada conta com constantes voltas nas suas garantias trabalhistas mínimas. Os serviços prestados por estas empresas ficaram caríssimos e de péssima qualidade. Estas empresas são recordistas em reclamações no PROCON e suas punições judiciais, quando ocorrem após anos a fio, são restritas a multas baratas já previstas em seus respectivos orçamentos, obviamente alimentados por contas caras e outras voltas no consumidor comum. Este mesmo consumidor, muitas vezes, é seu funcionário ou ex-funcionário, ainda que indireto ou aposentado, e devedor também. A condição de ex-funcionário da iniciativa privada, doente ou endividado, aliás, encaminhado para o INSS, para os hospitais ou para a criminalidade não é pequena no Brasil dos anos 90 para cá. Alguns engrossam as enormes filas de candidatos em concurso público, que cresceram na proporção das privatizações feitas no Brasil, demonstrando claramente que a população não credita confiança no trabalho, na remuneração ou no cumprimento de direitos trabalhistas mínimos por parte do empresariado que se diz coerente com princípios de sustentabilidade, responsabilidade social ou meritocracia.

Isto sim é realidade construída pelo atual modelo econômico, em franca decadência e resistência cíclica desde 2008, a custa de milhões e bilhões de vidas humanas. Insistem para que o Estado Brasileiro aplique a seus servidores públicos os mesmos princípios suicidas e genocidas que tanto mal-estar e precariedade vêm causando ao conjunto da população mundial. Estão criando gerações inteiras de depressivos, malandros e bandidos e não estão se dando por satisfeitos. Pura ganância irresponsável e idiota pois, como já disse, ninguém terá vida suficiente para gastar, ainda que de forma perdulária e esnobe, todos os bilhões acumulados. Seus herdeiros, se é que estarão pensando na integridade financeira e moral de suas heranças, não darão o valor devido nem a si próprios nem ao que seus pais, parentes e padrinhos acumularam e permitiram deixar. Não tenham dúvida que esta tendência deveria ser denunciada, julgada e condenada como crime contra a humanidade. Trata-se de verdadeiro genocídio! A parte suicida da coisa reside nos seus efeitos sociais alardeados, algo que câmeras escondidas, carros blindados e grades já demonstram não evitar.

Por tudo que relatei, insisto: não se permita à depressão por culpas, sensações de incapacidade que não lhe pertencem a verdadeira motivação. É um recado a todos os milhões de trabalhadores brasileiros que se encontram, como eu, na condição de desempregados por injustiças que jamais poderão ser justificadas pela ausência de comprometimento e de responsabilidade com os diversos trabalhos exercidos. Por onde passei, transformei para melhor a lógica e a operacionalização das rotinas de trabalho. Sinto-me punido justamente por ter inovado, por ter me aperfeiçoado, por cumprir horários e por adquirir direitos legítimos como a aprovação e classificação em concurso público. Em meu lugar, cansei de ver, tanto na iniciativa privada quanto no serviço público, fui substituído por medíocres circunstancialmente interessantes à chefia, ao comando político ou ao empresário.  Garantiram empregos a parentes e a aliados subservientes, ainda que estes não soubessem nada ou quase nada do que fariam em seus postos de trabalho. Não há perspectiva de qualidade, produtividade e eficiência no mercado de trabalho brasileiro: isto é apenas peça publicitária enganosa do sistema.

O velho patrimonialismo, associado ao novo e grosseiro individualismo, são um misto perverso que determina as relações sociais no Brasil do século XXI. Outra solução não há que denunciar, protestar e se organizar com injustiçados do país e do mundo inteiro, buscando, cada qual, fazer a sua parte para que nossa sociedade seja melhor do que esta que aí está. E isto é tarefa cotidiana, dos mínimos detalhes às maiores iniciativas práticas. Por isto, estive na passeata dos professores da rede estadual em greve e no ato solidário à situação dos bombeiros no Rio de Janeiro nesta última sexta-feira, dia 10 de junho. Como não estar? Como não apoiar? Só uma educação de qualidade proporcionará, sem covardia, a profusão de talentos por mérito de verdade, ainda que fora da casta de herdeiros; a sensação de segurança pública tão pleiteada; o conhecimento e a crítica necessários à construção de uma sociedade menos mesquinha, preconceituosa e submissa. Isto sim, urgente no Brasil. Quanto aos bombeiros, a prisão de seus membros em protesto demonstra o tipo de governante que não queremos. Quando não se aceita a exploração agressiva e irresponsável, tornamo-nos vândalos e criminosos. É quando a nossa democracia se expõe em toda a sua farsa. Vivemos uma ditadura econômica nociva que força aos indivíduos a desunião, a depressão, a malandragem e a criminalidade. Não se deixe permanecer como marionete de gananciosos ditadores. A decadência e a ascensão deles sobre os nossos destinos também são oportunidades cíclicas plantadas, como ensina a História da Humanidade, dependendo sempre da aceitação ou da rejeição coletiva.

Determinadas circunstâncias históricas são verdadeiras oportunidades de aceitação ou rejeição de mudanças concretas naquilo que nos causa dificuldades e mal-estar. Assim como não devem ser menosprezadas por interesses partidários (ou ególatras), não podem também ser condenadas em nome de leis que até então foram fixadas socialmente. Desequilíbrios inaceitáveis legitimam a suspensão das regras colocadas. Assim como militares não poderiam se insubordinar aos seus comandantes, torna-se legítima a insubordinação dos bombeiros frente a uma crise de sobrevivência vital a todos imposta e que a todos individualmente identifica. Sobretudo quando uma autoridade eleita democraticamente, como é o caso do governador Cabral, recusava-se a negociar com uma categoria inteira há dois meses, revelando não só a faceta arrogante de sua personalidade quanto a do sistema com o qual se identifica, causador de profundo desequilíbrio social e sempre disposto a atitudes autoritárias para se impor.

Neste sentido, falar de perturbações ao trânsito no momento das passeatas ou da “invasão” do quartel que constitui o local de trabalho dos próprios bombeiros, por si só, se revela uma tentativa de desvio do foco principal, um instrumento de retórica que serve ao interesse de quem pratica a injustiça.

Vale lembrar que o direito à liberdade de expressão é constantemente lembrado pela imprensa quando reage a tentativas de regulamentação dos seus próprios interesses mas é profundamente atacado quando ela própria trata dos interesses de setores organizados da sociedade.

Neste episódio dos bombeiros, houve uma mudança significativa na abordagem dos meios de comunicação. Menos porque mudaram seus interesses e mais porque a população compreendeu a injustiça do governador e apoiou amplamente os bombeiros. Tal evento constituiu uma circunstância histórica não verificada em outros movimentos sociais recentes. Onde o pensamento conservador da maioria prevalecia, agora sucumbiu, apontando para uma insatisfação popular com o estado das coisas como estão. O que se rejeitava anteriormente, hoje se aceita, como métodos parecidos e pleitos tão justos o quanto. Houve uma manifestação popular favorável à causa e isto implica variáveis significativas, inclusive na postura da mídia. Logo, outras categorias profissionais vêm pegando carona na mobilização dos bombeiros, o que não quer dizer que obterão o mesmo êxito ou disposição da população. Tudo depende de mudanças na própria forma de mobilização de cada uma e na capacidade solidária das categorias, tudo acima das vaidades e jogos de interesse dos partidos políticos.

Os professores, por exemplo, fazem greves com mais periodicidade – o que poderia ser suficiente para acusá-los de banalização do instrumento de pressão - mas o fato é que não demonstravam tamanho grau de união em suas manifestações, sendo constantemente divididos por interesses partidários, individualismo e comodismo. Esta outra realidade dos mestres, somada à cultura de desvalorização da educação tratada anteriormente aqui, acabaram sendo suficientes para derrubarem seus movimentos recentes ao descrédito, à sensação de que estavam buscando mais férias que propriamente a mudança de suas condições profissionais e sociais.

A mobilização dos bombeiros ensina aos professores que, mais do que nunca, o movimento sindical precisa BUSCAR A IDENTIDADE DO PROFESSOR para uni-lo acima de pormenores partidários. Este é o primeiro ponto a ser considerado: o que é ser professor, acima das disciplinas que lecionamos, do grau e do sistema de ensino, das disputas partidárias e das peculiaridades.

A segunda questão é resgatar O GRAU DE IMPORTÂNCIA ESTRATÉGICA DA EDUCAÇÃO para a economia do país que ela tem, denunciando a incoerência entre o discurso e a prática dos neoliberais NO SEU MODELO DE FINANCIAMENTO E GESTÃO, a intenção de MATAR os mais pobres de asfixia cultural e econômica. Este é um movimento político direcionado ao apoio popular.

A terceira, a meu ver importantíssima também, é PARAR DE PROTEGER PROFESSOR QUE NÃO DÁ AULA NEM FAZ NADA PARA MELHORAR A SITUAÇÃO DA CATEGORIA. Este personagem que nunca vai dar aula, que falta pra caramba e não dá a mínima para o aluno, que não participa das greves nem dos protestos e ainda justifica argumentos contrários à estabilidade do serviço público. É cortar na própria carne, no corporativismo, mas também é legitimar o movimento dos bons professores, a maioria da categoria, que não precisa de gratificações por desempenho mas de bons salários porque querem, de fato, fazer um bom trabalho e ter uma vida digna e merecida. Digo isto porque professores ausentes e irresponsáveis acabam tirando do estudante e das famílias o apoio político de que mais a classe necessita para recuperar seu prestígio e valorização. Se o cara não agüenta mais ou não gosta ou não quer, que caia fora da escola, peça exoneração que será mais digno. Do contrário, se insistir, que seja apontado e devolvido sempre, até que responda o devido processo legal e seja devidamente exonerado. O que não dá é pra fingir que trabalha, prejudicar outras pessoas, atrapalhar o movimento e a imagem da categoria, derrubando qualquer reivindicação justa.  É nisso que se apegam os neoliberais para defenderem o fim da estabilidade no serviço público, as avaliações de desempenho e até as possíveis razões para a desvalorização profissional. Nisto, acabam captando apoio popular pesado com os argumentos mais absurdos, os mesmos que são fundamentados em uma realidade concreta que prejudica estudantes. Como dizer que estão totalmente errados os que reclamam disso?

A quarta e última questão, sem dúvida central, é uma PAUTA UNIFICADA dos professores a nível nacional. UM PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO BRASILEIROS, incluindo obviamente a galera do apoio, que defenda um piso nacional de R$5.000,00 (CINCO MIL REAIS) mensais para início de carreira. “Ah, é muito!”, “Ah, não pode!”, vão tentar dizer. Pode sim e o Brasil dispõe de muitos recursos quando quer financiar empreendimentos e empresas privadas. Se a educação é estratégica para todos os setores da economia nacional, passa a ser PROJETO DE ESTADO sua valorização efetiva e imediata, articulando-se recursos com a mesma dedicação quanto aos que se articulam quando interessam qualquer projeto de infraestrutura em curso no país. Existe a possibilidade de financiamento pelo BNDES, pelo BB, pela CEF, pelos fundos em geral, pelo orçamento da União, pelo Pré-Sal, por parte do que vem sendo pago a título de juros da dívida “eterna” e muitas outras fontes. É urgente equiparar os rendimentos do professor no país inteiro aos rendimentos médios de um profissional de nível superior. Ora, muitas redes não exigem até provas de títulos com pós-graduação em seus concursos? Que eu saiba, advogados, médicos, dentistas, engenheiros, entre outros, não precisam de pós-graduação para receber de TRÊS a CINCO MIL MENSAIS. O plano de carreira daria conta de acréscimos ulteriores, indispensáveis também. Isto animaria de tal maneira a carreira, atrairia tantos jovens talentosos para o magistério, transformaria tanto a relação do mestre com seus alunos e com a sociedade, que o impacto seria inacreditavelmente saudável para a reconstrução do país.

O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO BRASILEIROS daria um cala-boca nestes gestores metidos a espertos que vêm com acusações descabidas de “choque de gestão” sem aumento de salários. Mas teria também que tratar de toda a infraestrutura ideal, indicando claramente UM PADRÃO NACIONAL de instalações e equipamentos para uma boa escola pública funcionar em qualquer cantão do país. A gente cansou de miséria e improviso na educação. O senador Cristóvão Buarque (PDT-DF), ex-governador do DF e ex-ministro da educação demitido logo no início do primeiro governo Lula, estava certíssimo ao declarar que se uma agência do BB tem a capacidade de se instalar em qualquer canto do país com os mesmos padrões de excelência, o mesmo deveria ser oferecido pelas escolas públicas brasileiras. Sua ideia de FEDERALIZAR toda a educação também seria bem-vinda, uma vez que pude presenciar o que os municípios fazem com esta determinação legal de assumirem a educação infantil e o ensino fundamental. É uma verdadeira desgraça no interior do país, com manipulação grosseira de docentes por contratos políticos e desvios inacreditáveis. Se é projeto estratégico de país, no nosso caso, tem que ser FEDERAL da educação infantil ao ensino superior. Isto emanciparia o profissional de educação das politicagens locais, evitando a perpetuação de práticas coronelistas de gestão.

Outro ponto importante: ELEIÇÃO DIRETA DA COMUNIDADE ESCOLAR para cargo de direção. Fim das nomeações políticas que tanto determinam manipulações grosseiras de vereadores, deputados e comandantes do Executivo na escola, descaracterizando e desmantelando continuidades, perseguindo profissionais.

Porra, tô pedindo demais? Professores, sabemos quais são os pontos mais problemáticos da nossa atividade profissional! Aqueles que se dizem “de esquerda” e estão no governo federal têm a obrigação moral de sustentar este projeto. Se não podem, ou não puderam até agora, emancipar-nos da colonização das instituições financeiras internacionais, pelo menos poderiam semear mudanças futuras que só poderão advir de investimentos pesados e contínuos na valorização planejada da educação pública brasileira. O Pré-Sal, por exemplo, seria uma fonte de financiamento sólida e própria mas os mecanismos atuais, em geral, já estão colocados. Basta vontade política de realocar recursos, prioridades e sugestões dos professores. Não podemos deixar que continue tamanha crueldade social do neoliberalismo econômico e o caminho seguro, maior que qualquer outro, é uma Política de Estado de Educação, contínua e forte, que não ouça baboseiras capazes de destruir o que ainda nos resta.

Lembro aos que se locupletam dos poderes atualmente constituídos que não serão eternos, nem o seu poder, nem a sua existência vital. Aproveitem a oportunidade colocada às suas mãos: o destino de milhões de crianças e adolescentes, hoje entregues à perspectiva da depressão e da bandidagem, que podem, em trinta anos, tornar qualquer revolução possível. É pelo bem-estar social de um povo inteiro.

Sejamos menos egoístas e poderemos reencarnar mais leves... falo por experiência cármica própria.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Origens e desafios históricos do Núcleo Barreto

Para falar do projeto de rádio comunitária que ajudei a construir no bairro do Barreto, Zona Norte de Niterói (RJ), em 2001, e que completa, neste ano de 2011, DEZ anos de fundação e existência, preciso me reportar às razões anteriores que impulsionaram diversos moradores daquele bairro à necessidade de um veículo de comunicação alternativo. Em síntese, o processo histórico de lutas comunitárias, a minha participação política que se iniciava enquanto adolescente do bairro, o projeto de sociedade alternativa que idealizávamos em grupo, a necessidade de um veículo que difundisse livremente nossas opiniões e anseios, a concretização do sonho, dificuldades e obstáculos enfrentados, conquistas coletivas e, por fim, os rumos que me levaram a compreender que era hora do meu afastamento.

Sem dúvida alguma, um dos maiores projetos que realizei na vida, verdadeira revolução no meu jeito de pensar e agir, e também relevante contribuição à história da periferia e do município que merecia um livro à parte. Um “post” no meu blog é pouco, pouquíssimo, quase um suspiro de tudo o que rolou. Talvez, um dia, a Rádio NB FM seja reconhecida a este ponto mas, para tal, mais ou menos como tudo que é genial e significativo na civilização judaico-cristã, será preciso a morte de todos os que dela participaram. E tempo, muito tempo. Reitero que, apesar do meu afastamento definitivo do projeto há cerca de cinco anos, sempre nutri a ideia de que a obra coletiva à comunidade pertence, não alimentando mágoas, rancores ou apegos pessoais quanto aos rumos que tomaram os que nela prosseguiram. Isto é mais importante do que qualquer sentimento ou episódio que narrarei aqui, concordando ou discordando cada qual de cada ponto. Espero não cometer injustiças. Fato é que a experiência desta rádio comunitária mudou minha vida e a vida está aí para ser vivida.

Pois bem, o ano de 1996 marcou minha iniciação na preocupação com causas coletivas. Com 16 anos de idade, eu não suportava mais ver (e muito menos fingir que não vejo o que ainda existe e é assustador pelo comodismo, pela ignorância e pela sensação idiota que o nosso povo ainda tem de que está se dando bem individualmente com o desatre coletivo!) as atrocidades e as inconsequências cotidianas das injustiças do mundo capitalista. O “sistema do mal-estar coletivo e individual profundos”, como mais tarde o cunharia, é muito mais nocivo quando vivido na condição periférica do terceiro mundo. Pior ainda se, dentro de tamanha desigualdade social cultivada no terceiro mundo, o sujeito toma a consciência de si e para si do quanto faz parte da coisa,  que tudo isto é fabricado e planejado, aproveitado e reaproveitado, naturalizado e reduzido incessantemente como se nada pudéssemos contra. Ao sujeito das periferias, diante de tudo, só resta a resignação ou a criminalidade. Ambas suicidas e genocidas. Meu grupo de amigos de infância, graças a Deus, acreditava numa terceira possibilidade.

Ouvíamos Raul Seixas, Cazuza, Legião Urbana, Paralamas, Iron Maiden, Alice Cooper, Ozzy, etc., etc., etc. O rock´n roll nacional e internacional nos alimentava questionamentos, reflexões, críticas e mudanças de atitude. Aquilo fervilhava na cabeça com muito álcool,  cigarro e nenhuma outra droga (na época e na nossa faixa etária, isto ainda era possível mesmo na periferia). Olhávamos o nosso redor e não aceitávamos a coisa pública abandonada como natural. Era como se nos sentíssemos afetados por uma surra ou por uma mãozada na própria bunda de quem a gente nem conhecia ou contra quem nem tinha feito nada. Comparávamos a situação de nosso bairro à situação da zona sul niteroiense e quanto mais presenciávamos a ostentação e o luxo de lindos condomínios, de obras e equipamentos públicos em permanente manutenção, a sinalização perfeita e o asfalto pintado, as áreas de lazer e as casas de show (tudo por lá, é óbvio), mais queríamos entender por que o Barreto era o local do cemitério municipal, do hospital de tuberculosos, das calçadas e ruas esburacadas, das enchentes violentas, do comércio decadente e dos imóveis históricos, dos velhos tempos de vila operária, abandonados. Muitos da Zona Sul achavam (e muitos ainda acham) que o Barreto pertencia (ou pertence) a São Gonçalo, cidade vizinha economicamente mais pobre, e esta percepção soava aos barretenses como preconceituosa. No fundo, no fundo, um preconceito também dos barretenses contra os próprios vizinhos gonçalenses. Mas o fato é o que o Barreto pertencia (e pertence) a Niterói, pagando elevado pelo IPTU não correspondido da cidade. E que os conterrâneos da Zona Sul também não conheciam nada (e, talvez, muitos ainda não conheçam) sua própria cidade por completo. Muito menos a cidade vizinha, o que os levavam (ou ainda levam) a uma segregação urbana inacreditavelmente preconceituosa.

Neste clima, a Associação de Moradores do Barreto, por volta de 1996, estava praticamente desativada. Alguns moradores e o meu grupo de amigos estavam interessados em reativá-la. Queríamos reivindicar e realizar muitas coisas no bairro, ressaltando aspectos positivos de sua história, de seu patrimônio, costumes e moradores. Chamar a atenção do poder público, denunciar a segregação sócio-espacial dos investimentos públicos da Prefeitura de Niterói, construir e/ou preservar elementos cruciais da identidade comunitária. Na associação de moradores, uma entidade aberta a todos os moradores por força de seu próprio estatuto, esbarraríamos na necessidade permanente de ter a maioria dos votos de quaisquer moradores, mesmo os “bem pagos”, sempre que tentássemos aprovar um projeto coletivo. Enquanto esteve desativada, assim como toda a classe política “eterna” (familiar, tradicional, hereditária, aristocrática) da Província Fluminense desejava manter, ninguém comparecia nem puxava reuniões. Quando passamos a fazê-las, percebemos que logo poderíamos encontrar resistências e por tudo a perder. Antes de encontrar claques (plateias arranjadas, pagas por algum político) prontas a abafar nosso movimento, tivemos de buscar alternativas.

Entendemos, primeiro, que deveríamos nos organizar melhor. Constituímos, então, o NÚCLEO BARRETO – GRUPO DE FORMAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL – já no mesmo 1996. Não éramos institucionalizados ainda. Informalmente, reuníamos um grupo na casa de um, na casa de outro, na praça ou na rua. Todas as necessidades e soluções para o bairro eram levantadas e discutidas paralelamente à associação de moradores, a qual participamos até compreendermos que era melhor garantir a autonomia de realização do grupo que ficar em longos embates com quem teria o mesmo direito ao voto na associação, estava afim de atrapalhar e poderia por em risco a concretização dos nossos sonhos. É um princípio dos libertários, o de romper com coletivos formais (instituições coletivas) quando acabam asfixiando a coletividade de propósitos desejados, aquilo que estava sendo executado. Nesta época, nem tinha noção do que havia de profundidade ideológica no nosso feito. Não havíamos estudado o anarquismo ainda mas já sabíamos bem o que queríamos. E ninguém iria sacanear nossas ideias para manter o status quo da cidade, este sim extremamente indesejável.

Lembro-me que um dos questionamentos mais corriqueiros das pessoas era quanto à nomenclatura “NÚCLEO”. “Mas... por que ‘núcleo’?”, perguntavam. “Núcleo de quê? De alguma organização internacional ou nacional?”, indagavam os mais curiosos. Respondíamos que éramos um núcleo que não era representativo de nada mas de si mesmo. Não estávamos vinculados a partidos políticos nem a organizações terroristas, nada a mais que nós mesmos do Barreto. Decerto, alguns de nossos membros – não todos – eram filiados ao PT. Mas o “Núcleo do Barreto do PT” tinha outra funcionalidade, outra organicidade, outra atuação destacada. Como eu também integrava o núcleo petista, não posso deixar de assumir que havia sim o desejo de que todos do NÚCLEO BARRETO – GRUPO DE FORMAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL - se filiassem e participassem do “Núcleo do Barreto do PT” (estratégia até hoje utilizada pelos partidos de esquerda para se aproximarem de pessoas independentes). Mas isto não ocorreu, nós também crescemos em insatisfação com o partido e o próprio núcleo petista viria a se dissolver. Todos os seus membros se decidiram pela desfiliação coletiva do PT em 1998.

O motivo? Algo que perpassava uma questão local e que também se refletia nas questões estadual e nacional: nossa oposição ao “eterno” governo do PDT em Niterói, somada com a crescente (e indesejada) adesão do PT local e ao desastre que foi a direção nacional do partido (na época, o presidente nacional era José Dirceu) intervir no diretório estadual do RJ, quando este, por decisão soberana de seus filiados, apoiara a candidatura de Vladimir Palmeira para governador. Em nome da aliança Lula/Brizola em 1998, o PT do RJ tornava-se obrigado a apoiar o então candidato a governador Garotinho, indicando como vice Benedita da Silva. A história mostraria, tempos depois, que estávamos certos. Este episódio foi o ápice da insatisfação do “Núcleo do Barreto do PT” também, que já se incorporava à frente de esquerda “Reage PT” e ao “Coletivo de Ambientalistas” dentro do PT de Niterói, quando decidiu pelo rompimento. No nosso caso, o grupo independente foi quem cresceu e prosperou, institucionalizando-se mais tarde, mais precisamente em 2001, quando tornamos o NÚCLEO BARRETO – GRUPO DE FORMAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL – na ONG NÚCLEO BARRETO – Associação de Formação Social, Cultural e Ambiental do Barreto.

A formalização enquanto ONG atendia plenamente o que precisávamos para concretizar um veículo de comunicação comunitário mais eficiente que os diversos jornais, panfletos e boletins impressos do grupo. Poderíamos nos adequar melhor para receber recursos captados oficialmente, tanto do poder público quanto da iniciativa privada, desenvolvendo e divulgando outros tantos projetos de intervenção cultural. Além disso, estaríamos devidamente protegidos pela composição dos sócios, evitando a ingerência de políticos locais como acontecia numa associação de moradores. A ONG NÚCLEO BARRETO foi fruto de um amadurecimento político quanto à realidade da comunidade, do país, nossa (a financeira do grupo constituinte) e de estudos que levaram um ano entre discussões, levantamentos e sugestões várias para que pudéssemos levar adiante nossos objetivos históricos. Não constituímos uma ONG para que ela fosse a razão de ser do nosso movimento espontâneo mas sim seu braço institucional, seu suporte jurídico e sua forma de lidar com um mundo que nos exige determinadas formalidades para permitir a materialização das coisas vislumbradas.

Sendo assim, seria de vital importância o caráter participativo e inclusivo de nossas intervenções na comunidade. Em regime exclusivo de voluntariado por muito tempo, perseguindo com insistência a efetivação de projetos sociais elaborados, que previssem a contratação e a remuneração por serviços prestados anos depois das primeiras ousadias, desdobramo-nos em mutirões, doações, empréstimos pessoais, permuta de imóveis cedidos e muita dedicação de quatro diretores e um  corpo de quase cento e cinquenta sócios. Os diretores eram Igor Martins, Fernando Calado, Marcelo Silveira e Rodrigo França. Mais novo do grupo, eu tinha 21 anos de idade na época.



CONTINUA NO PRÓXIMO "POST"

sábado, 14 de maio de 2011

A TV Comunitária de Niterói e a Radiola na Praça

No último “post”, prometi abordar o começo de minhas aventuras na Rádio Comunitária Núcleo Barreto (ou NB). Vou tratar disso em próximas oportunidades. Em tempo, não poderia deixar de falar de duas iniciativas fascinantes que rolaram ainda nos tempos de estudante na UFF e que colaborei entusiasmado em seus primórdios: A TV Comunitária de Niterói, canal 14 da NET na cidade, e a Radiola na Praça, veículos democráticos com formatos diferentes do habitual que refletiam (no caso da TV, que ainda está rolando, refletem) o desejo dos movimentos sociais de se fazerem ouvidos de verdade, sem as restrições ou armadilhas impostas pelos interesses políticos e econômicos covardes dos proprietários da grande mídia.

Considero ambas as lembranças importantíssimas, tanto pelo que presencio nas emissoras de TV e rádio comerciais em voga, quanto pelo que se noticia de episódios recentes envolvendo a Praça de São Domingos.  
   
O ano era 2000. Maurício Viviane e Eliane Slama formavam um casal revolucionário de postura bastante polêmica dentro da universidade. Maurício havia estudado Cinema em outros tempos mas não havia concluído a graduação. Criou uma produtora de vídeo (a TV Caos) que se incumbia de documentar diversas ações de movimentos sociais no país ao longo dos anos 90, uma tarefa que, ao meu ver, sempre foi digna de louvores. Eliane Slama, sua esposa, era (e ainda é) servidora técnico-administrativa da UFF. Na época, diretora do Sindicato dos Trabalhadores da UFF (o SINTUFF), sempre sensível e presente às demandas apresentadas pelo movimento estudantil local e pelos movimentos sociais do mundo. Parece-me que se candidatará às próximas eleições do sindicato neste ano.

Por mais que se discorde de métodos ou avaliações dos dois, ninguém pode deixar de respeitá-los pela ousadia e pela sensibilidade com que conduziram suas empreitadas por onde passaram. Aqui lhes rendo minhas homenagens. Maurício sempre esteve certo quanto à necessidade que os movimentos sociais têm de veículos de comunicação que lhes registrem as verdadeiras intenções. Pela conscientização política hoje, pelas revoluções sociais que almejamos e pelo registro histórico que amanhã servirá de debate aos que procurarem compreender o que pensamos, o que tentamos e o que fizemos em nosso tempo e espaço de ação coletiva.

A TV Comunitária de Niterói implementou inovações estéticas e de conteúdo significativas, ainda que os recursos fossem parcos e a disponibilidade de voluntários menor ainda. No começo, era difícil uma sede, equipamentos apropriados e profissionais da área de comunicação social que se dispusessem a colaborar, ainda que a Direção do Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS) da UFF da época fosse a primeira a permitir a utilização de uma de suas salas e algumas máquinas para os primeiros programas. Saudações aos professores Antônio Serra e Sérgio Santeiro por significativo empenho em um tempo em que discordávamos politicamente de uma série de posturas internas na UFF. Tiveram a sensibilidade de permitir o contraditório e, por tal, já merecem nossas honrosas recordações. Não é coisa que se vê em qualquer professor universitário por aí...

Lembro-me, por exemplo, das gravações na Praça Arariboia, onde fui diversas vezes repórter que entrevistava pessoas ou mediava debates em plena praça pública. Assim como eu, Rodrigo Santarossa, Fabiano (sempre polemizando com seu próprio partido, o PSTU, à frente do DCE), o próprio Maurício Viviani, a Eliane, Luisinho (estudante da Produção Cultural, hoje servidor da MultiRio), estes últimos já se revezando entre a condição de cinegrafistas, editores e repórteres.

Na verdade, uma característica do Maurício (não à toa, certamente a superação da divisão social do trabalho capitalista na prática) era promover o conhecimento e o revezamento de todas as etapas de produção entre todos os membros voluntários. Assim, quem fosse repórter um dia, aprendia e assumia funções de filmagem no outro e assim por diante. Difundir o conhecimento e compartilhar de funções variadas sempre evitou dependências e hierarquizações de indivíduos nos movimentos sociais, uma crítica que os libertários sempre produziram mas que, de uns tempos para cá, acabaram perdendo legitimidade, sobretudo quando carecem de uma proposição alternativa como a citada ou quando não exercitam a práxis destas mesmas alternativas que apontam. Observem como se construía a TV Comunitária e a Radiola na Praça, sempre atentas à participação horizontal compartilhada de atores e público nas intervenções causadas. Nem por isso, por arroubos e contradições, deixamos de ser acusados de vaidade, personalismo ou aproveitamento inadequado da coisa pública.   

Cabines de vídeo eram instaladas na praça, onde o cidadão comum tinha o direito de se expressar livremente por um minuto numa cabine fechada em que tinha ele, um banquinho e uma câmera, sobre o que lhe afetasse o juízo. Diversos artistas sem mídia, moradores de Niterói, profissionais de várias áreas e membros de movimentos sociais da cidade receberam destaque, foram entrevistados ou se apresentaram na programação sem cortes temerários quanto ao conteúdo.

Lembro-me do candidato a prefeito pelo PRONA, antigo partido do Enéas, vereador e delegado Renée Barreto, ter fugido de um dos debates que havia confirmado presença e seria realizado na Praça Arariboia. Pouco antes de começarmos, recebemos a notícia de que o candidato estava fazendo corpo-a-corpo em frente ao Terminal Rodoviário João Goulart no horário do debate. Logo ali ao lado, na barba da produção! Rodrigo com a câmera e eu com o microfone fomos imediatamente ao local tirar satisfações do candidato. Prontamente, ele nos atendeu e tentou se justificar numa tremenda saia-justa.

Este grupo, mais tarde, iniciaria outro projeto na Praça de São Domingos: a “Radiola na Praça”. Inspirada no modelo de radiolas de São Luís do Maranhão, a proposta consistia em garantir um equipamento de áudio na praça, semanalmente às noites de terça-feira (lembro que alteramos os dias da semana em alguns momentos, de acordo com a conveniência do público), que pudesse tocar sons gravados sugeridos pelo povo na hora (o sujeito trazia seu CD e entrava com sua proposta numa fila de sugestões, um modelo que chamávamos “música por demanda”). Um locutor apresentava a radiola como se estivesse em um autêntico programa de rádio comum e ao vivo, onde também eram apresentadas bandas alternativas, poetas, pensamentos e debates rápidos. Criávamos assuntos, levantávamos questões, informávamos eventos e provocávamos conscientização política, jamais deixando que apenas as músicas rolassem sozinhas. No começo, sempre de improviso, eu fazia a locução. Depois, para que evitássemos acusações de personalismo, Luisinho passou a realizá-la. Os ambulantes eram os nossos maiores patrocinadores enquanto os comerciantes, tomados por ódio da concorrência que começava a se instalar com suas barraquinhas na praça, queriam mais era nos ver pelas costas. Bêbados dançavam na frente do palco que era ao nível do chão, demonstrando que estávamos prontos para a ausência de hierarquia. Muitos tomavam o microfone e intervinham. A Barraca do Primo nos cedia o ponto de luz e o casal que mantém, até hoje, sua barraca de lanches na outra extremidade da praça, nos custeava x-tudo e cachorro-quente como apoio cultural. Outros, cerveja. E ainda outros, cinco reais. Os comerciantes, nada. Quando muito insistíamos, o Tombadilho ou o antigo dono do Pardal (hoje Bar Gay), também cediam uns cinco reais. Uma parte do equipamento era alugada e transportada com recursos próprios, o que arrecadávamos nunca era suficiente.

O incrível é que não presenciávamos brigas constantemente nem ninguém vinha querendo dar tiro, matar alguém na praça. Não me lembro de um público selecionado, de artistas, intelectuais e remediados que gravitassem em torno da UFF apenas. Lembro-me de gente muito pobre e humilde, de marginais e intelectuais convivendo, como toda boa praça pública sem grades deve ser digna de receber. O que acontece hoje é fruto da época atual, onde o egoísmo prevalece em tudo, até na universidade que deveria zelar pelo contraditório do pensamento único hegemônico, pelo menos na cidade em que está sediada. Não há local isento de violência quando a sociedade como um todo se encontra doente de egoísmo. Segregar/reprimir é ilusório e temporário sempre, pano que abafa mas não resiste aos enormes traumas que cria. Nossa proposta de comunicação era também uma proposta de envolvimento e convivência com os dramas que afligem nosso povo, buscando dialeticamente aprender e ensinar acerca das soluções cabíveis. Vejo que alguns setores da grande mídia vêm paulatinamente reconhecendo esta necessidade, menos pelo amor ao próximo (necessário, primordial, única saída para os dramas sociais) e mais pelas dificuldades cotidianas que a corrosão do tecido social vem causando a todos, com doses elevadas de depressão, insegurança íntima e violência.

Muitos exemplos de aplicação dos métodos de aproximação  e identificação dos sujeitos com sua realidade concreta, essência que constitui a razão de ser das mídias alternativas, já podem ser vistos na grande mídia, como os programas sobre a periferia da Regina Casé ou o quadro “Parceiros do RJ”, apresentado pelo RJ TV, ambos da Rede Globo. O que não existe – porque não é propósito das grandes mídias alcançar - é a aproximação e a identificação com lutas, utopias e sonhos alternativos ao câncer social do capitalismo. Eis a segunda razão de ser, intrínseca aos movimentos de comunicação independentes, que jamais poderão abordar uma greve ou um protesto democrático como “criadores de dificuldade para o trânsito de veículos automotores”, por exemplo.                 

Tanto a TV Comunitária de Niterói quanto a Radiola na Praça surgiram com ambos os propósitos: 1) Olhar e abordar o povo como ele é e sem inculcar na cabeça ideais consumistas de vida, moralistas ou padronizados por reprodução de estrangeirismos, inalcançáveis à maioria ou alcançáveis apenas ao custo de métodos criminosos e da hipocrisia nas relações;  2) trazer nossa população para a consciência do absurdo em que naufragam milhões de vidas submetidas à exploração de poucos, ou seja, que há uma razão maior para tamanhos retrocessos históricos no respeito às diferenças e ao próximo. Que esta razão se acomoda sob construções mentais patrocinadas por covardes. E que tudo isso não é natural e sim uma opção política construída coletivamente.

Espero que, um dia, sindicatos, partidos de esquerda, ONGs, libertários, associações de moradores, associações de classe e todos que lutam em instituições sérias e inspiradas pela mudança do paradigma “dominadores X dominados” possam se juntar e financiar projetos ousados de comunicação alternativa acima de suas peculiaridades e interesses mais imediatos. Por uma causa maior, a luta anti-capitalista, a necessidade de conter o câncer social deste modelo econômico que não se sustenta sem mal-estar profundo, todas as entidades e indivíduos com capacidade de financiamento deveriam se unir, reivindicar concessões públicas de TV e de rádio e estruturá-las de verdade, debatê-las e planejá-las a fundo, quanto aos propósitos, aos conteúdos, às abordagens e às estéticas. No dia em que tivermos um canal de televisão não-estatal aberto, dirigido e financiado pelo conjunto dos movimentos sociais revolucionários, bem trabalhado e atraente, apresentando cotidianamente ao povo nossa visão de mundo sobre todos os acontecimentos e temas da vida social, certamente teremos uma sociedade mais saudável. Nossas lutas serão mais legitimadas e nossos governantes, se continuarem existindo, ainda sim, serão outros. Menos herdeiros do poder, aliviando nossa república de ser tão monárquica.

O que não dá mais é falar para poucos quando os nossos inimigos falam para muitos. Todo dia, suas versões dos fatos sociais, selecionados entre o que se pode ainda citar, são repetidas nas esquinas, nos locais de trabalho, nas escolas, nos órgãos públicos e até nos movimentos sociais. Vejo uma tendência desigual para o tratamento de desgraças e não acho que isto seja apenas “reflexo da realidade em que vivemos” ou “porque é o que dá audiência, é o que o público gosta”. Onde há espaço para o contraditório? Que democracia é esta? Será que não há uma propaganda generalizada da insegurança íntima? Será que isso não é interessante para os covardes e suas covardias - mais gente frágil, mais gente com medo, mais delatores, mais individualistas? É por essas e outras que nem lideranças políticas novas emergem, sobram herdeiros em todas as áreas profissionais que não largam o osso e nem sei se são tão competentes assim como se carregassem excelência no sangue. A comunicação de massa é flagrantemente nazi-fascistoide. Que fazer? Na hora que o Governo Dilma começar a discutir concessão pública de canais de TV e rádio, essa turma poderosa que já acusa tentativa de censura pelo governo e tenta reduzir o debate, não terá alternativa nem concorrência entre o seu próprio modelo privado e o modelo estatal.
 
Cadê nós?        

sábado, 7 de maio de 2011

A SENZALA e o costume docente de escravização estudantil

Em maio de 2001, há exatos 10 anos, nós, os estudantes do ICHF-UFF, fizemos uma ocupação diferente no canteiro em frente aos blocos O e N do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da UFF. Aproveitávamos o 13 de maio, data lembrada pela abolição da escravatura assinada pela Princesa Isabel em 1888. Dessa vez, optamos em não permanecer acampados. Resolvemos instalar uma tenda, um telão e promover manifestações por uma semana, aproveitando-se do hábito que se criou em torno dos palcos livres no Tablado Leandro Konder. A esta ocupação chamamos de “SENZALA”.

Era uma referência à data histórica mas também uma analogia contemporânea à relação entre professores e alunos na UFF, sobretudo ao exercício costumeiro do patrimonialismo no uso da oferta e seleção para contemplados em bolsas, na contratação de estudantes em espaços privatizados da universidade e também na manipulação de interesses políticos junto ao movimento estudantil. A proposta da SENZALA era denunciar que estávamos nos tornando escravos, ainda que remunerados (ou precariamente remunerados), o que levantou questionamentos conceituais à época, já que “escravo”, conceitualmente falando, não é condição de trabalhador que recebe qualquer remuneração pelo seu serviço. Mas a denúncia abordava o vínculo ideológico e pragmático entre professores-senhores e estudantes-escravos que estava subentendido à contemplação com bolsas ou contratos temporários na universidade, algo mais próximo da lógica patrimonialista que corrompe as relações entre servidores públicos e cidadãos diante do que a lei prevê para o uso democrático e igualitário do patrimônio público. Favorecimentos pessoais, conchavos, desvios ou privatização de atribuições e finalidades no serviço público, as formas mais comuns de manifestação do patrimonialismo brasileiro, também eram (e ainda são) praticados na academia brasileira e o escandaloso é que determinavam (e ainda determinam) desde rumos tanto do movimento estudantil, do movimento sindical, quanto da pesquisa científica e do ensino desenvolvidos pelas universidades públicas brasileiras.   

Sempre questionei – e não era o único - o excessivo poder dos professores na estrutura de funcionamento da universidade. Só eles podem se candidatar e se eleger aos cargos de chefia e direção dos órgãos executivos universitários (chefia de departamento, direção de instituto e de centro, reitoria). Por tal, ganham gratificações e comissionamento em seus salários. Nos cargos colegiados (consultivos ou deliberativos de normas internas), possuíam a prerrogativa de mandatos biônicos (quem já era diretor de centro, por exemplo, tinha cadeira cativa no conselho universitário) e o peso desigual de 70% das vagas, enquanto os outros 30% eram divididos entre servidores técnico-administrativos e estudantes. Não há remuneração a mais para docentes ou servidores que integrem mandatos nos órgãos colegiados, assim como os representantes estudantis são voluntários, ou seja, não recebem nada.
Não sei como está agora, já me disseram que, com a última reforma estatutária, houve a garantia da paridade representativa (as três categorias – docentes, discentes e servidores técnico-administrativos - têm hoje o mesmo peso).

Se assim vem sendo preenchido e efetivamente cumprido, trata-se de um avanço em relação às lutas que travávamos em 2001. Mas a qualidade da atuação política ainda é, sem dúvida alguma, comprometida pela omissão ou complacência da maioria dos estudantes. E uma das razões se situava – não sei se ainda podemos afirmar o mesmo nos dias de hoje -  justamente na relação, digamos, promíscua entre as condições subliminares (ou até objetivas) impostas por professores inseguros para o sucesso de seus próprios alunos na carreira acadêmica. Refiro-me a histórias de perseguições conhecidas ou veladas que fincam os tentáculos patrimonialistas nas avaliações corriqueiras de trabalhos acadêmicos, perpassam a oferta de bolsas e contratos temporários, a seleção de bolsistas e de novos professores por concurso público, chegando até a descartar inovações ou rumos importantes da pesquisa científica para a sociedade que nos financia. Isto perpetua, por exemplo, o expurgo de gênios e obras revolucionárias nas ciências, algo que costumamos atribuir apenas a caprichos de tempos remotos e autoritarismos passados, mas que se torna presente não tanto de fora para dentro quanto se manifesta, muitas vezes, de dentro para dentro da academia.

Afirmo seguramente que sacrifiquei minha passagem pela academia por propor, denunciar e fiscalizar costumes patrimonialistas na universidade que tanto amei e defendi pública, gratuita e de qualidade. Ora, se só vai ter bolsa, nota, contrato ou aprovação em concurso público, aquele que agradar ou atender interesses particulares de professores, a universidade se nivela por baixo, fica comprometida pelo que ensina a criticar e a transformar na sociedade, torna-se aristocrática e reprodutora de heranças equivocadas e injustas, descumpre a lei e os princípios democráticos, extermina diferenças, perde moral. Na minha avaliação à época, caminhávamos para uma fábrica de diplomas que em nada se diferenciava da qualidade das instituições privadas.  

A proposta da SENZALA aconteceu em meio a uma percepção empírica que tive quando percebi que não bastava me opor e criticar nossos governantes, sem dúvida alguma parceiros e patrocinadores de privatistas e desagregadores das instituições públicas, sem apontar e cobrar quem são os seus aliados, os seus adesistas que não se contentam ou temem mesmo o status quo com a estabilidade dentro do funcionalismo público. Subservientes com garantias diferenciadas no mercado de trabalho do país? Nunca aceitei professores que rejeitam alunos por elaborarem críticas ou propostas inovadoras, aquelas que seu intelecto conhecia ou intuía ou aquelas que nem sequer passassem pela sua cabeça, por pura vaidade, insegurança ou interesse político mesquinho. Estes se tornaram exemplos do que jurei não ser enquanto professor. Rechaçaram comentários, menosprezaram minha capacidade, negaram-me notas justas diante da turma, quiseram cassar minha representatividade enquanto estudante, negaram-me bolsas, tentaram oprimir convidados de semanas culturais organizadas, agendadas e autorizadas, mandaram recados por bolsistas de que estavam dispostos a tudo para me perseguir e assumiram até um jubilamento arbitrário, tendo que anulá-lo por recurso à PROAC, o que me conduziu de volta mas sem a mesma empolgação pela academia.

Talvez estes professores (que não são professores) contassem com a minha punição pelo mercado de trabalho, do qual não previa nem mensurava tamanho o laço de dependência ou subordinação às suas certificações. Isto sim, uma autocrítica concreta. Fui longe, dei aula por nove anos sem o diploma, virei lenda mas reconheço que isto me limita sobretudo pela impossibilidade de prestar concursos públicos na área. Sou fruto de um sistema completamente perturbado por governantes e profissionais inseguros, além de um povo individualista e moralista, indiferente ao que verdadeiramente lhe libertaria de suas próprias opressões. A escola brasileira ficou tão hostil aos bons professores quanto aos bons alunos, tornou-se uma instituição esvaziada de seu sentido originário, mantida mais por culpas moralistas da sociedade e necessidades financeiras de seu corpo do que pelo propósito de construir grandes cidadãos e excelentes profissionais. Quanta irresponsabilidade! Foram as brechas deste caos que me oportunizaram ser professor sem diploma ao mesmo tempo em que presenciei a evasão de diversos diplomados por divergências políticas, falta de pagamentos, salários aviltados, violência urbana e desinteresse de alunos. Muitos, aliás, tentam voltar para a carreira acadêmica, onde prorrogam um pouco mais sua existência nas bolsas de mestrado, doutorado, pós-doutorado, etc. É claro que tentei fazer o melhor mas, por diversas vezes, fiquei pensando: se formados e pós-graduados passam pelas mesmas condições humilhantes as quais enfrentei, que me adianta tamanho esforço? Parece que lutamos contra nós mesmos.

Como não conseguimos uma mínima identidade enquanto professores, como não nos respeitamos e nos afirmamos perante à sociedade à altura do que representa e necessita um bom professor, terminamos disputando migalhas na academia, procuramos um bom casamento de suporte ou mudamos de profissão.    

A SENZALA aconteceu em meio ao seguinte ambiente do ICHF: crise no departamento de História levava professores a acusarem-se mutuamente pela forma como ingressaram no próprio departamento. Alguns manifestavam oposição ao direito do estudante da graduação de se representar nas reuniões de departamento porque havíamos conquistado vitórias importantes. Vitórias contra propostas de privatização do espaço público pelos professores. Uma empresa júnior, de nome Analítica Consultoria, havia sido criada e instalada no ICHF pelos professores da Ciência Política. Fazia pesquisas de opinião, contratada por grandes veículos de comunicação privados. Utilizava-se do espaço físico da universidade e da mão-de-obra barata de alunos necessitados nas pesquisas de opinião mas os professores, além de restringirem ou omitirem satisfações à comunidade acadêmica pelas práticas, pelo custeio e pelos lucros da empresa “incubada”, pareciam exigir, de forma velada, determinadas contrapartidas dos alunos contratados pela empresa. Esta empresa acabou incorporada como órgão institucional da UFF – o Instituto DataUFF -, deixando ICHF e ganhando sede própria no centro de Niterói. Inúmeros foram os casos de bolsistas custeados por verbas públicas ou de contratados temporários como prestadores de serviço pela Fundação Euclides da Cunha (uma fundação pública de direito privado, criada pelos professores como de apoio institucional da UFF) que atuavam no lugar de servidores técnico-administrativos, em número cada vez menor pela ausência de concursos públicos.  Eu mesmo, certa vez, me surpreendi quando me deparei com um desafeto político, estudante como eu, trabalhando na secretaria do meu curso com acesso amplo, geral e irrestrito aos meus dados enquanto estudante. Conheci gente que fez graduação-relâmpago com direito a pacote que incluía bolsa de mestrado garantida, propostas sexuais em torno de seleção de bolsistas, dentre outros absurdos corriqueiros que desmerecem qualquer reconhecimento meritocrático.

A reunião do departamento de História com tamanhas revelações, digamos, íntimas fora filmada e gravada por um de nossos companheiros. Exibimos seu teor na íntegra em um telão montado na SENZALA no período noturno. Acontecia um Encontro Nacional de Estudantes de História no Campus do Gragoatá naquela mesma semana e muitos colegas que estudavam em diversas faculdades do país puderam assistir às cenas deprimentes. A área de História da UFF detinha, ao lado do grupo da USP, uma certa louvação por professores, pesquisadores e estudantes do país inteiro. Por tradição, os nomes mais famosos e renomados na área vinham da UFF ou da USP. Imagine a repercussão negativa que deu depois que colegas da área, vindos do país inteiro, assistiram ao vídeo com aquele professor famoso, que enchia a boca para falar de sua própria luta contra a ditadura militar, que escrevia tantos artigos de jornal contra o autoritarismo de setores da esquerda, defendendo que estudante não podia ter direito a voto, que estudante da graduação não pensa? Ou um outro, aos gritos, apontando para uma renomada professora: “vê lá, hein! Você sabe como foi que entrou neste departamento, professora!” Em seguida, a professora é vista se calando!? Inacreditável!

A SENZALA marcou História na UFF mas foi também a minha despedida. Assim que fui presenteado (este me parece o termo apropriado para uma expulsão arquitetada) com a minha “carta de alforria” da UFF, pude me dedicar a um projeto coletivo ambicioso: a rádio comunitária do Barreto, sobre a qual tratarei no próximo “post”. No ano de 2001, eu estava lecionando para a minha primeira turminha de 5a série em uma escola particular do Cafubá, Região Oceânica de Niterói, na condição de estagiário indicado pelo CIEE. Paralelamente estava trabalhando na Assessoria de Meio Ambiente da Presidência do CREA-RJ, montando uma rádio comunitária e uma ONG na comunidade em que havia nascido e sido criado. Foi um ano extremamente rico em experiências. Tornei-me espírita a partir dele e de vivências concretas com o outro plano. Certamente não era um bom aluno de História e não devia merecer ficar lá azedando a festa dos outros. Mais à frente, voltaria e tentaria cursar História sem o mesmo apreço  que sentia enquanto aluno em movimento no passado e, agora, professor por autodeterminação. Faria um novo vestibular para Letras – Português/Latim – e deixaria novamente em função de uma outra experiência riquíssima em Minas Gerais.

A primeira saída, em 2001, foi quando eu comecei a construir a História de meu tempo em outros ares, pois um libertário não se apega nem se cansa com as mais absurdas adversidades ou a mais tentadora proposta de coletivo eterno. Muda de estilo, muda de estratégia, começa de novo sempre, sabe reconhecer os limites de sua atuação sem rancores nem mágoas no espaço e no tempo. Tem muito o que fazer, ensinar e aprender, no mundo que não é dele mas precisa dele para ser melhor. Estamos em diversas frentes e não reivindicamos para nós, individual nem coletivamente, nem a posse material, nem a condução eterna de nenhuma das nossas obras pelo mundo. Isto nos diferencia dos capitalistas e também dos socialistas, faz de nós um pouco mais cristãos – pelo desprendimento e pela caridade - do que a média e ainda causa impactos que, revisitados no futuro, parecem ter logrado algum êxito.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Poliesculhambose - continuação I

A programação oficial da primeira Semana Cultural "500 Anos de Poliesculhambose - a nossa versão sobre os 500 anos de Brasil", realizada em janeiro/2000. Confira abaixo:


Quarta-feira, 05/01/2000/XX?
13h - Exibição de desenho animado: "Yellow Submarine"
15h - Pintura Livre do chão do ICHF
16h - Escambo
18h - Exibição de curtas: "Gentileza", "Ilha das Flores" e "Chaplin"
19h - Palestra: "Unidade na Diversidade" com um palestrante da Comunidade Fé Bahá´i.
20h - Exposição do artista plástico Darcilei de Oliveira


Quinta-feira, 06/01/2000/XX?
13h - Filme: "Bye, Bye Brasil"
16h - Filme: "Alma Corsária"
18h - Mestre Azulão (repentista)


Sexta-feira, 07/01/2000/XX?
13h - Filme: "Easy Rider"
16h - Filme: "Queimando Tudo"
18h - Filme: "Hair"
21h - Dinâmica de grupo com a comunidade Bahá´i
21h30 - Palco Livre com os grandes e admiráveis músicos do ICHF e você, se também quiser fazer o seu som.


Segunda-feira, 10/01/2000/XX?
13h - Filme: "Leolo"
14h30 - Palco Livre (Teatro e Coreografias): 
             I) "O Analfabeto Político", de Bertold Brecht, com o grupo do Centro Cultural Félix Guatarri (Visconde de Mauá);
             II) Ballet com Raquel Roll (Raquel Pedacinho do Céu);
             III) Interpretação de Músicas do Raul Seixas com Calado e Nadja.
18h - Exposição do Museu da Cachaça de Paty do Alferes
19h - Palestra: "Revoluções Moleculares", com palestrante do Centro Cultural Félix Guatarri.
21h - Dinâmica de grupo
21h30 - Chorinho


Terça-feira, 11/01/2000/XX?
13h - Filme: "Ed Wood"
16h - Filme: "Carne Trêmula"
18h - Teatro de Bonecos com Fernanda Machado (História-UFF) e Cláudio Salles (Movimento Pop Goiaba)


Quarta-feira, 12/01/2000/XX?
18h - Apresentação do Movimento Arte, Resistência e Oficina (Mareô) 
19h30 - Roda de conversa com o poeta Deley de Acari


Quinta-feira, 13/01/2000/XX?
18h - Exposição da fotógrafa Luciana Martins


Sexta-feira, 14/01/2000/XX?
Continuação da exposição fotográfica de Luciana Martins
18h - Folia de Reis de Belford Roxo (RJ)


(reproduzido do folder original)


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No começo do folder, vinha o slogan cunhado por André Meirelles, saudoso amigo, baseado em Pessoa: "... porque viver é preciso, sobreviver não!!"


Ao final, a frase que nos inspirou muito (além, é claro, da música "Os alquimistas estão chegando", de Jorge Benjor):  "... quem fala em revolução sem mudar o cotidiano traz na boca um cadáver."


Para desespero dos nossos professores, o som do CA de História era colocado no Tablado Leandro Konder (bloco O do ICHF), de onde o Calado falava sem parar, divulgando a programação e chamando as pessoas entre músicas tocadas pelo ainda projeto de DJ Bob Pai. 


Jamaica, Patrícia Solar, Roger Hitz, Gabrimilo, Claudio Salles, Guto Beluco, entre outros, eram músicos fáceis de serem encontrados nos palcos livres, que continuaram acontecendo mesmo depois da Poliesculhambose I e II por algum tempo. Célebres poetas como Cezinha e Lupércio também deram suas notáveis contribuições. Lembro-me de parte do clássico de Cezinha: "ainda que eu comesse do meu cocô e tomasse do meu xixi, jamais deixaria de Ser o Ser que eu mesmo construí". Ou ainda o poeta Lupércio: "Camomila na pupila para dourar a íris", "há quem diga que maluco é quem rasga dinheiro, pois eu rasgo esta merda que me envelhece e me aprisiona", rasgando em seguida, diante do público, uma nota de cinquenta reais.


Por muitas vezes, eu, Rodrigo e Bob Pai dormimos sobre o palco do tablado para esperar o ICHF abrir suas portas e assim guardar o som do CA de História em local seguro: a sala do DA de Ciências Sociais.


Quem não se lembra, já durante a segunda semana  Poliesculhambose (abril/2000), da Professora Tania Stolze (Antropologia) abrindo mão de suas aulas por uma semana para receber em sua casa, acompanhar no ICHF e traduzir cada palavra dos índios Juruna, uma família de visitantes convidados, que pintavam os corpos das pessoas, mostravam seus artesanatos e conversavam a respeito de seus costumes numa roda informal no Tablado Leandro Konder? 


E o surto do Professor Luís Carlos Soares, o "Franja", expulsando-os da Galeria do ICHF aos berros? Quando eu o interpelei questionando que não tínhamos a mesma educação dispensada aos convidados estrangeiros da universidade que vinham palestrar, Franja teve um surto e gritava louco "Desculpa! Desculpa! Eu errei!", saindo em seguida.


Alguém se lembra da quantidade de papel higiênico pendurada nos dois blocos - N e O - com a faixa na frente: "a universidade pública não é privada"?


Outro fato incomparável: quando o estudante da psicologia narrou que um policial à paisana estava ameaçando dar tiros nele na orla do campus. No microfone, solicitei ao diretor do ICHF, na época o Professor Novaes, para que descesse de seu gabinete e fosse conversar com o louco que aparentemente era um sujeito qualquer pescando com sua família. Novaes desceu junto com funcionários, questionou o sujeito que argumentava ter feito isso porque viu o aluno fumando maconha no campus. "Isso não justifica que pessoas armadas entrem no campus de uma universidade federal e fiquem ameaçando estudantes aqui dentro. O senhor, por favor, se retire imediatamente!" 


Sob aplausos de vários estudantes e funcionários, o diretor pôs pra correr o policial militar que ainda saiu perseguido com seu fusquinha por vários cachorros do campus, numa das cenas mais hilárias que já vivenciei na UFF.       

  
  



sábado, 23 de abril de 2011

500 anos de Poliesculhambose - a nossa versão sobre os 500 anos de Brasil

Em janeiro, rolou a primeira. Em abril de 2000, a segunda. Ambas as Semanas Culturais "500 Anos de Poliesculhambose - a nossa versão sobre os 500 anos de Brasil" foram organizadas por um coletivo de estudantes de História, Ciências Sociais e Psicologia da UFF. Aconteceram no espaço do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da mesma universidade. Seu pontapé inicial: a preocupação que tínhamos com uma crescente e absurda propaganda global (com o apoio oficial do governo FHC) que exaltava, através do antigo calendário da historiografia oficial, supostas glórias brasileiras de um evento forjado pelos colonizadores portugueses para a nossa exploração. 


O "descobrimento" do Brasil, assim louvado em livros didáticos de História que formaram gerações, fora interpretado até meados dos anos 80 como um evento digno de constar em nosso calendário oficial de comemorações cívicas. A data de 22 de abril de 1500, suposto momento histórico inusitado, cercado de controvérsias, da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro, na Bahia, por obra e acaso de correntes marítimas desconhecidas no Oceano Atlântico que desviaram o comandante e suas caravelas do destino inicial (o caminho das Índias pelo contorno do continente africano), já não era fato tão mais "inusitado" assim pois a comunidade dos historiadores brasileiros, mediante documentos históricos contundentes, havia se dado por um consenso contrário desde os anos 80 do século XX. 


Não obstante as provas e os relatos de inspeções espanholas e portuguesas anteriores à data de 22 de abril de 1500 pelo que seria, mais tarde, o território brasileiro, os estudantes da UFF do ano 2000 não viam motivos para se celebrar com requintes ufanistas uma data que mais confundia interesses da nossa antiga metrópole em nos colonizar, dominar e extorquir riquezas e trabalho humano, que propriamente motivação para inflamar um sentimento de patriotismo. Mesmo assim, percebiam os estudantes que era preciso uma resposta à altura, algo que marcasse profundamente o descontentamento de quem estuda a História e as relações humanas na sociedade brasileira com o trato que a Rede Globo e o Governo Federal ofereciam ao tema. 


Afinal de contas, como aguentar relógios enormes fincados nas praias e centros de grande densidade populacional do país com estética de mau gosto e propósito tão subalterno? Eles portavam cronômetros regressivos que calculavam, dia por dia, quanto faltava até que se chegasse o fatídico 22 de abril de 2000. Segundo o espírito da comemoração cívica evocado, alcançaríamos um marco civilizatório por conta do aniversário redondo de "500 anos de Brasil". 


Como assim!!? - reagíamos. Como comemorar uma data que não corresponde ao aniversário do país (somente compreendido desta maneira, como Estado independente perante o mundo, a partir de 07 de setembro de 1822), que não foi verídica o quanto propagaram (visto que não foi inusitada, imprevista, por acaso: navegações anteriores registraram a existência do território que Cabral só veio mais tarde a reafirmar posse, a assumi-la, mediante traçado do Tratado de Tordesilhas, ao mundo) e cujo efeito não foi tão louvável assim aos povos nativos (os indígenas escravizados, dizimados, aculturados) e aos povos forçados à migração (como os africanos escravizados). Humanitariamente falando, não foi louvável nem mesmo para Portugal.


Se pudéssemos comemorar algo relativo à data, delimitaríamos o produto da miscigenação brasileira, com a grande mistura de culturas que constituíram nossa sociedade. Mesmo assim, em 2000, ainda entendíamos que estávamos muito desiguais nas oportunidades, muito subalternos às novas metrópoles que surgiram no tempo e com desafios a superar que exigiam de nós um olhar menos elitista e mais popular acerca de diversos aspectos. 


Foi assim que produzimos a Poliesculhambose. O formato foi inspirado em iniciativas estudantis anteriores do próprio ICHF-UFF, como a Semana Gaia no Campus, realizada nos anos 90. Amigos veteranos de viés libertário sempre relatavam iniciativas de forte impacto cultural, muito envolvimento artístico e objetivo revolucionário anti-capitalista. Sabe-se que os libertários costumam ser criativos, ousados, culturalmente engajados e um tanto o quanto imprevisíveis. O movimento estudantil da UFF nesta época (anos 90 e início dos anos 2000) era fortemente influenciado por esta tendência. Na verdade, tendência esta que construiria influência nas concepções ideológicas de muita gente boa do PT e do PSOL de hoje. Mas este é assunto para muitos outros artigos.


O termo "Poliesculhambose" não foi copiado de lugar nenhum. Nossa ideia nasceu de juntar à palavra "ESCULHAMBAÇÃO", ou seja, o sentido histórico da construção civilizatória do Brasil, o prefixo "POLI", atribuído à pluralidade, e o sufixo "OSE", uma referência científica da Química sempre presente em termos como "osmose", "fimose", "necrose" etc. Concebi o conceito "500 anos de Poliesculhambose" deitado no gramado do campus, exatamente ao lado do bloco N, após uma boa contemplação do pôr-do-sol em nossa orla. 


Na semana cultural, preservamos a variedade da programação. Da Fé Ba´hai com dinâmicas motivadoras até artistas populares que nunca tinham entrado na universidade. A partir do mote da nossa versão para os 500 anos de Brasil, de tudo um pouco foi trabalhado. A organização do evento decidiu acampar no local de produção e o que era para ser uma semana cultural em janeiro de 2000 acabou levando duas semanas de cada mês (a primeira versão em janeiro; a segunda, em abril). 


Uma das características libertárias mais marcantes chegou a ser aceita pela burocracia da UFF. Em cada documento oficial que solicitava autorização de espaços físicos e equipamentos, assinávamos "Coletivo de Estudantes de História, Ciências Sociais e Psicologia da UFF". Sem um "cabeça" para dar a cara a tapa, uma liderança que assumisse sozinha diversos riscos ao patrimônio público, nada era autorizado. 


No nosso caso, foi. Simplesmente passou. Ninguém pagou propina por isso.


Num dos episódios mais marcantes, quando grafiteiros expuseram suas interpretações sobre o tema nas pilastras do bloco O e o ICHF amanheceu grafitado com alcunhas anti-capitalistas, uma autoridade universitária me procurou para tirar satisfações: "foi danificado o cabo de telefonia da caixa grafitada no térreo. Quem vai pagar?" Eu lhe disse: "olha, a caixa não devia estar sem porta. Já estava sem porta há muito tempo. Essas coisas é que danificam o patrimônio da universidade, a arte não!"


LEIA A CONTINUAÇÃO NO PRÓXIMO POST    


                      

sábado, 16 de abril de 2011

Oficina de Libertinagem, que porra é essa!?

Eu sei o quanto parece ínfimo, desprezível, desnecessário aos olhos dos companheiros marxistas. Também sei que ser libertário não é ser unica e exclusivamente da tendência individualista. Sou mais coletivista e espiritualista. Compreendo meus companheiros anarco-individualistas quando teciam e tecem críticas à opressão do Ser frente a reprodução de propostas coletivistas, como o caso da experiência soviética, em nossos tempos. Mas o fato é que ser individualista, na minha humilde concepção ideológica, é estar mais próximo da ideologia capitalista do que do socialismo ou do anarquismo.
A libertação do Ser individual é tarefa da luta anti-capitalista também, uma vez que o sistema dos patrões reduz o Ser à opressão do mercado e dos moralismos religiosos, grandes sustentadores de coletivos homogenizantes, que muitas vezes reafirmam a subserviência do homem pelo homem como identidade natural.

Como espiritualista, defendo que só construiremos coletivos fortes quando entendermos alguns pressupostos de derrotas historicamente experimentadas. Um deles reside no fato de que movimento algum prospera ancorado em lideranças estanques com seguidores fiéis. Isto porque a identificação de movimentos que dependem de líderes para existirem facilita a perseguição pelos capitalistas, que prontamente desarticulam ou destroem os movimentos sociais mais facilmente. Para que não haja "seguidores fiéis" e sim críticos participantes, temos que fortalecer habilidades e diferenças individuais sempre em busca de coletividades que não são eternas nem no tempo nem no espaço. 

Coletividades que possam se insurgir por causas comuns, se dissolverem e se estabelecerem nas circunstâncias históricas colocadas inflamam revoluções significativas com alta capacidade de projetarem avanços num mundo que não é dos revolucionários mas que depende deles para se reformular sempre. Nada será alcançado sem que pensemos na independência do Ser em suas particularidades assim como nenhum indivíduo sozinho, por mais nobres que sejam seus argumentos,  prosperará qualquer luta revolucionária anti-capitalista se for incapaz de se organizar e de se entender como coletivo, ainda que sua participação na coletividade seja pontual ou orgânica. Para tanto, não podemos sustentar a insegurança individualista dos espíritos: ela interessa aos manipuladores. 

Militantes fortes precisam, antes de acreditarem no que projetam para o mundo, de acreditarem na capacidade de superação de si próprios diante das condições materiais de existência, diante de toda e qualquer opressão que corrobore com a naturalização daquilo é construção cultural. De outra maneira, que farão com suas obsessões, seus traumas, suas fraquezas não resolvidas quando tiverem de combater um inimigo tão ardiloso quanto o capital?   

Foi com este espírito que desenvolvemos a Oficina de Libertinagem no Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais, realizado na UFF em 2001. "Libertinagem!?", pensaram e ainda pensam alguns com ar de reprovação. "Isto é puro hedonismo!", como muitos rotularam e ainda rotulam. "A universidade não é espaço para orgias e orgias não são revolucionárias", como também já ouvi de alguns moralmente resignados. É a carga da significação histórica do termo "libertinagem" (cunhada pelos cristãos no Ocidente como algo a ser repudiado ou enquadrado, incrivelmente como toda e qualquer forma de prazer e de tesão. Por quer será?)  que está preconceituosamente julgada e condenada. E não a proposta da oficina em si. Quem participou da "Oficina de Libertinagem" naquela época vivenciou aspectos inspirados na somaterapia, na física, na psicologia, no espiritualismo e no socialismo libertário, na verdade um esforço de interdisciplinariedade em busca do fortalecimento espiritual dos Seres a se coletivizar.

A dinâmica se deu assim (vai visualizando): com muito batuque, algumas pessoas recebiam em uma sala escura do prédio do Instituto de Letras os participantes. Para tal, a oficina foi programada para acontecer à noite, mais precisamente à meia-noite. Pediu-se à organização do evento que fornecesse o batuque e velas. Eu fiquei como "palestrante libertino" orientando que as pessoas fizessem um círculo em pé. Aqueles que optassem pelo voyeurismo, poderiam sentar-se em cadeiras próximas. Em tom de celebração religiosa, pedia a Dionisio (ora Dionisio, ora Baco) que intercedesse por todos que ali estavam em busca da superação de suas limitações sensitivas e orgásmicas. Até então, todos estavam convictos de que rolaria uma suruba coletiva, o que não era o intuito mas apenas a peça publicitária que atraiu tantos incautos.

Enquanto celebrava, pedia que cada indivíduo acendesse sua vela e circundasse o corpo do indivíduo ao lado (ou em qualquer posição) com o objeto aceso. Certamente alguns gritos foram ouvidos, pois o derretimento das velas fazia-as pingar sobre a pele do outro. 

Após a passagem por todos, ao som de batuques que mais lembravam os do candomblé ou da umbanda, pedi que pusessem seus corpos deitados em círculo com as respectivas velas aos seus pés.

A cada um foi pedido que desenvolvesse, passo a passo, cada um dos cinco sentidos físicos na análise dos corpos em questão. Visão de todo o corpo do outro, audição de todo o corpo alheio, olfato de cada parte do corpo alheio, e, por último, tato, utilizando-se de todo o próprio corpo sobre o corpo alheio, e paladar, levando a língua até qualquer parte. Um detalhe: todos continuaram vestidos durante esta primeira etapa. Eu dizia:

- Todos estão livres para sentir o corpo do outro e o próprio corpo como nunca sentiram. Antes nos era permitido olhar de relance para o conhecido ou para o desconhecido. Nossa visão, apenas um dos nossos sentidos físicos, era a única permitida nesta sociedade moralmente enquadrada. Permitida entre aspas porque temida. Com a possibilidade de muitas reações adversas, treinados e acostumados a reagir diante de toda e qualquer insinuação sexual, nos distanciamos cada vez mais. Por isso, somos a única espécie que aprendeu a elaborar, a falsear, a introjetar e a projetar perversões que vão muito além da sexualidade mas que começam no instinto animal domesticado. Precisamos superar estas dificuldades de relacionamento para que possamos promover revoluções concretas.

É claro que muita gente boa se empolgou. Para desespero do meu ex, que estava presente e era aluno da Psicologia, mas que temia, logo no início do nosso relacionamento, que eu descambasse para a poligamia, para a orgia ou algo do gênero na sua cara. Alguns tiraram partes da roupa alegando "furor uterino", "calor", "quentura"... outros, da ala dos voyeures, decidiram se envolver também. Muita gente boa acabou arrumando uma pegação ali depois da oficina, outros fortaleceram seus próprios amores e suas próprias paixões em desenrolos memoráveis.

Na segunda etapa da oficina, foi sugerido que cada indivíduo dissesse e mostrasse abertamente ao grupo qual parte do seu próprio corpo (e qual a parte do corpo do outro) lhe trazia mais felicidade. E qual, em mesma proporção, lhe trazia mais angústia e desespero. O sujeito ainda deveria explicar por quê. Lembro-me de revelações incríveis, de relatos muito loucos, de pessoas completamente excitadas, confessando coisas impressionantes.

A oficina foi feita sem planejamento algum. Confesso que só pedi aos organizadores as velas, até mesmo o batuque foi improvisado. Não tinha a menor ideia do que seria feito. Lembrei-me do livro "A Profecia Celestina", uma espécie de literatura da Nova Era do psicólogo americano James Redfield (ed. Objetiva), que trata de supostas visões reveladas ao próprio por uma passagem de sua vida pelo território dos incas no Peru, da somaterapia de Roberto Freire, da única matéria fixada em minha cabeça após tantos anos de estudo da Física no ensino fundamental e no ensino médio, da ideologia libertária e de muitas vivências que tive como homossexual assumido na sociedade brasileira. 

Tem coisas que acontecem na nossa vida, de razões muito além da nossa própria capacidade científica de discernimento, que misturam, com requintes de surrealismo, simplicidade e boas intenções, os temperos dos processos revolucionários semeados pelos ingênuos libertários. Que de "ingênuos", talvez, não tenham nada.